"[...] but suppose we were (as we might be) an influence, an idea, a thing intangible, invulnerable, without front or back, drifting about like a gas? Armies were like plants, immobile, firm-rooted, nourished through long stems to the head. We might be a vapour, blowing where we listed. Our kingdoms lay in each man's mind; and as we wanted nothing material to live on, so we might offer nothing material to the killing."'
Introdução
Este texto visa discutir características do sistema político norte-americano e valores enraizados na sociedade dos EUA que, ao longo do tempo, produziram fortes implicaçoes para a atuaçào externa deste país. Centrada nos interesses de longo prazo dos Estados Unidos da América, a discussäo ressalta o modo como este país, ao participar aüvamente da construçào da ordem e dos principáis procéseos políticos internacionais contemporáneos, projetou seus interesses na arena internacional.
Ao difundirem no contexto internacional valores tipicamente característicos da sociedade norte-americana, os EUA contribuirán! - e contribuem - para redefinir os termos que pautam a interaçào de agentes no ámbito internacional. Reconfiguram-se, por assim dizer, "as regras do jogo". O ambiente global transformou-se em um espaço mais favorável à concretizaçào de práticas e relaçoes sociais outrora confinadas a territorios e populaçôes históricamente marcados pela ampia aceitaçào de valores democráticos e liberáis . Ao cabo, normas e valores funcionam como instrumentos de projeçào de influencia no ambiente internacional.
O texto divide-se em duas partes, além de breves introduçâo e conclusäo. A primeira parte apresenta o arcabouço conceitual a ser utilizado para analisar a influencia de normas e valores sobre o comportamento de agentes na esfera internacional e discute os processus por meio dos quais os EUA nela inseririam normas e valores norte-americanos. Refere-se, ainda, a marcantes transformaçôes ñas relaçoes internacionais contemporáneas, que resultaram, ao menos em parte, da consolidaçào de padröes de relacionamento definidos no contexto desse arcabouço normativo. A segunda parte examina valores específicos da sociedade norte-americana e sua influencia na conformaçào de identidades e de intéresses permanentes dos EUA, tanto no que diz respeito à realizaçào de suas potencialidades quanto no que se refere à relaçào do país com outros Estados e sociedades. Ao longo do texto, analisa-se, ainda, o modo como o governo norte-americano buscou projetar valores no contexto internacional, visando construir um ambiente mais favorável à concretizaçào de seus objetivos.
Agentes e Estnituras no Contexto Internacional Contemporáneo
Discursos sobre agentes e estruturas na interdependencia
Se existe um consenso entre os analistas das relaçôes internacionais contemporáneas, é o entendimento de que a interdependencia de Estados e sociedades no contexto internacional muito se ampliou ao longo dos últimos séculos. A dimensäo e a profundidade deste processo, seus agentes principáis, as forças que o promovem, suas implicaçôes, tudo tem sido debatido à exaustäo, havendo mesmo ensejado o surgimento de um novo campo de estudo ñas ciencias humanas, o das Relaçôes Internacionais.
Os termos por meio dos quais os analistas tentam conferir sentido a esse processo säo muitos. Discursos normativos, declaraçôes assertivas sobre como o mundo deve ser e sobre como os individuos devem se comportar, urnas fundadas em convicçôes, outras em interesses, todas prennes de intençôes, explicitas ou näo, de transformaçào da realidade. Assim, numerosos discursos ideológicos, religiosos ou apenas preconceituosos manifestam-se aprioristicamente favoráveis ou contrarios a esse complexo processo, que vulgarmente - ou nem tanto - se denomina "globalizaçào".
O texto de Huntington (1996) sobre o choque de civilizaçôes relembrou os analistas da necessidade de se consideraren! as influencias deste tipo de discurso, por mais abstrato ou utópico, sobre a realidade propriamente dita. Ao fazê-lo, reinseriu no debate, talvez näo da meIhor maneira, a consciência de que nenhuma avaliaçao profunda de processos sociais, especialmente na frágil sociedade internacional, pode desconsiderar o modo como estruturas normativas e axiomáticas interferem na formaçào de preferencias e na produçao de condiçôes de entendimento e espaços de negociaçâo entre agentes sociais.
Dessa maneira, contribuiu para que se revalorizassem explicaçôes sociológicas das relaçôes internacionais, abrindo espaço para aproximaçoes construtivistas3.
De outro lado, há discursos científicos que também buscam interpretar, de forma rigorosa, esse processo de interdependencia, suas origens e suas implicaçôes. Há autores que privilegiam explicaçôes da realidade baseadas em causas económicas; outros que enxergam na raíz do incremento da interdependencia moüvacóes políticas. Conforme as presunçôes que se estabeleçam, obviamente, diferentes sistemas conceituais seräo utilizados para contar a historia da intensificaçào das relaçôes internacionais nos últimos séculos. Parece haver consenso, contudo, com relaçào à natureza multidimensional desse processo, de modo que convém utilizar mais de um sistema conceitual, de forma combinada, para conferir sentido a essa realidade tao difícil de se interpretar.
Urna maneira concatenada de empreender esse esforço consiste em organizar a discussäo em termos da interaçao de agentes e estruturas. Desde que se aceite a simultànea existencia de diferentes estruturas no ambiente internacional , e sua inter-relaçào, é possivel analisar a extensäo e a profundidade da interdependencia que se observa ñas interaçôes de distintos agentes näo apenas uns com os outros, mas deles, coletivamente, com estruturas que nem sempre respeitam as fronteiras nacionais.
A discussäo sobre agentes e estruturas nao é, contudo, nova ou simples . Déla participam autores que concentrami sua atençâo ñas interaçôes dos agentes, ressaltando que eles näo agem no vacuo, mas intermediados por um conjunto de estruturas que servem à projeçào de poder em diferentes dimensöes, da militar à tecnológica, da financeira à comercial . De modo mais sutil, ainda com ênfase na mutua interaçao de agentes, Nye, por exemplo, trabalha com a perspectiva de "poder brando", visto corno urna forma de projeçào de valores destinada a permitir que o agente exerça influencia pela via da atraçào, mais do que pela coerçào . Desse ángulo, os governos sao vistos como agentes unitarios e racionáis, que buscam avançar seus interesses por meio da formaçào de agenda e estabelecimento de estruturas conducentes a beneficiar aqueles capazes de influenciar a definiçào das posiçôes de política externa do Estado (presumivelmente seus nacionais), em detrimento de outros agentes.
Participam também autores que se preocupam mais com a relaçào entre agentes e estruturas, seja defendendo pontos de vista que afirmam a possibilidade da governabilidade em diferentes áreas das relaçôes internacionais sem a necessaria constituiçâo formal de urn governo que exerça autoridade , seja simplesmente identificando o modo como estruturas de idéias condicionam agendas, preferencias, intéresses e, em alguns casos, a propria identidade dos agentes (Wendt, 1987; 1999; Onuf, 1988).
As diferentes ênfases conferidas pelos analistas as dimensöes da interdependencia que se aprofunda entre governos e sociedades nao mudam, contudo, a complexidade do processo em si. Ao cabo, observa-se, de inicio, aprofundar-se aintegraçâo de mercados, das estruturas produtivas e financeiras da economia global, engendrando o estabelecimento de regras comuns para disciplinar o intercambio e os fluxos de bens e serviços, de ativos financeiros, de informaçoes e de pessoas; observa-se também, ato continuo, o aumento do grau de interdependencia na área de segurança, tradicionalmente reservada aos governos9.
No plano da economia política internacional, concretiza-se, em alguma medida, aprevisäo de Montesquieu: à proporçào que se desenvolve o comercio internacional, amplia-se o custo político de realizar guerras, visto que nao interessa a governo algum destruir a capacidade produtiva de seu mercado consumidor ou de economías de outros países que, como fornecedoras, se relacionem diretamente com seus nacionais. A interpenetraçào de mercados cria, assim, constrangimentos estruturais que tenderti a f azer convergir os intéresses dos governos no plano interno e no plano internacional, reduzindo a probabilidade de ocorrência de conflitos armados10.
Ao fortalecer esse processo, emerge um conjunto de regimes internacionais que promovem a convergencia de expectativas dos agentes em áreas específicas das relaçôes internacionais. A homogeneizaçào de comportamentos contribuí para consolidar estruturas produtivas e comerciáis, que se organizam em redes, movidas pela lógica de reduçào de cusios e de maximizaçào de beneficios na alocaçào de recursos escassos, o que obviamente desconsidera as fronteiras políticas e impôe aos governos constrangimentos para aderir à normativa internacional (Krasner, 1983)11.
Esse fenòmeno näo deixa de produzir implicaçôes políticas e sociais. Com efeito, de um lado, o livre fluxo de informaçôes, bens e serviços permite a utilizaçào de agentes políticos e sociais domésticos por outros governos, por meio ora de grupos de pressäo, ora de redes produtivas e da possivel manipulacäo da opiniäo publica. De outro lado, à medida que os governos permitem que se amplié a participaçào de outros agentes da sociedade em processus decisorios relevantes - e essa foi a tònica dos últimos dois séculos, especialmente pela via da democratizaçâo nas relaçôes políticas -, reduz-se a sua capacidade de decidir, autonomamente, sobre a realizaçào de guerras.
O incremento da parücipacäo da sociedade nas decisòes de politica externa de seus governos constituí fenòmeno relativamente recente. Ernbora a Guerra do Vietnä seja por muitos considerada marco importante nesse processo, outros eventos também merecem destaque. De fato, já no inicio da Primeira Guerra Mundial, esse fenòmeno recebeu a entusiástica adesäo das populaçôes européias à guerra "que poria firn a todas as guerras"; como é sabido, contudo, os desdobramentos da guerra e sua longa duraçâo levaram as populaçôes a desaprovar o confuto. A prevalecente leitura de que a Primeira Guerra resultou de acordos secretos mutuamente contraditórios, expressa na idéia de que a guerra seria muito importante para ser deixada a cargo apenas dos generáis, e a decisäo, ao seu final, de se criar urna instituiçào internacional destinada a proibir a guerra entre Estados e a tornar mais transparentes seus compromissos internacionais contribuíram para a difusäo da idéia de que as sociedades nao podiam permitir que os conflitos internacionais evoluíssem ao ponto de näo-retorno.
Em outras palavras, tratava-se de evitar que se estabelecesse urna condiçào em que já näo fosse possível resolver controversias por meios pacíficos. Mas como fazê-lo? Como assegurar que os governos näo voltassem a realizar pactos que pudessem levar a um novo confuto de grandes proporçoes? A resposta parecía impor-se logica, senào naturalmente: se o uso disciplinado da razào servira a produzir estimulantes resultados em tantas dimensôes da vida humana, por que näo o faria também no campo da política internacional? Afinal, em diversos países, a construçâo de instituiçôes adequadas servira a organizar formas menos violentas de intermediaçào de intéresses e de soluçào de conflitos.
Nessas condiçôes, a proposta de criaçâo da Liga das Naçôes, embora carregada de idealismo, veio a enraizar-se näo apenas em urna cultura fundacionista, mas também na clara convicçào de que instituiçôes adequadas poderiam servir para construir ambientes políticos mais equilibrados.
Os Estados Unidos no processo de organizaçâo das relaçoes internacionais
A proposta de criaçâo da Liga das Naçôes, pelo presidente Wilson, em meio a um conjunto de pontos genuinamente realistas, näo foi coincidencia: suainspiraçâo, fortemente marcada pela experiencia norte-americana, veio ao encontró de um processo de ampliacäo da presença dos EUA no cenário internacional - coroada, näo é demais lembrar, pelo firn da Primeira Guerra Mundial. A idéia do constitucionalismo, herdada de urna tradiçâo do Direito Naturai que Onuf (1998) denominou "republicanismo atlàntico", possibilitou que se conferisse personalidade jurídica a entes abstratos, que, urna vez reconhecidos pelos demais corno "pessoa", habilitavam-se a assumir compromissos em nome de seus súditos . A assunçào de compromissos, por sua vez, permitiu dar inicio a relaçôes sociais, políticas e económicas que, afinal, serviram para consolidar a soberanía dos Estados, ao conferir substancia a suas interaçôes.
Na Europa, esse artificio legal contribuai para a consolidaçâo do sistema westphaliano de Estados, amparado tanto nos interesses políticos dos soberanos de entäo - que tinham como pano de fundo a regulaçào de mercados em escalas compatíveis com as condiçôes económicas da época -, quanto em fundamentos conceituais trabalhados, no plano da filosofia política, principalmente pelos contratualistas. No nascente ámbito internacional, refletiram sobre o assunto pensadores como Bodin, Vattel, Grotius e Kant. Obviamente, o beneficio do mutuo reconhecimento da soberanía nacional figurava fortemente na maior liberdade dos soberanos para definir as regras do jogo para os súditos e territorios reconhecidos como seus. Situaçôes históricas específicas condicionaran! a aceitaçào dos principios de soberanía e territorialidade em graus e ritmos distintos, como ilustra a pròpria concessäo de nacionalidade aos cidadäos baseada ora no local de nascimento (jus solí), ora em laços sanguíneos (jus sanguinis)13.
Gradualmente, por meio de conceitos como o de territorialidade e soberanía, cindiram-se processos internos e internacionais, legitimando em textos legáis a relaçào de cada governo com seus cidadäos e a de governos soberanos entre si. A Declaraçào de Independencia dos Estados Unidos da América desempenhou, nesse contexto, papel relevante. Por seu intermèdio, em nome de valores abstratos de direito à vida, à liberdade e à busca da f elicidade, além da prerrogativa de combater a opressäo, e na condiçào de representante do povo das treze colonias, um grupo de individuos desafiou a autoridade constituida, recorrendo a sofisticada argumentaçào para instituir um governo que deveria, a um so tempo, derivar sua legitimidade do consentimento da populaçào e evitar usurpaçôes de direitos - tipicamente empreendidas por governos tiranos.
Embora a idéia de urna soberanía parlamentar näo fosse nova, corno ressalta Teschke (2002), jamais se observara, históricamente, a estrita submissäo do proprio Parlamento ao povo. Assim, pela primeira vez essas idéias ganharam concretude em urna situaçào real. Mais que isso, tratava-se de um contexto percebido como particularmente rico em condiçôes para que se enraizassem instituiçôes libérais, dado que os océanos protegiam individuos dispostos a viver "o sonno americano". Nessas condiçôes, fortaleceu-se a soberanía popular e o principio da representaçào por meio da explicita constituicäo de um governo destinado a cumplir mandatos em beneficio dos individuos . Principalmente, em essência, a proposta visava assegurar e promover liberdades individuáis amparadas em instituiçôes tipicamente liberáis. A Revoluçâo Francesa, com sua ênfase na promoçào da igualdade, muito contrastou com a independencia dos EUA, acentuando-lhe as especificidades.
Na opiniäo dos Pais Fundadores, a constituicäo de urna entidade soberana näo podia prescindir de documentos que Ine registrassem a origem e que Ine assegurassem condiçôes de perpetuar os valores em nome dos quais se inaugurara, com sangue, sonhos e saberes, nova experiencia histórica. A novidade estava também, em alguma medida, na ausencia de origem divina atribuida ao Estado: fazia falta, entäo, outro mito fundador, espaço rapidamente ocupado pela idéia da convergencia de vontades dos cidadäos, logo simbolizada por urna especie de contrato social. Fazia falta, com efeito, um registro desse pacto entre os cidadäos, relaçào que se buscou justificar pela crescente sofisticaçào do argumento contratualista: comHobbes (1996), defendeu-se a necessidade de um artificio que constituísse a ordern e preservasse a vida; Locke (1952) deixou claro que näo bastava urna ordern qualquer, urna vez que os individuos careciam - presumia-se que haveriam sempre de carecer - de um ambiente no quai sua vida e sua propriedade, fruto de seu traballio sobre a natureza, estivessem protegidas; Rousseau (1968), por firn, inseriu a noçào de dinámica social e, na linha do argumento de Maquiavel (1985) nos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Livio, sugeriu formas de aperfeiçoamento das instituiçôes.
Nesse contexto, a Declaraçào de Independencia dos EUA näo deixou margem a questionamentos em relaçào à soberanía dos individuos e à necessidade de se constituir um arcabouço legal que os protegesse das prováveis tentativas de tiranizaçào dos governantes. Os artigos federalistas, em seguida, veicularam as discussöes conceituais sobre as melhores instituiçôes políticas, condensando experiencias históricas e reflexôes teóricas com vistas a produzir o arcabouço normativo mais apto a promover a liberdade individual. A Constituiçào, por firn, perenizou, em seu preámbulo, a vontade atribuida ao povo: "formar urna Uniäo mais perfeita, estabelecer Justiça, assegurar a tranqüilidade doméstica, prover a defesa coletiva, promover o bem-estar geral e resguardar as bênçâos da Liberdade [Blessings of Liberty] para nos mesmos e para a posteridade"16.
Em outras palavras, a propria fundaçào dos EUA constituiu urna redefiniçào dos termos por meio dos quais os individuos se relacionavam com seus governos. Ao fazê-lo, inseriu entre os valores tidos como integradores da sociedade norte-americana a idéia de "destino manifesto" da naçào17. Ademais, conferiu à opiniäo pública papel relevante na definiçâo de prioridades políticas no ámbito interno e na esfera internacional.
Essa transí ormaçâo dos termos, que levou a discutir, publicamente, a relaçâo entre súditos e soberanos, teve lugar em circunstancias marcadas por peculiares dinámicas políticas internationale e domésticas: no plano internacional, prevalecía a independencia dos Estados e a progressiva constituiçào do que Bull denominou "sociedade anárquica"; no plano interno aos Estados, fortalecia-se, em varias sociedades, a idéia de que era necessario proteger o individuo da concentraçào de poder pelo governo, em virtude da tendencia dos governos de tiranizar os cidadäos. Estabelecer estruturas institucionais e normativas eficazes afigurava-se, entäo, como instrumento adequado para levar a ef eito essa proteçào, ao se restringir a capacidade dos governos de utilizar a força (ou de ameaçar fazê-lo). Näo por coincidencia, a experiencia norte-americana tornou-se símbolo desse processo: afinal, a Declaraçao de Independencia precedeu em mais de urna década a Constituiçào norte-americana; esta, por sua vez, instituiu-se em meio a profundas desconfianças em relaçâo à concentraçâo de poder que se observaría em mâos de urna Uniäo que se criava com o objetivo precipuo de defender a sociedade de ameaças externas.
Se as origens da maior participaçào da opiniào pública em processos decisorios internationale podem ser localizadas na independencia norte-americana e na Revoluçâo Francesa, merece destaque a progressiva organizaçâo das relaçôes internationale que teve lugar ao longo do século XIX, evidenciada no surgimento de organizaçôes internationale e no uso de novas tecnologías de transportes e comunicaçoes. Por sua vez, a aplicaçào pela Grä-Bretanha do conceito de guerra total, durante a Primeira Guerra Mundial, e suas implicaçôes transformaran! as relaçôes internacionais contemporáneas.
De inicio, os desenvolvimentos tecnológicos e sua aplicaçào marcial - parte dos quais se testou na Guerra Civil norte-americana - diluíram as fronteiras entre o campo de batalha e a cadeia de suprimentos necessaria para sustentar, com a contribuiçào de inovaçôes logísticas, o esforço de guerra. Os conceitos de campo de batalha (front) e de retaguarda tiveram que ser revisitados e a capacidade económica passou a ser considerada täo relevante quanto a capacidade militar propriamente dita, visto que esta nao produziria todos os seus resultados sem o eficaz suporte daquela. Nessas condiçôes, a populaçào civil, outrora poupada pelos militares em nome de normas de combate ou, no mínimo, considerada alvo secundario, passou a ser extremamente relevante no esforço de guerra. Afinal, o corte de suprimento, de muniçào ou de alimentos passou a ser mais diretamente relacionado ao objetivo militar, pouco importando que os funcionarios das industrias fossem civis (menos aínda que fossem mulheres) incorporados à força de traballio em razäo da inevitável escassez de mäo-de-obra causada pela guerra prolongada.
Como resultado, as populaçôes mundo afora, cada vez mais bem informadas e educadas, tornaram-se parte importante dos confutes internationale, passando a demandar também a capacidade de influenciar o curso dos acontecimentos que, afinal, diriam respeito a suas próprias vidas. Guardadas as proporçôes, fenómeno semelhante observou-se no campo do comercio e das finanças internacionais e na definiçào de políticas tendentes a promover a inserçào das economías no mercado internacional1 .
Se o século XIX viveu o debate sobre o melhor regime cambial a ser adotado, finalmente vencido, incrementalmente, pela instalaçào de um regime internacional baseado no padräo-ouro, no século XX teve lugar a falencia desse sistema de intermediaçào de trocas e a necessaria abertura de espaço em que pudessem operar agentes políticos quando da adoçào de regimes cambiáis específicos. Para näo mencionar as flutuaçôes observadas ao longo dos vinte anos de crise que marcaram o entreguerras, durante os quais os governos claramente cederam a intéresses específicos de curto prazo que se entrechocavam em suas sociedades, o padräo ouro-dólar, adotado depois da Segunda Guerra Mundial, estabeleceu um sistema predominantemente liberal e relativamente previsível, marcado pela peculiaridade de assegurar, sempre, a possibilidade de acomodaçào, pelos governos, de intéresses políticos específicos .
Obviamente, a participaçào mais intensa das sociedades nos processus decisorios dos governos nao ocorreu - e näo ocorre - de forma linear e serena; tampouco resulta de concessôes dos governos em resposta a pacíficas reivindicaçôes de suas populaçôes. Demandas inerentes aos primeiros estágios da intensificacäo das relaçoes económicas internacionais ensejaram, de inicio, intervençôes dos Estados nos mercados, seguidas de maior liberalizaçào resultante da percepçào, por parte destes mesmos Estados, de que seus interesses estariam mais bem atendidos pelo aproveitamento de vantagens comparativas. Surtos de crescimento levaram a urna integraçào de mercados que, se bem impulsionada por processos tecnológicos típicos da Revoluçâo Industrial (tais como o telégrafo, a máquina a vapor e os navios frigoríficos) e pela estabilidade dos valores relativos dos ativos financeiros proporcionada pelo padräo-ouro, só mostrou sua intensidade durante a crise de 1929.
Em meio à crise, as populaçôes recorreram aos Estados, na esperança de que eles pudessem restabelecer condiçôes capazes de proteger os interesses coletivos. E certo que os movimentos nazifascista e comunista, na Europa, constituíram marcantes exemplos de centralizaçào do poder, engendrando riscos as liberdades individuáis, como ensinou Hayek (1994) no Caminho da Servidäo; mas nos EUA o governo, inspirado em idéias keynesianas, também implementou políticas tendentes a reduzir liberdades individuáis. As políticas articuladas pelo New Deal e as tarifas comerciáis dos anos 1930 ilustram a consolidaçào de poder no ambito do governo federal, cujo inicio costuma ser localizado pelos historiadores na promulgacäo da Constituiçào, em 1787.
Entre os pontos de inflexäo que caracterizaram o fortalecimento da Uniäo, em detrimento dos estados e das cidades, destacam-se a Guerra de Secessäo e a era Roosevelt, cujas políticas, posteriormente aprofundadas, em certos aspectos, por Johnson, passaram a requerer urna redivisäo da arrecadaçào tributària, em favor da Uniào, destinada a sustentar os programas federáis.
Näo obstante a concentraçâo de poder nos Estados Nacionais, em detrimento dos governos locáis, observada em varias partes do mundo desde o firn da Primeira Guerra Mundial, a relaçào entre governantes e governados transformou-se em favor destes. Em parte, esse fenómeno contribuiu para que, organizada, a sociedade se valesse de novas condiçôes de acesso a outros governos para perseguir seus interesses.
Outra dimensäo desse processo foi motivada pelo estabelecimento de intéresses privados que se organizaram através das fronteiras nacionais, envolvendo parcelas crescentes das populaçôes e das empresas aptas a garantir a arrecadaçào dos governos dos Estados Nacionais. Nessas codiçôes, tais governos tenderam a produzir regras comuns tanto para a organizaçào de mercados unificados quanto para o combate a ameaças comuns. Entre as implicaçôes dessa tendencia, esteve a alienaçâo de parte da autonomia decisoria dos governos em beneficio nao apenas da criaçào de melhores condiçôes de desenvolvimento para suas economías, mas também da ampliacäo das possibilidades de responder, com eficacia, a ameaças oriundas de crimes transnacionais.
Em conseqüencia, nunca antes se observou, na esfera internacional, tamanha fragmentaçâo e complexidade ñas relaçôes de poder entre agentes políticos os mais diversos, que, ao interagir, engendram procéseos políticos que, continua e dinamicamente, redefinem relaçôes de poder e de autoridade em varias áreas da vida internacional. Essa fragmentaçâo de poder decorre, em parte, das condiçôes atuais do contexto internacional, em que agentes privados (näo necessariamente interessados em lucro) lutam por suas demandas e requerem, de modo articulado, regras claras para disciplinar suas mutuas interaçoes 20.
De outra parte, argumenta-se que a fragmentaçào de processus políticos e a existencia de múltiplos cañáis de acesso a núcleos de poder na arena internacional resultam da influencia de normas e valores norte-americanos embutidos ñas estruturas de regulacäo da ordern mundial. De alguma maneira, o papel central desempenhado pelos EUA ao longo do século XX terá contribuido para a consolidaçào de um ambiente regulatório marcado por instituiçôes que permitem numerosas possibilidades de acesso a centros de poder, ora participando de instituiçôes e de encontros sobre temas específicos, como se observou na "década das conferencias", ora interferindo na agenda política internacional.
Nesse sentido, o ambiente internacional teria funcionado - e continuaría a funcionar - como um veículo da influencia dos EUA, já que nele se inserem os sistemas políticos de diversos Estados Nacionais. O cerne do argumento pode ser resumido da seguinte forma: os sistemas nacionais necessariamente se relacionam com o ambiente externo, que, obviamente, constituí um sistema fechado; urna vez que nele prevalecem características da sociedade norte-americana, as trocas efetuadas entre os numerosos sistemas domésticos e o contexto internacional terminam por promover maior homogeneizacäo das relaçôes internacionais, diluindo idiossincrasias de cada comunidade política - exceto as dos EUA, que se fazem presentes também na ordern internacional.
No que concerne à economia política internacional, entre as memores análises da influencia dos EUA sobre as estruturas internacionais está a de Strange (1989). De acordo com sua proposta de análise, o poder estrutural sobrepôe-se, como instrumento de influencia sobre o comportamento de outros agentes, às tradicionais formas de pressäo, usualmente constituidas de estímulos positivos (promessas de beneficios) e negativos (ameaças), a que Olson deu o nome de incentivos seletivos. Para Strange (idem:l68), "poder estrutural aproxima-se da definiçào ampia (isto é, abrangente) de 'regimes' no debate que precedeu a coletânea de ensaios organizada por Krasner sobre o tema. Em síntese, eia abränge costumes, usos e modos de operacionalizaçào, em contraste com a definiçào mais restritiva que se refere a acordos entre Estados e a instituiçôes centradas nos Estados".
Nesse contexto, ainda segundo Strange, a hegemonía norte-americana revela-se no dominio de suas empresas sobre a economia global, na prevalência de suas técnicas administrativas, contábeis e de marketing21, na ampia difusào da cultura norte-americana pelo cinema, televisào e midia, na enorme atraçào que seu sistema universitario exerce sobre os melhores cerebros do mundo, enfim, na difusào, mundo afora, de práticas típicas da sociedade norte-americana.
Poder-se-ia acrescentar a esta enumeraçào a utilizaçào das regras das bolsas de valores norte-americanas como fundamento para as transaçôes internacionais e a absorçào, por organizaçôes internacionais, de normas cuja justificativa moral se fundamenta na cultura liberal, mais bem enraizada e desenvolvida nos EUA do que em qualquer outra parte do mundo. Afinal, como se sabe, a semelhança entre o preámbulo da Carta da Organizaçào das Naçoes Unidas (We the peoples...) e a Declaraçào de Independencia norte-americana nao se deve a urna coincidencia. Em suma, para autores como Strange (idem: 170)22, a presença norte-americana no mundo constituí nova forma de imperio, um imperio queja nao requer definiçào territorial, visto que a autoridade "é exercida diretamente sobre o povo, nao sobre o territòrio. Eia é exercida sobre banqueiros e executivos de empresas, sobre investidores e poupadores em geral, sobre jornalistas e professores. Eia é também, obviamente, exercida sobre as mentes de fiíncionários dos governos aliados e associados, como ilustram as sucessivas conferencias de chefes de Estado".
Os anos de exercício do poder estrutural, especialmente do poder brando, e de institucionalizaçao de urna ordern internacional relativamente pluralista permitiram ampliar a presene a dos EUA em praticamente todas as partes do mundo, o que, a urn tempo favoreceu a aceleraçâo do desenvolvimento tecnológico e dele colheu frutos, especialmente no que concerne à infra-estrutura de transportes e comunicaçôes. Esse processo näo reduziu, contudo, a capacidade do governo e da sociedade norte-americana de acumular recursos de poder (económicos, culturáis, tecnológicos, políticos e militares) suficientes para tornar sua liderança inquestionável no futuro previsível. Autores como Haas (2005) näo apenas reconhecem o fenómeno, mas defendem a necessidade de os EUA aproveitarem essas condicóes para concretizar, de forma permanente, sua liderança sobre urna sociedade marcada por instituicóes tendentes a preservar valores de liberdade e democracia.
O fato de as estruturas sobre as quais se fundamentam os cañáis que servem para veicular as trocas internacionais näo serem neutras, mas favorecerem a sociedade norte-americana (e/ou agentes nela formados), contribuí para que se observe crescente concentraçao de recursos nos EUA. As evidencias estäo no numero dos registros de patentes, no generoso financiamento de déficits comerciáis e públicos dos EUA, na crescente participaçao de empresas norte-americanas em áreas de fronteira tecnológica, na capacidade que sua sociedade possui de polarizar, ora positiva, ora negativamente, as açôes de governos e de grupos organizados em todas as regióes do mundo.
Esse processo, contudo, também encerra custos para a sociedade norte-americana. Por exemplo, os fluxos migratorios prevalecentes nos últimos anos vêm desequilibrando as proporçôes tradicionais de grupos étnicos e culturáis na sociedade norte-americana, gerando tensôes apenas parcialmente absorvidas pelo sistema político, como ilustrou o debate entre os candidatos as eleiçôes majoritárias com a populaçao de origem hispánica23. Além disso, observou-se o desenvolvimento de um novo tipo de imigrante, mais preocupado em ganhar dinheiro e retornar a sua terra de origem do que em realizar "o sonno americano". Näo obstante essas tensöes, fortemente acentuadas pelos acontecimentos de 1 1 de Setembro e, principalmente, pela reaçào do governo norte-americano, a projeçào de intéresses dos EUA no mundo vem se tornando näo apenas mais profunda, mas também mais complexa. Trata-se, com efeito, de urna especie de influencia, um tipo de liderança que se constrói, de um lado, por meio de estruturas materials, institucionais e normativas, capazes de estabelecer regras para as interaçôes internacionais que, embora negociadas e aceitas por todos, em larga medida privilegiam agentes já habituados a atuar na sociedade norte-americana24.
Assim, näo tem lugar propriamente urna imposiçao de interesses de um governo a outros, mas o estabelecimento de estruturas de governança que, a exemplo de quaisquer outras, beneficiami alguns agentes em detrimento de outros, particularmente no que se refere a custos de transaçao25. Urna vez que se recoloca o problema em termos da relaçao entre agentes e estruturas, nesse caso urna estrutura regulatória das relaçoes comerciáis, näo se observa propriamente algo concreto contra o que possam lutar os que se sentem prejudicados no atual contexto internacional. As condiçôes que interessam ao governo e à sociedade norte-americana säo definidas na forma de idéias (algumas embutidas em instituiçôes de que a maioria dos governos é signataria, portante responsável), alcançando um grau de intangibilidade que Ines assegura melhores possibilidades de perpetuarem-se.
A anarquía propria ao sistema internacional contribuí para que as relaçoes de poder e de autoridade entre agentes internacionais se redefinam continuamente, inclusive por meio do permanente questionamento das "regras do jogo" e de sua transformaçao. Assim como na sociedade norte-americana, no ambiente internacional prevalece um sistema político pluralista, relativamente aberto à participaçao de diferentes agentes dispostos a avançar seus intéresses mediante efetiva participaçào na formulaçào de normas, na definiçâo de agendas, no estabelecimento de instancias recursais para as quais possam ser transferidos determinados temas sobre os quais näo se consegue produzir consenso.
Em resumo, na sociedade norte-americana e na esfera internacional prevalecem instituiçôes e normas que embutem formas de soluçâo de conflitos fortemente associadas à cultura norte-americana; formas inclusive testadas ao longo da historia dos EUA. Ao universalizarem um conjunto de idéias a respeito do modo como os agentes devem se comportar no plano político e das regras que devem servir a organizar um ambiente em progressiva integraçào, ao conferirem a agentes políticos dispersos geograficamente oportunidades de acesso a processus decisorios internacionais, a sociedade e o governo norte-americanos exercem liderança sutil, mas näo menos eficaz sobre processos sociais, políticos e económicos no ámbito internacional.
Neste ambiente, idéias e valores tidos como universais (tais como o conceito de direitos humanos definidos em funçâo dos individuos e a representaçào política por meio de partidos políticos em sistemas eleitorais) estruturam os processus políticos internacionais de modo a valorizar a capacidade de atuaçào de agentes isolados, os quais se relacionam com os Estados Nacionais por meio de cálculos de cusios e beneficios em um ambiente marcado por regras que Ines permitem continuamente redefinir lealdades políticas em funçâo de intéresses específicos, passíveis de serem contabilizados.
Em certo sentido, a "grande transformaçâo" de que tratou Polanyi (1944) estende-se as relaçôes internacionais: as instituiçôes norte-americanas (desenliadas para proteger os individuos da urania dos govemos), que mais profundamente sedimentaran! valores mercantis como instrumentos de intermediaçâo de relaçôes sociais, gradualmente conformam as normas internacionais. Ao fazê-lo, definem-lhes os valores principáis e abrem espaço à evoluçào de processos políticos que, continua e dinamicamente, f acultam a cada agente a possibilidade de alterar sua capacidade de interferir nos principáis processos internacionais27. Vejamos, entäo, de forma mais deuda, a origem e as características dos valores principáis na sociedade norte-americana.
Valores no sistema político norte-americano e sua projeçao na esfera internacional
Nesta parte do texto, seräo discutidos valores específicos da sociedade e do sistema político norte-americano. Ao longo dos anos, esses valores influenciaram fortemente a definiçào de interesses que, de forma permanente, fundamentaran! a política externa dos EUA praticamente desde o século XIX. Além da prevalência da idéia de destino manifesto e da pragmática identificaçâo de interesses nas relaçôes com outras naçôes, sobretudo no plano comercial, será discutida a idéia de fronteira em permanente expansào e, nesse contexto, a maior importancia relativa dos individuos em seu relacionamento com o governo. Ao longo do texto, pretende-se aludir, aínda, à importancia que üveram esses valores para a construçâo da ordern internacional contemporánea.
O destino manifesto
A instituiçâo do sistema político norte-americano deu-se com base em ampia reflexäo dos Pais Fundadores, cujas discussôes públicas, em dia com a mais avançada produçào no campo da filosofia politica da época, registraram preocupaçôes com definir a identidade nacional e com estabelecer normas que perpetuassem os valores em nome dos quais se declarou a independencia. Desde entâo, além dos documentos legáis, um conjunto de textos, entre os quais se destacam os Artigos Federalistas e discursos de presidentes como Washington, Jefferson e Lincoln, influencia as decisôes políticas nos Estados Unidos.
O famoso discurso de despedida de Washington , por exemplo, revela clara consciência dos intéresses de longo prazo dos EUA e da necessidade de bem conduzir suas relaçôes desde o primeiro momento. No que diz respeito aos objetivos a serem perseguidos na esfera internacional, Washington sustentou a idéia de que deveria prevalecer como regra o isolacionismo, temperado por bem escomidas intervençôes alhures, sempre que houvesse avaliaçao positiva de custos e beneficios. Principalmente, Washington sugería a seus sucessores que caberia evitar que se manif estassent, no seio da sociedade norte-americana, preferencias por países específicos, tais como as facçoes que, favoráveis à Franca e à Grä-Bretanha (e em confuto urnas com as outras), em seu governo colocaram em risco a frágil Uniäo, tao duramente construida. Assim, segundo Washignton, para que, fundada na religiäo e na moralidade, a "grande naçào americana" pudesse realizar o seu destino manitesto, isto é, "oferecer à humanidade o magnífico e novissimo exemplo de um povo sempre guiado pelo sentido de justiça e benevolencia [. . .] [?] ada é mais essential do que evitar inveteradas anüpaüas permanentes contra naçoes particulares, bem como de apegos apaixonados a outras; e, em seu lugar, devem ser cultivados apenas sentimentos de amizade para com todas" (Washington, 1996).
A política externa dos EUA deveria guiar-se, pois, pelos intéresses nationals, "observando boa fé e justiça para com todas as naçôes" idem) e definindo suas relaçôes com base em análises racionáis dos interesses do país, visto que políticas influenciadas por sentimentos facilmente criariam "ailusäo de [...] interesses comuns imaginarios, onde nao existem intéresses reais" idem). Estava claro que "a grande regra de conduta para nos com relaçào a naçoes estrangeiras consiste em estender nossas relaçôes comerciáis, de modo a ter com elas a menor conexäo política possível" idem). Envolver-se com a Europa, entäo, tendería a trazer apenas prejuízos aos reais intéresses norte-americanos: "Por que, ao entrelaçar nosso destino com o de qualquer parte da Europa, comprometer nossa paz e prosperidade com processos políticos europeus marcados por ambiçâo, rivalidade, intéresses, humores ou caprichos?" (idem)
Embora alianças, desde que temporarias, pudessem ser necessárias para proteger os intéresses nationals em circunstancias específicas, cabía tirar proveito de "nossa situaçâo desapegada e distante [. . .] para escolher paz ou guerra, tal como o nosso interesse, guiado pelo senso de jusüca, deve aconselhar" (idem). Em síntese, tratava-se de "ganhar tempo para o nosso país estabelecer e tornar maduras suas jovens instituiçôes, e progredir sem interrupçôes até o grau de força e consistencia que é necessario para dar-lhe [...]. O comando de sua propria fortuna" (idem).
O texto de Washington é emblemático porque explicita, de um lado, a intençào de projetar valores e interesses no sistema internacional, um claro sentido de missäo guiado por fortes convicçôes sobre o certo e o errado, sobre açôes e imagens positivas e negativas na esfera internacional. O discurso de George W. Bush em West Point, em junho de 2002, cujos excertos permeiam a Estrategia de Segurança Nacional em vigor, nada tem de novo, portante. Sua linguagem explícitamente fundada em convicçôes sobre o "certo e o errado" apenas reafirma, com palavras, a disposiçào para continuar a agir em favor do cumplimento do destino manifesto da naçào:
"A causa por que luta a nossa naçào sempre foi mais ampia do que a sua defesa. Hoje, corno sempre, nós luíamos por urna paz justa - urna paz que favoreça a liberdade. Nós defenderemos a paz contra as ameaças de terroristas e tiranos. Nós preservaremos a paz ao construir boas relacöes com as grandes potencias. E nós estenderemos a paz ao encorajar sociedades livres e abertas em cada continente"29 (Bush, 2002).
E curiosa a semelhança entre a retórica norte-americana, que recoloca, em nome do interesse nacional e do destino manifesto, a necessidade de unlversalizar a democracia e as liberdades individuáis, e a posiçâo dos países europeus que se opuseram à intervençâo norte-americana no Iraque. Afinal, por um lado, esses países basearam sua oposiçâo no argumento de que a açào militar tendería a produzir desastre humanitario e fragilizaria as instituiçôes internacionais por meio das quais se vinha levando a cabo o mesmo processo de universalizaçao de valores democráticos mundo afora. Por outro lado, os EUA näo apenas foram o país que mais procurou fortalecer essas instituiçôes ñas décadas subséquentes à Segunda Guerra, mas também tentaram justificar sua açào em nome de resoluçôes anteriores do Conselho de Segurança, fazendo uso de discursos fortemente marcados pela defesa da ordern multilateral30.
Ao cabo, fica claro que ambas as propostas visam induzir a transformaçâo de costumes e instituiçôes (tradicionais em numerosos países) incompatíveis com valores democráticos e liberáis. Ironicamente, políticas de difusäo de valores democráticos e liberáis sao vistas, elas próprias, como incompatíveis com conceitos de democracia, o que alimenta, em países de cultura islámica, resistencias a esses valores e oposiçôes aos EUA.
Nessas condiçôes, observam-se tensöes entre varios governos europeus e o governo norte-americano (e seus aliados). Frequentemente atribuidas ao maior grau de unilateralismo associado à atual administraçào norte-americana, essas tensôes têm elevado os custos de negociaçôes em processus políticos complexos e relevantes, sobrenado quando se negocia a necessaria cooperaçào em assuntos relativos à nào-proliferaçào de armas de destruiçâo em massa e as diversas dimensôes de combate ao terrorismo, entre as quais a lavagem de dinheiro. Claramente, percebe-se a necessidade de a atual liderança norte-americana buscar reaproximar-se de líderes de outras grandes potencias: se parece ter sido fácil encontrar em Washington inspiraçào para discurso normativo, pode ser mais difícil buscar nele o sentido de racionalidade necessario a evitar que as açôes externas se deixem guiar por simpatías e antipatías, por convicçôes sobre intéresses externos que eventualmente säo percebidos como norte-americanos e que, em última instancia, aparentemente têm servido apenas para produzir a oposiçào entre facçôes no seio da propria sociedade norte-americana.
As intervençôes eventuais em outras partes do mundo foram mais fréquentes no século XX, em contraste com o relativo isolacionismo que marcou os EUA durante o século XIX, quando prevalecía a opiniäo de que era preciso consolidar a Uniäo e produzir prosperidade. Como se sabe, isso implicou, entre outras decisôes da sociedade norte-americana, a renuncia ao modelo de produçào baseado ñas grandes propriedades, na produçào agrícola extensiva e na escravidäo, conforme brilhantemente analisado por Marx em artigos publicados na época da Guerra de Secessäo. Afinal, mais importante do que os argumentos moráis em defesa da condiçâo humana dos negros norte-americanos , foi o fundamento económico da guerra: subjacente ao confronto entre o Sul e o Norte, intensificava-se o confuto entre métodos de produçào económica contraditórios e o risco de que os diferentes entendimentos sobre a melhor maneira de organizar a economia e a sociedade norte-americana levassem à secessäo de urna Uniäo duramente promovida, como deixou entender Lincoln já em seu discurso de posse. De um lado, a escravidäo; de outro, a consciência de que era preciso assegurar a permanente expansäo do mercado interno, dada a necessidade de crescimento da massa salarial sem a qual a industrializacäo näo poderia prosseguir, sem a quai a promessa de prosperidade näo se realizaría.
O resultado da Guerra de Secessäo levou à redefinicäo da posiçao dos EUA no mundo. Urna redefinicäo que, na verdade, consolidou o contraponto à posiçao relativamente isolacionista propugnada por Washington. Como bem observa Gaddis (2004) em seu mais recente livra, a resposta de John Quincy Adams ao ataque británico à capital norte-americana que incendiou a Casa Branca, no inicio do século XIX, baseou-se em urna estrategia marcada pelo unilateralismo, pela busca da hegemonía no plano regional e pela possibilidade de "ataques preventivos". A propria expansäo territorial foi fortemente influenciada pela percepçâo de Adams de que cabia evitar que algo semelhante ao que hoje se denominam "Estados falidos" utilizassem territorios próximos as fronteiras norte-americanas para abrigar possiveis inimigos dos EUA, selvagens ou civilizados. Por essa razäo, Adams pressionou a Espanha, durante o período em que eia controlou a Florida, para que policiasse com eficacia seu territòrio ou cedesse ao governo norte-americano a provincia, já que isso Ine parecía necessario para assegurar os intéresses nacionais norte-americanos.
O mesmo tipo de argumento seria utilizado, anos depois, por Theodore Roosevelt, William Taft e Woodrow Wilson em suas justificativas para intervençôes na Venezuela, na República Dominicana, no Haiti, na Nicaràgua e no México. Na mesma linha, seguiram os sucessivos governos norte-americanos ao longo da Guerra Fría, ora em terras distantes, com a frágil "teoría do dominó" como argumento para sustentar que era preciso conter o comunismo, ora no continente, por meio tanto de açôes multilaterais no ámbito da Organizaçào dos Estados Americanos (OEA) quanto de iniciativas que, velada ou abertamente, implicavam imiscuir-se em assuntos políticos internos aos países situados em sua "área de influencia".
Em todos esses casos, o unilateralismo e a antecipaçâo em relaçao a eventos cuja evoluçâo apenas se podía presumir marcaram a política externa norte-americana. Em todos eles, prevaleceu, na política externa do país, a determinaçào de manter a preponderancia em todas as dimensöes de poder - täo criticada na atual estrategia de segurança nacional dos EUA -, em especial a militar. Em vez de apostar no funcionamento do equilibrio de poder, tratou o governo norte-americano de combinar, ao longo da historia, oisolacionismo, temperado por pragmáticas relaçôes comerciáis com todas as naçôes, e a projeçào de valores e instituiçôes globais em conjunto com ampias intervençôes em momentos críticos. Além das alianças de guerra durante os conflitos mundiais, a manif estaçào de urna supremacía inconteste, incorporada, nos días que correm, na retórica que expôe a Doutrina Powell e em açôes tais como as duas guerras do Golfo.
Assim, além da decisiva participaçào ñas duas guerras mundiais, sucessivos governos dos EUA promoveram políticas externas mais agressivas, ora concentrando-se no hemisferio ocidental (Monroe, ainda no século XIX, e praticamente todos os governos do pós-Segunda Guerra, com variaçôes na intensidade das intervençôes), ora atuando em outras regiôes do mundo. De sua parte, o governo norteamericano, republicano ou demócrata, näo se preocupa agora, e näo se preocupava no passado, em negar ou omitir esse interesse, definindo como objetivos principáis:
"[...] a sobrevivencia dos Estados Unidos como urna naçào livre e indepedente, com seus valores fundamentáis intactos e suas instituiçôes e povo seguros. [. . .] Os Estados Unidos buscam, sempre que possível de forma concertada com seus aliados:
- deter qualquer agressäo que possa ameaçar a segurança dos Estados Unidos e seus aliados e - no caso de falhar a distensào - repelir ou derrotar ataques militares e resolver conflitos em termos favoráveis para os Estados Unidos, seus intéresses e seus aliados;
- contra-arrestar efetivamente ameaças à segurança dos Estados Unidos, seus cidadàos e seus interesses, incluindo a ameaça do terrorismo internacional" (The White House, 1991).
Anos depois, documento análogo afirma:
'Eiste é um mundo em que distinçôes claras entre ameaças à segurança de nossa naçào oriundas do exterior de nossas fronteiras e desafios à nossa segurança originados dentro de nossos limites estào sendo misturados; em que a separaçào entre problemas internacionais e domésticos está se evaporando; e em que a linha entre política interna e política externa está se erodindo. [...] Nós näo somos a policía do mundo, mas, na condiçào de maior potencia econòmica e militar, e com a força de nossos valores democráticos, o engaj amento dos EUA é indispensável para forjar relaçôes políticas estáveis, para tomar o comercio mais livre e para avançar nossos interesses. [...] Nossa liderança deve enfatizar a diplomacia preventiva - por meios tais como o apoio à democracia, a assistência econòmica, a presença militar no ultramar, a interaçào entre militares norte-americanos e estrangeiros, e o envolvimento em negociaçôes multilaterais no Oriente Mèdio e em outras partes do mundo - com vistas a contribuir para resolver problemas, reduzir tensöes e esvaziar conflitos antes que eles se tornem crises. Essas medidas constituem um sabio investimento em nossa segurança nacional porque elas oferecem a perspectiva de resolver problemas com o menor custo humano e material possível" (The White House, 1996).
Essa posiçào encontra, claro, sólidos precedentes. Em parte inspirado emMahan, em parte fundamentando suas açôes emidéias próprias, Theodore Roosevelt, procurou transformar os EUA em agente decisivo na esfera internacional. De inicio, expandiu o poder naval norte-americano, engendrando o processo que transformou o país, em poucos anos, na maior potencia naval do planeta, como se demonstrou na Primeira Guerra Mundial. Em seguida, perseguiu a política de "Portas Abertas" na Asia, especialmente na China. Em pouco tempo, firmou importantes intéresses económicos e comerciáis na regiäo. Ademais, mediou as negociaçôes que puseram firn à guerra entre Russia e Japäo, cujas implicaçôes se manisfestaram tanto na Revouçào de 1917 quanto na redefiniçào do equilibrio de poder na época, mediante a ascensäo do Japäo à condiçào de grande potencia. Por firn, o famoso "Corolario Roosevelt" complementou, em termos conceituais, a Doutrina Monroe, indicando a percepçào do governo norte-americano com relaçào a suas intençôes no hemisferio e servindo de inspiraçào ao que, na Guerra Fría, veio a ser definido como "esferas de influencia". Em outras palavras, como observam Wittkopf e McCormick (2004) na introduçào à excelente coletânea de artigos sobre as fontes domésticas da política externa norte-americana, fatores culturáis e institucionais contribuem, desde os primordios da formaçào do país, para definir as linhas gérais de implementacäo da política norte-americana. A seguir, um desses fatores será discutido de modo mais profundo.
Fronteiras em expansâo
As mudanças tecnológicas que transformaran! o século XX, produzidas e desenvolvidas sobretudo - nao por acaso - no dinámico ambiente constituido pela sociedade e pela economia norte-americana, contribuíram para que se revisassem a naturezae o significado das relaçôes de poder na esfera internacional. Em larga medida, esse processo foi responsável pelo resultado da Guerra Fría: a vitória dos EUA sobre a Uniäo Soviética no período que Gaddis chamou de "longa paz" foi causada tanto pela dimensäo econòmica e política quanto pela militar. Por seu turno, em grande medida, características da sociedade norte-americana, entre as quais cabe destacar a idéia de fronteira em permanente expansâo, contribuíram para que se desenvolvesse esse processo.
Nesse período, a Guerra do Vietnä constituiu evidencia de que a definiçào de intéresses dos EUA no mundo e a conduçào de açôes destinadas a concretizar esses interesses haviam se tornado processus bastante complexos. De um lado, a noçào de segurança nacional já nao se construía com base exclusivamente na idéia de se garantir proteçào ao territòrio (fato que se agravou com o advento dos mísseis intercontinentais), abrindo espaço para que se identificassem interesses nacionais em todas as partes do globo. De outro lado, mesmo distante geograficamente, pelas ondas do ràdio e da televisäo, a guerra fez-se presente nos lares norte-americanos, ensejando novo fortalecimento da populaçâo em sua relacäo com o governo, até no que dizia respeito a temas de política externa.
A opiniäo pública norte-americana, que afinal levou seu governo a capitular diante da resistencia vietnamita, viu-se ainda mais fortalecida em sua capacidade de influenciar as decisôes políticas depois da renuncia do presidente Richard Nixon. Em alguma medida, a idéia de urna fronteira em expansâo, agora urna fronteira tecnologica, servai de pano de fundo para essas mudanças. Como resultado, já que sempre se pode estender a fronteira, ganha força a percepcäo de um processo que funciona como urna especie de jogo de soma variável e positiva, visto que, mesmo assimetricamente, todos poderäo beneficiar-se dos frutos da expansäo tecnológica.
A crescente consciência de que o conhecimento aplicado à produçào explica a forte expansäo econòmica e, pelo menos teoricamente, de que a capacidade de produzir bem-estar encontra seus limites na (infinita?) criatividade humana, presente na obra de Locke (1952) e finalmente demonstrada por Solow (2000), encontrou solo fértil na sociedade norte-americana. Com efeito, nela reuniram-se tradicòes que explicam, em parte, seu dinàmico crescimento: sólidas instituiçôes políticas, prolongada estabilidade econòmica, razoáveis condiçôes de segurança e fortes expectativas de cumplimento de contratos uniram-se como fatores que, articulados, muito contribuíram para favorecer inovaçôes e investimentos de longo prazo. Baumöl (2002) explica esse fenòmeno de forma brilhante e sucinta.
Ademais, o espirito empreendedor típico da ética protestante, auxiliado pela mentalidade de imigrante, facilitou a assunçâo de risco pelos agentes privados. Por sua vez, a permanente preocupacäo com melhorias de infra-estrutura básica no país permitiu a mobilidade dos cidadàos e a perfeita integraçào de mercados (entre os quais o mercado de traballio), cujos dinamismo e inovaçâo foram auxiliados por níveis de proteçâo tarifaria históricamente baixos. Por firn, a competitividade e o fascínio exercido pelo ambiente académico atraíram - e, a despeito das duras regras de imigraçâo estabelecidas no pós-1 1 de Setembro, continua a atrair - muitos dos melhores cerebros do mundo para os EUA, permitindo que lá se produza conhecimento de ponta.
Nessas condiçôes, a fronteira que interessa se transforma substantivamente, migra para outras dimensôes da realidade, mas permanece em expansäo. Näo surpreende, portanto, que a crença na eficacia, efetividade e eficiencia dos mecanismos de mercado como forma de solucionar conflitos se tenha firmado, eia propria, entre os valores da sociedade norte-americana.
No atual contexto internacional, as novas condiçôes tecnológicas favorecem a integraçâo, em redes, de partes do territorio norte-americano às regiòes mais dinámicas do globo. O desafio, mundo afora, já nao consiste em conquistar territorios e subjugar povos; menos aínda em recolher espólios de guerra ou extorquir antigos adversarios. Trata-se, pelo contrario, de celebrar contratos em funçâo de normas aceitas por todos e percebidas como universais; normas construidas, contudo, sobre valores mercantis.
Assim, consolida-se urna estrutura normativa de alcance global, a que voluntariamente aderem govemos e outros agentes na esfera internacional, quase todos sem ao menos questionar os valores embutidos ñas normas desenliadas para urna sociedade atomizada, em que apenas a expectativa de cumplimento dos contratos fornece perspectiva de autocontençâo do uso da força, que passa a funcionar como principal instrumento de regulaçào eficaz dos níveis de violencia.
Gradualmente, na esfera internacional, impôem-se estruturas normativas cuja autoridade reside, a urn tempo, no simples fato de serem normas e na sua justificaçâo fundamentada na adesäo voluntaria de individuos soberanos. De um lado, o simples fato de expressar um comando universal, que prescreve ou proscreve um padräo de comportamento, confere à lei urna posiçâo de autoridade. A autoridade da lei amplia-se à proporçào que, por meio de um processo de mistificaçao, os individuos que a eia se submetem presumem que esse comando tenha resultado de urna prèvia relaçao de autoridade entre agentes políticos. O tema näo é novo: Montaigne observou que o cumplimento da norma näo se deve à presunçâo de sua justiça:
"[...] as leis conservarli seu prestigio näo por serem justas, mas porque säo leis. Esseé o fundamento místico de sua autoridade; nào têm outre [...] Isso Ines é muito proveitoso. Frequentemente säo feitas por tolos, mais freqüentemente por pessoas que devido à aversäo pela igualdade têm falta de eqüidade, porém sempre por homens - autores vàos e incertos" (Montaigne, 2001, livro III, cap. XIII:434).
De outro lado, permanece o pacta sunt sevanda, a necessidade de se organizarem as relaçoes entre agentes livres e auto-interessados, cujas interaçôes sao difíceis e complexas, donde a necessidade de que os contratos se firmem na dupla presunçào, quase sempre implícita, de que se está falando a verdade e de que os acordos seräo honrados. A propria definiçào moral do que é certo passa a ser informada, assim, pelo cumplimento do compromisso voluntariamente estabelecido por individuos livres .
Nesse contexto, ganham relevo conceitos como o de "bem comum", elaborado pela teoria da açào racional para explicitar o modo como cada integrante do grupo assente, mediante cálculos de custo e beneficio, arcar com sua parcela de responsabilidade para que se atinja o interesse coleüvo. Obviamente, o "comportamento carona" é sempre urna possibilidade, razäo pela qual cabe estabelecer estruturas de incentivos seletivos adequadas a constranger cada integrante do grupo a alinhar seus intéresses individuáis aos da coletividade (Olson, 1965; 1982; 2000). Näo constituí coincidencia, portante, o fato de esse mecanismo de produçào de açoes coletivas ser mais estudado, conhecido e aplicado nos EUA do que em qualquer outra sociedade. Pouco a pouco, contudo, sua pràtica se torna universal. O amalgama das relaçoes sociais passa a definir-se, gradualmente, em funçâo de intéresses individuáis registrados em contratos, explícitos ou tácitos, capazes de fazer convergir as expectativas de agentes ñas diversas áreas das relaçoes internacionais .
Se é verdade que a construçào de urna ordern internacional fundada em valores liberáis constituí processo lento e continuo (Ruggie, 1982), näo seria falso afirmar que houve pontos de inflexäo nesse processo. Por exemplo, Pfaff (1993) argumenta que a nova ordern internacional proposta por George Bush logo após o final da Guerra Ría se caracterizou por um reformismo institucionalista que "presume que urna assembléia de governos constituí, ao menos potencialmente, urna forma de democracia mundial" (idem:205). Mas, já que
"[...] a vasta maioria dos membros das Naçôes Unidas é formada, na verdade, por govemos nao-representativos, oligarquías vinculadas a classes ou a interesses específicos, ditaduras ou, aínda, déspotas no sentido primeiro da palavra, [...] eia se parece muito pouco com urna agencia capaz de estabelecer a democracia mundial e o respeito internacional pelos direitos humanos" (ibidem).
Ao considerar a Organizaçào das Naçôes Unidas inapta a promover a democratizaçào das decisôes internacionais, dado seu baixo grau de legitimidade democrática, Pfaff parece nao se dar conta de que a propria idéia de democratizaçào por meio da representaçâo de intéresses e posiçôes políticas em instituiçôes assemelhadas a assembléias constituí a extensäo de um valor atlàntico a outras culturas, nas quais distintas formas de representaçâo de interesses - nao raro fundadas em mitos de criaçào e em vinculaçôes divinas - f oram mais fréquentes ao longo da historia. A criaçào racional de instituiçôes políticas adequadas a mediar conflitos sociais sofreu influencia mais forte da experiencia norte-americana do que de qualquer outra fonte. Na mesma linha, sua dinàmica capacidade de adaptaçào também se vem transferindo as instituiçôes internacionais. Com efeito, como observa Scheffer (1989: 1),
"[...] a exemplo da Constituiçào dos Estados Unidos, a Carta [das Naçôes Unidas] é um documento em permanente expansäo que deve responder a um mundo em rápidas mudanças, em que o arranjo de segurança coletiva do imediato pós-Segunda Guerra Mundial entrou em colapso. Do ponto de vista da escola dos aliados, as palavras genéricas da Carta devem ser lidas pragmáticamente à luz das circunstancias em transformaçào em um mundo turbulento. Isso implica revisar o Direito Internacional de modo a torná-lo compatível com os objetivos de política externa dos Estados Unidos e de seus aliados".
Em outras palavras, de um lado, tem-se a forte presença dos EUA em todos os processos decisorios relevantes no ámbito internacional - muitos dos quais têm lugar em instituiçôes e por meio de regras constituidas no pós-Segunda Guerra Mundial, sob os auspicios do Estado norte-americano . De outro lado, a difusäo de práticas, valores e instituiçôes norte-americanas, que passou também a intermediar as interaçôes de agentes políticos internacionais.
Urna vez que se ressalta a natureza universal das normas e a adesäo voluntaria aos regimes internacionais - mas nao seu inevitável viés axiológico -, nao se percebe a ordern internacional contemporánea propriamente como urna imposiçâo, sobretudo porque a relaçâo principal já nao envolve apenas diferentes agentes, uns em permanente confuto e cooperacäo com os outros; a relaçâo que fundamentalmente define as estruturas de incentivos aos agentes - por conseguirne, também suas agendas - tem lugar entre estruturas e agentes. Ocorre que, ao se submeterem coletivamente as estruturas vigentes, os agentes engendram processus que distribuem custos e beneficios de forma assimétrica.
Nao se trata, portante, de urna "ordern justa", por nao serem justas suas normas; nao se trata de urna ordern simples, pois näo se identifica claramente o modo como se exerce a dominaçào, como se influenciam as percepçôes e o comportamento de agentes específicos. Afinal, a influencia se exerce por meio de idéias e valores, pela retòrica defesa da liberdade individuai (ora referindo-se a Estados Nationals, ora a seres humanos, conforme o nivel de análise em que se construam os discursos) e pela promesssa de urna felicidade geral resultante da soma das felicidades dos individuos atomizados - e näo de laços de solidariedade construidos em funçào de valores estranhos a cálculos de custo e beneficio.
Näo por acaso, a revolta diante do abismo entre expectativas e possibilidades nessa ordern predominantemente liberal, que efetivamente produz riqueza e desigualdade, volta-se também para os símbolos mais caros aqueles que säo percebidos como os principáis beneficiários da "nova ordern mundial". Nessas condiçôes, bandeiras norte-americanas incendiadas em toda parte e ataques aos símbolos do poder econòmico e militar no 1 1 de Setembro; como resultado, pánico de novos ataques a cada data nacional e a perplexidade da classe média norte-americana, que nao consegue compreender a razäo pela qual, no mundo inteiro, retribui-se sua genuina solidariedade missionària, agora concretizada também em obras de fundaçôes e empresas, com sentimentos crescentemente hostis aos EUA (Nye, 2004). Conseqüentemente, aínda, observa-se a silenciosa satisfacäo com que, em toda parte, há quem observe as dificuldades enfrentadas pelos EUA no Iraque e em casa, em materia de direitos civis, e o crescente chamado ao governo para fortalecer o multilateralismo indispensável à soluçào duradoura de seus principáis problemas, nenhum dos quais se origina exclusivamente de fatores domésticos.
Afinal, em parte graças as peculiaridades do sistema político norte-americano, a intensa relaçào com os EUA produziu mudanças em varias partes do mundo. Chettle (1995), por exemplo, argumenta que, ao longo dos anos, a dinámica evoluçâo do sistema político norte-americano
"[...] criou urna seqüencia alternada de comportamentos do tipo 'bom policial - mau policial' que criou dificuldades nao apenas para o relacionamento entre os EUA e seus oponentes, mas também se revelou profundamente desestabilizadora para regimes ditatoriais. [...] [Assim,] porque nao podia dar respostas de urna sociedade livre e poderosa, a única alternativa à disposiçào dos déspotas consistía em isolar seu país de um contato com os Estados Unidos ou tê-lo encapsulado pelos próprios Estados Unidos - em outras palavras, transformar-se em algo como Cuba ou Coréia do Norte" (idem:4-6).
Para o autor, as distintas orientaçôes de política externa em relaçào a países como África do Sul e Uniäo Soviética, resultantes da alternancia entre demócratas e republicanos na Casa Branca e das mudanças de percepcäo da opiniäo pública sobre temas específicos, contribuíram para desestruturar as reaçôes que os governos desses países ensaiavam esboçar as políticas norte-americanas.
Nessas condiçôes, "a dialéüca da política externa norte-americana" (ibidem), fortemente influenciada pela defesa mais ou menos intensa da idéia de liberdade individual, "é urna força muito poderosa, urna tensäo criativa que o sistema político norte-americano efetivamente produz" (ibidem). Ao longo do tempo, em relaçào à África do Sul, a alternancia entre um engajamento consuntivo e a imposiçâo de sançôes contribuiu para fortalecer, no plano interno, os opositores dos governos autoritarios, além de haver tornado pública a execraçào de práticas racistas, especialmente a partir dos anos 1970. Em sua relaçào com a ex-Uniäo Soviética, por seu turno, o governo dos EUA alternou propostas de coexistencia pacífica e fortes aumentos no orçamento militar acompanhados de ameaças e de ambiciosos projetos de dissuasào. Por firn, "a estrategia dos Estados Unidos, como um resultado inconsciente de sua propria complexa natureza, ajudou aproduzir a desintegraçào desses dois sistemas de governo hostis, tornando possível urna mudança pacífica" (¿fera: 18).
A instigante análise de Chetile näo deixa de conferir maior relevancia ao comportamento do Estado, nesse caso considerado eficaz no que diz respeito à produçâo de resultados inesperados. Essa inconstancia no comportamento do governo decorre, em parte, do pluralismo de seu sistema político, preparado para preservar as fundamentáis liberdades de opiniäo, de associaçào e de acesso a processus decisorios relevantes. Sua projeçào no exterior ocorre por meio da idéia de fronteira, que continua norteando a atuaçào política do governo dos EUA, além de ser um valor subj acente na formacäo da sociedade norte-americana; em suma, um fator de identidade nacional.
Com efeito, o norte-americano-padräo tem sempre como valor a possibilidade de expandir sua condiçào de vida, dai os EUA serem identificados por antropólogos - e pelo senso comum - como urna terra de oportunidades. A natureza da fronteira, contudo, transformou-se. Já nao se trata de um territorio a ocupar - embora em algumas circunstancias isso possa ser considerado algo necessario.
A idéia de fronteira concretiza-se hoje, de um lado, na conquista de mercados, o que requer a homogeneizaçào de normas e a aceitaçào, em diferentes jurisdiçôes, dessas normas; de outro lado, a fronteira é também tecnológica, e seu limite permanece em expansäo: enquanto houver imaginaçào, é possível produzir novos conhecimentos, desenvolver novas tecnologías, transformar a natureza em beneficio do hörnern, como defendeu Locke (1952) no Segundo Tratado, texto que influenciou fortemente as discussôes dos Pais Fundadores. Para tanto, é preciso nao só assegurar as liberdades individuáis e o direito de propriedade como também criar condiçôes para que os melhores cerebros possam radicar-se nos EUA ou, pelo menos, trabalhar em fiinçào de intéresses que sejam convergentes com os norte-americanos.
Nos Estados Unidos, a expansäo da fronteira deu-se, de inicio, pela conquista do Oeste. À necessidade de ouro para atender à demanda por liquidez gerada pela revoluçào industrial, somaram-se as sucessivas ondas de imigraçào e a percepçào do governo de que a exploraçào da fronteira era urn bom modo de promover a ocupaçào de seu territòrio e sua eventual ampliaçào. Na pràtica, o papel da fronteira serviu, históricamente, como urna especie de válvula de escape para pressôes políticas sobre o governo, pois os individuos tendem a assumir a responsabilidade pelo fracasso na obtençào de condiçôes económicas mais satisfatórias. Na raíz de todo o processo, permanece a profunda aceitaçào de valores igualitarios, que enfatizam a autonomia dos individuos (Wood, 1991).
Conclusaci
A interdependencia observada ñas relaçôes internacionais contemporáneas caracteriza-se pela existencia de vasos comunicantes entre agentes políticos internos e externos. Esses agentes, entre os quais se encontram os governos dos Estados Nacionais e os órgaos de suas burocracias, avançam seus intéresses em ambientes regulados por normas cujos efeitos nao se restringem a esferas isoladas, seja a interna, seja a internacional. A definicäo das regras dos diferentes jogos em que se envolvem os agentes políticos - eia propria um processo político - requer dos agentes, no mínimo, a capacidade de compreender essa interpenetraçào de normas e valores; e, no máximo, a capacidade de atuar em diferentes arenas, de modo a, por exempo, buscar por meio de processus tipicamente característicos de politica externa atingir objetivos tradicionalmente concebidos como sendo de política doméstica .
A depender do grau de abertura dos sistemas políticos a pressôes e interesses específicos, agentes estrangeiros podem inserir em processus decisorios domésticos suas demandas, que, se vierem a ser aceitas pelos governos em vigor, passam a ser consideradas legítimas na jurisdiçào em que pretendiam inserir-se ou até mesmo contempladas pelos orçamentos de que tencionavam participar.
Os EUA definiram, no pos-Segunda Guerra Mundial, estruturas regulatórias (algumas délas apoiadas por organizaçoes internacionais) que embutem valores liberáis, embora reservem espaço a eventuais açoes dos governos, destinadas a conter pressôes políticas internas. Ao longo desse período, observou-se a utilizacäo da política externa como instrumento de promoçào de valores partidarios, assim como de valores consensuáis da sociedade norte-americana, o que contribuiu para que, do exterior, se percebesse o governo dos EUA como possuidor de vontades inconstantes.
Em contrapartida, verificou-se também a crescente presença de temas externos na política norte-americana, os quais ganham relevo em épocas eleitorais. Inevitavelmente, os partidos políticos buscam fortalecer sua identidade, veicular valores com os quais se identificam, visando, internamente, aumentar a coesäo de seus quadros e, em sua relaçâo com a sociedade, conquistar votos.
Constata-se, nesse contexto, mudançanaintensidade das influencias que fatores externos podem exercer sobre processos políticos tipicamente domésticos, mesmo nos EUA. E obvio que tais influencias têm lugar permanentemente, por meio de grupos de pressäo, da organizaçào de comités de eleitores, da participaçào em debates capazes de influenciar a opiniäo pública, dos próprios incentivos embutidos ñas normas que disciplinan! processos políticos mundo afora. Constata-se também, ato continuo, a elevaçào da influencia que dinámicas internas, especialmente em países como os EUA, exercem sobre processos políticos internacionais.
Como se argumentou aquí, valores, práticas e instituiçôes tipicamente norte-americanas podem ser identificadas ñas normas e instituiçôes internacionais, como resultado nao apenas do relevante papel desempenhado pelo país ñas últimas décadas, mas também de sua política externa, empenhada tanto em alcançar seus intéresses específicos quanto em contribuir para realizar o destino manifesto da naçào. As contradiçôes inerentes ao sistema político dos EUA e a ênfase na construcäo de um arcabouço institucional que protegesse os individuos, de par com a importancia conferida à idéia de fronteira em permanente expansäo, contribuirán! para fortalecer agentes privados mundo afora, a urn tempo tornando os processos políticos internacionais mais parecidos com os norte-americanos e trazendo temas outrora estranhos à sociedade norte-americana para o debate interno.
O resultado do processo foi sintetizado pelo escritor Gore Vidal (apud Strange, 1989: 1): "O imperio norte-americano é urna das invençôes mais bem-sucedidas da Historia; e é ainda mais notável porque ninguém se dà conta de que ele está por toda parte".
Resumo
O Sistema Político dos EUA: Implicaçoes para suas Políticas Externa e de Defesa
O artigo discute a condiçâo e o grau de interdependencia prevalecente no atual contexto internacional e analisa, por diferentes perspectivas teóricas, suas origens e evoluçâo recente. Ao argumentar que os EUA exercem forte influencia na redefinicäo das "regras do jogo" no plano internacional, examina as bases institucionais e culturáis em que se fundamenta a política externa norte-americana. Por firn, avalia a extensäo em que os EUA utilizam normas e valores como instrumentos de projeçâo de sua influencia no ambiente internacional contemporáneo.
Palavras-chave: Estados Unidos - Política Externa Norte-americana - Interdependencia - Normas Internacionais - Regimes Internacionais
Abstract
Influences of the American Political System on US Foreign and Defense Policies
This article examines, from different theoretical perspectives, the characteristics and the degree of interdependence that prevail in current international relations. It argues that the US plays a key role in redefining the "rules of the game" in the international realm, while examining the cultural and institutional basis on which American foreign policy is rooted. Finally, it evaluates the extent in which the US government uses norms and values as instruments to project its influence in current international relations.
Key words: United States - American Foreign Policy - Interdependence - International Law - International Regimes
* Artigo recebido em dezembro de 2005 e aprovado para publicaçâo em Janeiro de 2006.
Notas
1. A titacáo indica a essentia da estrategia estabelecida por Lawrence para combater alemáes e turcos, fortemente superiores, na península árabe (Lawrence, 1991:192).
2. Cabe lembrar que este processo se aprofundou a partir de fins dos anos 1 970 einítio dos anos 1980, quando a chamada "revolucáo liberal" de Thatcher e Reagan restabeleceu as condiçôes de produtividade na economia mundial ao radicalizar instituiçoes liberáis nesses países, contribuindo para fortalecer o papel da democracia como forma de organizaçâo política e o liberalismo como norte da organizaçâo de esforços produtivos mundo afora. Ao cabo, o processo contribuiu nao apenas para encerrar a Guerra Fría, mas também para acelerar o ritmo do processo de interdependencia em ámbito global. A melhor anáhse do processo continua sendo a de Fukuyama (1992).
3. Embora o debate seja antigo (Hoffmann, 1959; Carr, 1964) e estivesse em curso, mantinha-se restrito a estudiosos do Direito Internacional e de áreas específicas da anáhse das relaçôes internationais. Boa síntese e instigante argumento aparecem, por exemplo, em Kratochwill (1989).
4. Estruturas materials e intangíveis; estruturas políticas, económicas e sotiais; estruturas de idéias, de normas e valores mais ou menos compartilhados por individuos dispersos geograficamente, com múlltiplas lealdades políticas. Ver Wendt (1987) e Onuf (1998).
5. A primeira proposta de tratamento sistemático do tema surgiu a partir da discussáo de Singer (1961) a respeito de níveis de anáhse.
6. Ver, por exemplo, Strange ( 1 988). De outro ponto de vista, Milner ( 1 997).
7. Ver Nye (1990; 2002). Essa preocupaçâo tampouco é nova: Carr (1964) destacou a necessidade de se considerar o "poder sobre as idéias" como importante instrumento de pressáo na política internacional.
8. A discussáo encontra-se em Rosow et alii (1 994) e Rosenau ( 1 997). Por outro prisma, Keohane (1984a; 1984b).
9. Evidencias empíricas deste processo abundam: dos números do comercio internacional (nao obstante a reducáo de fluxos observada entre fins da Primeira Guerra Mundial e o fato de Bretton Woods só ter funcionado plenamente nos anos 1960) à mundiahzaçâo das estruturas produtivas; da homogeneizaçâo de padrôes de consumo à circulaçâo de informaçôes em tempo real; da unificaçâo do sistema financeiro international à efetiva integraçâo de redes de tráfico de drogas, armas e seres humanos... Em toda parte se constata o aprofundamento da interdependencia das sociedades e Estados e o crescimento da demanda pela definiçâo de regras globais para um mundo progressivamente integrado. Urna implicaçâo desse processo sobre a quai pouco se reflete é a demanda no sentido de se redéfinir o pròprio conceito de segurança, mediante, por exemplo, a associaçâo da idéia de segurança à permanencia de estruturas regulatórias (segurança jurídica) ou à provisäo de condiçôes mínimas de bem-estar das populaçôes (segurança humana).
10. Näo por acaso, os documentos que resumem a estrategia de segurança nacional dos EUA mencionam a necessidade de se promover a integraçâo de mercados e a consolidaçâo de democracias mundo afora, como forma de avançar os intéresses norte-americanos e de reafirmar sua liderança. Para mencionar apenas os principáis textos, ver National Security Strategy (199 1 ; 1996; 2002), disponíveis em <http://www.whitehouse.gov/>.
11. A respeito de redes, ver Castells (1996).
12. O primeiro autor a formular a hipótese impiíssima, entäo tida como absurda por indicar a prescindibilidade de Deus na formaçâo de um Direito das gentes, foi Grotius (2001), em De Jure Belli ac Pads.
13. Neste exemplo, como em outros casos de Direito Internacional Privado, a adocäo de um ou outro padräo pelas nascentes soberanías foi fortemente condicionada pelo grau de influencia que sobre seus sistemas jurídicos exercia o Direito Romano tradicional.
14. Documento disponível em <http://www.archives.gov/national-archivesexperience/charters/declaration.html>.
15. Via-se a experiencia norte-americana näo apenas como a primeira tentativa de se implementar, em urna siruaçâo real, as idéias republicanas de um governo submetido aos cidadäos; nela, viam-se condiçôes favoráveis a que se enraizassem nesse novo Estado insti tuiçôes liberáis: terra rica, proteçâo dos océanos e individuos dispostos a arriscar-se, já que, em sua maioria, fugiam de guerras religiosas e opressöes políticas.
16. Ver Constituiçâo dos Estados Unidos da América, disponível em <http://www.archives.gov/national-archives-experience/charters/constitution.html>.
17. O sentido de missäo civilizadora (que ecoa tanto as motivaçôes religiosas dos primeiros colonizadores quanto as noçôes racistas de "onus do hörnern branco", já observadas no micio da fase mercantilista da colonizaçâo) marcaría a atuaçâo externa dos EUA a partir de entäo, quer via políticas governamentais, quer por meio de iniciativas genuinamente sociais, entre as quais se destacaram -e se destacam - missöes religiosas e obras assistenciais e educacionais de empresas e rundaçôes. Esse aspecto da inserçâo internacional dos EUA, de que voltarci atratarmais adiante, ébem resumido, porexemplo, por Ferreira (2000).
18. Boa síntese da evoluçâo do sistema financeiro internacional encontra-se em Eichengreen (1996).
19. A respeito do Sistema de Bretton Woods e sua característica de prevalência do liberalismo temperada por espaços para a absorçâo de pressöes políticas específicas, ver Ruggie (1982).
20 . Em sua instigante análise, Rosenau ( 1 990; 1 997) caracterizou o atual contexto internacional como urna especie de bifurcaçâo de processus oriundos de "dois mundos": em um deles, prevaleceriam as tradicionais relacöes internacionais, marcadamente influenciadas por agentes "dotados de soberanía"; no outra, agentes destituidos de soberanía, mas nem por isso menos capazes de estabelecer relacöes de autoridade com outras, seriam os principáis responsáveis por iniciar processos e, dessa maneira, condicionar a agenda internacional.
21. A pròpria ausencia de traduçâo para outras idiomas do conceito em inglés pode ser vista como evidencia dessa dominaçâo.
22. Suas idéias foram inspiradoras, mas podem ser mais bem desenvolvidas com o auxilio de argumentos teóricos como os de Ny e, Onuf e Wendt, posteriores a suas inruiçôes.
23. Para näo mencionar a mais recente polémica inaugurada por Huntington (2004).
24. Dois exemplos saltam aos olhos, um no setor privado, outra envolvendo Estados Nacionais. De um lado, a necessaria adoçâo, por empresas transnacionais de todas as origens, de padröes contábeis definidos em funçâo do sistema norte-americano implica vultosos custos operacionais; sem isso, contudo, seus balanços näo säo levados em conta por investidores e sua condiçâo passa a ser considerada pouco transparente, fazendo com que suas açôes näo sejam negociadas em boisas; por conseguirne, sua presença em mercados globais torna-se inviável. No que concerne aos Estados, a definicäo das regras do comercio internacional e os mecanismos de soluçâo de controversias na Organizaçâo Mundial do Comercio (OMC), claramente inspirados no Common Law, runcionam como urna especie de extensäo, aos países-membros da OMC, de processos e arcabouço regulatório tipicamente característicos do sistema político norte-americano, inclusive no que diz respeito à possibilidade de se veicularem propostas de novas regras e interpretaçôes por meio de açôes de lobby.
25. Isso näo significa que essas estruturas nao contribuam para reduzir custos de transaçâo e assimetrias de informaçâo, como demonstra o argumento neoliberal institucionalista - ver, por exemplo, Keohane ( 1 984a; 1 984b) e Keohane e Nye (2003). Entretanto, os custos de adequaçâo a essas estruturas sao diferenciados conforme os agentes, sendo que, na ordern internacional contemporánea, os privilegiados sao os queja trabalham sob os padröes vigentes na sociedade norte-americana.
26. Valores que, segundo Tocqueville (1977:540), permitiram aos habitantes da América instituir urna "sociedade nova", em que "os bens e os males se repartem com razoável igualdade no mundo".
27. Para outro prisma de análise, ver Grossi (2004).
28. Disponível em <dittp://www.yale.edu/lawweb/avalon/washing.htm>.
29. Embora a linguagem faca referencia a "grandes potencias", em contraste com a visäo mais universalista de Washington (o que em parte retrata as dif erenças entre a posiçâo dos EUA daquela época e de agora), o crucial é a consciente projeçâo de valores ñas relacöes com outras culturas, sempre fundada na convicçâo - näo necessariamente correta - de que, ao fazê-lo, os EUA têm a seu lado a justiça e a morahdade.
30. Curiosamente, embora o governo dos EUA tenha sido acusado de, por meio da operaçâo militar no Iraque, haver deslegitimado a Organizaçâo das Naçôes Unidas, desde o primeiro momento ele näo apenas justificou sua acäo com base na necessidade de f azer cumprir resoluçôes anteriores do mesmo Conselho de Segurança, como também planejou o ingresso de missäo de paz imediatamente depois das operacöes militares mais intensas. A incisiva postura diplomática dos neoconservadores que assessoram o presidente Bush, contudo, foi percebida por analistas e governantes como atitude arrogante, descompromissada com as instituiçôes internacionais e mesmo com valores outrora caros aos próprios norte-americanos. Contribuiu, assim, para opor parte da opiniäo pública internacional - notadamente na Europa - e muitos governos à decisäo de intervir no Iraque, assim como para desgastar a imagem dos EUA na esfera internacional.
31. Na verdade, um problema apenas parcialmente resolvido a partir dos anos 1960, com os movimentos pelos direitos civis, inspirados pelo sonho de Martin Luther King, com as decisöes da Suprema Corte e com o inicio de políticas de acäo afirmativa.
32. Ver Onuf (1989). Filosoficamente, o substrato da ordem enraiza-se, é claro, em Locke.
33. Nao surpreende, portant», o surgimento de extensa literatura sobre regimes internacionais, a começar pelo já clàssico texto de Krasner (1983).
34. Para nao mencionar o deliberado uso de seu "poder brando", pela veiculaçâo de mídia e pela oferta de bolsas de estudo, para proporcionar às elites do mundo inteiro urna formaçâo informada sobre e, na medida do possível, simpática à cultura norte-americana. Sobre o declíhio dessa capacidade, ver Nye (1990; 2002; 2004).
35. A esse respeito, ver Putnam ( 1 988) e Milner ( 1 997) .
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Antonio Jorge Ramalho da Rocha**
** Doutor em Sociologia pela Universidade de Sao Paulo (USP) e professor adjunto do Departamento de Relaçôes Internacionais da Universidade de Brasilia (UnB).
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Copyright Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Jan-Jun 2006
Abstract
This article examines, from different theoretical perspectives, the characteristics and the degree of interdependence that prevail in current international relations. It argues that the US plays a key role in redefining the "rules of the game" in the international realm, while examining the cultural and institutional basis on which American foreign policy is rooted. Finally, it evaluates the extent in which the US government uses norms and values as instruments to project its influence in current international relations. [PUBLICATION ABSTRACT]
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