RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar os conceitos de "solidariedade mecânica" e "solidariedade orgânica", empregados por Durkheim em seus primeiros trabalhos, recorrendo aos debates teóricos e interpretativos que estão na base de uma vasta literatura especializada e, assim, tentar compreender os motivos que o levam a abandonar os referidos conceitos no decorrer de seus trabalhos. Pretende-se, portanto, verificar se essa "ausência" é resultado de uma revisão teórica, ou apenas uma solução pragmática, na medida em que considera essas chaves-interpretativas pressupostas em sua obra.
Palavras-chave: Solidariedade mecânica. Solidariedade orgânica. Evolucionismo. Moralidade e individualismo.
MECHANICAL SOLIDARITY AND ORGANIC SOLIDARITY IN ÉMILE DURKHEIM: TWO CONCEPTS AND A DILEMMA
ABSTRACT
This paper purports to analyze the concepts of "mechanical solidarity" and "organic solidarity", coined by Durkheim in his first works, through the study of the theoretical and interpretative debates that constitute the basis of a vast, specialized literature, in order to understand the reasons why he abandoned such concepts in the course of his carrier. The paper intends to investigate whether such "absence" is the result of a theoretical review or simply a pragmatic solution, in which case such interpretive keys would be already presupposed by the author.
Keywords: Mechanical solidarity. Organic solidarity. Evolutionism. Morality and individualism.
INTRODUÇÃO
Nenhum sistema de pensamento, inclusive sociológico, está alheio a mudanças. Aliás, não são incomuns os desvios de rota empreendidos no decorrer da trajetória de um autor. Conquanto as "rupturas" no interior de um determinado sistema ocorram com alguma frequência, na maioria das vezes o que presenciamos são apenas "refinamentos" teóricos que remetem a pequenas descontinuidades sem, no entanto, configurar grandes alterações em seus pressupostos basilares. O problema é maior quando a própria literatura especializada se divide quanto ao grau dessas mudanças, acusando autores, ora de se desviarem de seus projetos originais, à medida que novos elementos teóricos são incorporados à sua pesquisa, ora de nunca abandoná-los. A teoria sociológica desenvolvida por Émile Durkheim presta-se bem a esse exemplo.
De modo geral, uma das discussões mais acirradas entre os especialistas de Durkheim gravita em torno dos rumos de sua pesquisa, sobretudo após a publicação de O Suicídio, em 1897. Para uma parte de seus críticos (ARON, 2003; GIANNOTTI, 1971; GURVITCH, 1986; ORTIZ, 2002a, 2002b; PARSONS, 2010; PIZZORNO, 2005), o surgimento do referido trabalho constitui um marco na trajetória do sociólogo francês à medida que sua atenção se volta para os elementos da subjetividade humana, mais especificamente para a interiorização dos valores morais embutidos na relação entre indivíduo e sociedade, abandonando, assim, a preocupação primacial com os aspectos morfológicos e positivos, que delinearam seus primeiros escritos em favor dos aspectos "superestruturais" (LUKES, 1984).
Outros intérpretes, porém, defendem a tese segundo a qual esse desvio nunca se deu, visto que todos os elementos explorados por Durkheim nas obras tardias já estavam presentes, ainda que de modo seminal, nas obras da juventude (GIDDENS, 1998, 2001, 2005; GIROLA, 2005). De fato, essa não é uma discussão simples, sobretudo se considerarmos que ambas as posições se assentam em argumentos, até certo ponto, convincentes e estruturados, dificultando a tomada de uma posição frente a este impasse interpretativo.
A polêmica é ainda maior se considerarmos algumas das chaves-interpretativas utilizadas pelo autor nos escritos iniciais e que não voltam mais a aparecer, pelo menos de maneira explícita, nos trabalhos de maturidade. O caso mais emblemático diz respeito aos conceitos de "solidariedade mecânica" e "solidariedade orgânica", que despontam pela primeira vez em sua tese doutoral, Da Divisão do Trabalho Social, publicada em 1893, e que não voltam a aparecer nos trabalhos posteriores. Erigidos a partir da influência evolucionista, principalmente aquela derivada dos trabalhos de Comte, Spencer e Tönnies, esses conceitos tiveram um papel fundamental no esforço empreendido pelo sociólogo em compreender o advento da modernidade.
Ficam, então, as seguintes interrogações: Por que Durkheim jamais voltou a empregar os conceitos de solidariedade mecânica e orgânica? Teria o autor francês percebido as suas fragilidades e, por isso, os abandonou? Em que medida essa mudança de orientação se justifica? Podemos mesmo falar numa "ruptura" entre o "jovem" e o "velho" Durkheim?
Com o objetivo de responder a essas questões, pretendemos compreender a importância desses conceitos para a sua sociologia geral, desvelando, assim, se o autor realmente os abandonou ou se, simplesmente, não voltou a empregá-los por considerá- los pressupostos.
Destarte, este estudo está divido em três partes, a saber: em primeiro lugar, abordamos os conceitos de solidariedade mecânica e orgânica, destacando a sua importância para as principais ideias desenvolvidas pelo autor em sua tese de doutoramento; em segundo lugar, resgatamos as principais críticas dirigidas ao suposto "abandono" dessas chaves-interpretativas em suas obras finais; e, no terceiro e último momento, visamos demonstrar, a partir da análise de algumas de suas obras, que Durkheim jamais abandonou suas premissas originais, e que o fato de não tê-las empregado novamente em nada invalida a importância desses conceitos para o desenvolvimento de sua teoria sociológica.
Para tanto, recorremos a um amplo conjunto de estudos que, embora atravessado por divergências no plano interpretativo, mostra-se imprescindível para uma compreensão mais precisa a respeito da obra durkheimiana.
DA SOLIDARIEDADE MECÂNICA À ORGÂNICA: O EVOLUCIONISMO SOCIAL EM DURKHEIM
A publicação da obra Da Divisão do Trabalho Social constitui um marco na história da sociologia e é considerado o primeiro grande trabalho de Durkheim, sobretudo quanto ao primado do campo social sobre o individual. Embora algumas das teses contidas nesse trabalho já fossem conhecidas tanto do público francês, por meio de autores como Maistre, Bonald, Saint-Simon e Comte, quanto do público alemão, principalmente por meio dos trabalhos de Wundt, Schäffler, Schmoller e Jhering - aos quais Durkheim dedicou um longo artigo após o retorno do estágio que realizou no país vizinho -, a referida obra foi responsável por abrir caminho ao projeto durkheimiano no sentido de consolidar a nova ciência, a sociologia, a despeito da forte influência exercida pelo espiritualismo nos meios acadêmicos franceses.2
Aliás, meses antes, Durkheim sentiu na pele a fúria de seus antagonistas, visto que a defesa de sua tese de doutoramento, que originou a obra que agora analisamos, foi marcada por inúmeras críticas e observações, mas que, ao fim e ao cabo, não foram capazes de evitar o êxito de seu autor e a notoriedade pública de sua obra. A vitória de Durkheim foi a vitória da sociologia, que, sob o clima ainda vívido do republicanismo ascendente, não só se efetivou em termos políticos, como também veio a ocupar um papel importante na condução dos processos educacionais, em que Durkheim, juntamente com alguns republicanos, teve uma considerável participação.
De volta, contudo, à tese de doutoramento de Durkheim, temos indubitavelmente uma tentativa, até certo ponto bem sucedida, de compreender o fenômeno da modernidade, conquanto a perspectiva evolutiva adotada tenha lhe rendido críticas tão severas quanto justas. Entretanto, cumpre perguntar: quem, em pleno século XIX, não se deixou levar pelo discurso da evolução? Até mesmo Marx, cujas ideias estão na contramão do positivismo, não dedicou o primeiro volume de sua obra mais conhecida - O Capital - ao biólogo Charles Darwin?
Atire a primeira pedra quem nunca pecou. O pecado durkheimiano é reflexo de toda uma época. Entretanto, a visão evolucionária empregada pelo mestre francês não se reduz às concepções comtianas, por maior que tenha sido a influência do Curso de Filosofia Positiva sobre suas ideias. Durkheim jamais concordou com a visão teleológica incutida na etapa "positiva-científica" anunciada por Comte, nem mesmo com a ideia de que os modernos são melhores do que os antigos, e é em virtude da negação da carga determinista que a caracteriza que o autor rompe barreiras e, mesmo encerrado num racionalismo em certa medida dogmático3, lança mão de alguns artifícios importantes - na esteira da literatura anglo-saxônica, sobretudo da visão de cultura sustentada por autores como Tylor, Spencer e Boas -, para o desenvolvimento da antropologia e da etnologia francesa, demonstrando que a evolução social não pode ser tomada como garantia de felicidade.
Nesse sentido, todo esforço de Durkheim para compreender o malaise moderno está calcado num olhar voltado para as organizações sociais mais simples, e sua tese doutoral é a prova cabal desta observação. Passemos a analisar as principais ideias defendidas por Durkheim em Da Divisão do Trabalho Social. Dividida em três livros, a referida obra dedica-se, no primeiro deles, a entender a "função" que a divisão do trabalho exerce nas sociedades modernas. Para tanto, o autor vasculha nas chamadas "sociedades primitivas" elementos que lhe possibilitem explicar o motivo segundo o qual uma sociedade tão individualizada quanto a que desponta com a modernidade, caracterizada principalmente pela força dos processos econômicos, não se desfaz, porém, ao contrário, torna as partes que a compõe cada vez mais próximas e interdependentes. O emprego dos conceitos de "solidariedade mecânica" e "solidariedade orgânica" é, nesse sentido, fundamental aos propósitos do autor. Durkheim está convencido de que a modernidade é um fenômeno cuja origem remonta às transformações no interior dos agrupamentos sociais tradicionais. Em outros termos, estes não se tratam de momentos estanques, mas, ao contrário, há entre eles uma conexão umbilical, marcada por continuidades e descontinuidades. O olhar de Durkheim, então, volta-se para tal processo.
Como concluiu o autor, um pouco mais tarde, em A Educação Moral e em As Formas Elementares da Vida Religiosa, certos traços religiosos, típicos da moralidade das sociedades tradicionais, não desaparecem por completo, mas apenas se modificam, isto é, perdem parte do invólucro sagrado e deixam transparecer sua dimensão laica e racional. Daí o autor dedicar uma parte de sua tese, em especial o primeiro livro, ao que há de mais simples em termos de organização social. Ao analisar os grupos sociais segmentários, de formato mais simples, Durkheim demonstra que nestes vige uma solidariedade de tipo mecânico, que se define pela força que a "consciência coletiva" exerce sobre seus membros, e que dispõe de uma moralidade igualmente típica, caracterizada pelo apelo consensual e difuso, o que, por um lado, garante uma forte coesão social e, por outro, dá pouca chance ao desenvolvimento da personalidade individual. Conquanto a divisão funcional nas sociedades tradicionais seja muito rudimentar, decorrência do isolamento a que estão submetidas, a solidariedade social resulta da imposição dos códigos morais, o que, segundo o sociólogo, pode ser constatado a partir da análise do sistema jurídico - considerado a expressão formal das prescrições morais, esse fait extérieur permite ao sociólogo estudar objetivamente o grau de coesão de um grupo social. A prevalência do "direito repressivo" nesse tipo de sociedade é a notação do alto grau de pressão que incide sobre os indivíduos e que, de certo modo, os encurrala como uma onda uniformizante, sancionando energicamente aqueles que transgridem o caráter obrigatório dos códigos morais vigentes. Daí o seu interesse pelo crime, visto que todo ato criminoso sempre desencadeia uma reação contra o ofensor. Durkheim, contudo, não tem dúvidas: esta é uma reação da própria sociedade.4 No caso específico das sociedades primitivas, não é a razão que orienta as punições, mas a passionalidade, e aí reside, na maior parte das vezes, a força desproporcional com que se impõe ao transgressor.
O conceito de "solidariedade mecânica", tal como Durkheim o empregava, permite-lhe expor as fragilidades da argumentação utilitarista, que combateu nesta fase da vida. Segundo os seus representantes, a solidariedade social resultava de trocas econômicas espontâneas entre os indivíduos. Na contramão das explicações oferecidas pela filosofia utilitarista, Durkheim demonstra que não é o indivíduo que funda a sociedade, pois, enquanto categoria sociológica, sua emergência é mais recente do que os utilitaristas podiam antever. Ademais, este também não podia ser responsável pela solidariedade social, visto que qualquer laço contratual pressupõe uma estrutura moral minimamente ordenada. Assim, subjacente à utilização do conceito de "solidariedade mecânica" repousa a convicção de que é a sociedade que funda o indivíduo e não ao contrário, como pretendiam os representantes do pensamento utilitarista. Prova disso é o alargamento das liberdades individuais decorrente do advento moderno. Como tratou de demonstrar, o individualismo - entendido em um sentido muito especial, que nada tem a ver com o sentido que os utilitaristas lhe davam - é produto da emergente sociedade moderna, em que a forma de solidariedade difere da que caracterizava os organismos primitivos.
Mas o que permitiu essa passagem? Como as sociedades tradicionais originaram as complexas organizações sociais? A explicação oferecida em termos morfológicos é de certo modo bastante simples. Em consonância com a visão evolutiva de Spencer e Tönnies, Durkheim afirma que esses agregados, segmentos similares e homogêneos sem nenhuma relação entre si só se transformam à medida que a "densidade material", isto é, o número de indivíduos em relação ao território, e a "densidade moral", que corresponde à qualidade das comunicações e das trocas entre aqueles, se intensificam e engendram um processo de especialização das funções sociais que conduz os indivíduos a uma relação de dependência mútua: eis o que o sociólogo francês denomina de "solidariedade orgânica".
Na ótica de Durkheim, portanto, as modernas formas de organização social, assentadas na prevalência das relações econômicas, desenvolvem um tipo de solidariedade funcional que aproxima indivíduos na diferença. Aliás, é essa a vantagem da solidariedade orgânica quando comparada ao do tipo mecânico, a saber, permitir aos indivíduos ocupar uma diferente função e viver dentro de certa razoabilidade. Nesse sentido, o avanço da divisão do trabalho é o que pode evitar a luta irracional pela sobrevivência, haja vista que cada indivíduo desenvolve uma função indispensável à sobrevivência da vida coletiva. A divisão funcional podia amortizar a "luta pela vida" à medida que permitia aos indivíduos empregar seus talentos naturais. Mas Durkheim estava cônscio de que isso nem sempre ocorria. Como ele próprio chegou a constatar, a divisão "forçada" do trabalho refletia o primado dos processos econômicos no mundo moderno sem, contudo, dispor de uma moralidade adequada aos novos tempos que irrompiam dos confins da tradição.5 Aliás, Durkheim ensaia uma explicação sobre os fatores que fomentavam esse "desvio", a saber, o descompasso entre o avanço econômico, sem dúvida mais acelerado, e o avanço da moralidade moderna, calcada no valor da singularidade da pessoa humana. Embora só tardiamente, durante as discussões públicas que marcaram o affaire Dreyfus, tenha clarificado alguns pontos fundamentais a respeito do "culto ao indivíduo", como denominou a moralidade típica do mundo moderno6, há, em sua tese doutoral, um esboço sobre o tema. Conforme explicitou em Da Divisão do Trabalho Social, a intensificação da divisão funcional contribuiu no sentido de libertar o indivíduo dos fortes laços morais que configuravam as sociedades segmentadas, todavia, o "individualismo moral", que não deve ser tomado como um sentimento egoísta, mas antes como resultado de um lento processo social cuja origem remonta ao surgimento da modernidade, ainda não tinha se consolidado. Na esteira do pensamento oitocentista, a moral do indivíduo, tal como Durkheim a concebe, não é só uma apologia à universalidade da espécie humana, mas também um importante elo teórico capaz de ligar as duas pontas da aporia que tanto o incomodava e que norteou a sua primeira grande pesquisa, a saber, a expansão da divisão do trabalho, o decorrente enfraquecimento dos antigos laços morais e a dependência cada vez maior dos indivíduos em relação à sociedade.
De fato, como observa Pizzorno (2005), as implicações em torno do papel do indivíduo nas sociedades modernas não podem ser avistadas nesta obra de Durkheim. Contudo, o caráter sagrado atribuído ao elemento humano, como mais tarde ficou explicitado em O individualismo e os Intelectuais (DURKHEIM, 1975), não deixa de coser os dois lados do problemático indumentário moderno. A especialização laboral e a maior liberdade de ação conquistada pelo indivíduo não colocavam em risco a coesão social à medida que os valores comuns não se esfacelaram por completo. Embora o peso da tradição tivesse diminuído com o despontar da modernidade, havia ainda um ponto que igualava a todos: a condição de seres-humanos. É certo que há uma similaridade latente entre o "culto ao indivíduo" e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Isso talvez decorra do interesse que Durkheim nutria por alguns expoentes do iluminismo francês, como Montesquieu e Rousseau, ambos objeto de análise de sua tese latina.7 Mas também Kant tem, neste caso, um papel fundamental. Basta lembrar a influência do neokantismo e da grande difusão dos ideais republicanos quando Durkheim ainda era um jovem estudante. Renouvier é o exemplo mais bem acabado. Com efeito, o sociólogo francês parece convencido de que a sociedade moderna não sucumbia frente o avanço desenfreado da economia de mercado e da liberdade cada vez maior da qual desfrutavam os indivíduos, não só porque a divisão do trabalho tratava de aproximá-los, mas sobretudo em decorrência da nova moralidade, no qual o núcleo é o próprio indivíduo.
Desse modo, o que Durkheim chama de "solidariedade orgânica" não prescinde dos valores e laços morais, como alguns críticos erroneamente apontam (ARON, 2003; PARSONS, 2010). No fim das contas, não é a sociedade uma "comunidade moral"? Há nesta observação dois pontos importantes. O primeiro, como já foi demonstrado, diz respeito às posições sustentadas pelos utilitaristas. Durkheim simplesmente rejeita a explicação segundo a qual as relações entre os indivíduos se assentam em trocas espontâneas e geridas pelo interesse próprio. Mas há um segundo ponto não menos importante. Se a modernidade, a despeito do argumento utilitarista, dispõe de um conjunto de valores que antecede essas relações, isto é, "o elemento não contratual do contrato", este já não apresenta a mesma rigidez de outrora. Há aqui uma franca oposição ao pensamento conservador de Bonald, Maistre, Chateaubriand e até mesmo de Comte, quanto a um pretenso resgate dos antigos valores vigentes às vésperas da Revolução Francesa (GIDDENS, 2005; NISBET, 2003). A inclinação liberal que orientou todo o processo de formação de Durkheim transparece com toda a sua força. Uma das características fundamentais da modernidade era a de justamente valorizar o indivíduo.
Sem dúvida, como assinala Domingues (2004), a veia positivista de Durkheim é equilibrada pela influência do kantismo. Mesmo Giannotti (1971), cujas críticas ao racionalismo durkheimiano são conhecidas, não deixa de mencionar esse fato. A "solidariedade orgânica", conforme esclarece Duvignaud (1982), não pode ser tomada em um sentido meramente econômico, pois não pode prescindir de uma moralidade que, no caso moderno, está centrada na autonomia humana.8 Ainda que para alguns intérpretes (AUGUSTO, 2010; FERNANDES, 1994), essa autonomia seja sempre restrita, à medida que é norteada pela disciplina e pela abnegação, a razão e a possibilidade de transformação da moral instituída não estão ausentes do horizonte durkheimiano, sobretudo quando se considera, a exemplo de Weiss (2008), a racionalidade que orienta a ação moral como promotora da passagem do campo "positivo" ao "normativo", e o indivíduo, concomitantemente, como "objeto" e "sujeito" da moral.
Posto isto, uma dúvida fundamental se impõe, a saber, por que Durkheim jamais voltou a empregar os termos "solidariedade mecânica" e "solidariedade orgânica" em seus trabalhos posteriores? Se o tema da modernidade, tão caro a sua teoria sociológica, está no epicentro da discussão sobre a passagem das sociedades primitivas às complexas, por que então o sociólogo o teria "abandonado"?
Antes, porém, de tentar responder a essas questões, cumpre analisar a argumentação segundo a qual Durkheim teria aberto mão dos referidos conceitos. É este o tema da próxima seção.
ENTRE O POSITIVISMO E O KANTISMO: O PROJETO DURKHEIMIANO SOB A ÓTICA DOS CRÍTICOS
As divergências acerca dos rumos da teoria sociológica durkheimiana são muitas. Tal fato, sem dúvida, deriva das ambiguidades que marcam a obra do autor e que suscitam, até hoje, uma série de mal-entendidos (DUVIGNAUD, 1982). De certo, a linguagem empregada por Durkheim jamais ficou imune à força dos críticos que, sempre atentos, escancaram as fragilidades contidas em seu sistema, bem como os movimentos do autor diante das aporias muitas vezes engendradas por ele mesmo (PIZZORNO, 2005). Mas, em que pesem as dificuldades enfrentadas, Durkheim, como demonstra Domingues (2004), nunca se desmentiu quanto aos seus propósitos originais: fundar uma nova ciência e estipular o seu objeto e os seus métodos.
Contudo, quando o assunto gira em torno dos interesses das obras iniciais e das obras finais de Durkheim, o debate alcança um tom quase dramático. Isso porque as interpretações se dividem e desencadeiam uma série de problemas cuja resolução nem sempre pode ser expressa em termos claros e distintos. Em outras palavras, entre o branco e o preto sempre existe uma escala cinzenta e intermediária que impede soluções rápidas, do tipo maniqueísta. No caso específico de Durkheim, essa escala pode ser atrelada à sua teoria sobre a modernidade e às influências que a tradição exerce sobre sua configuração. Procuremos, então, expor esses dilemas de um modo mais claro e, por que não, didático.
Pode-se afirmar que a discussão em torno dos rumos da teoria sociológica durkheimiana está atrelada ao positivismo e ao kantismo. Grande parte dos especialistas aponta um deslocamento de uma visão essencialmente morfológica, característica das obras iniciais do autor, para uma visão moral e simbólica, presente nas obras tardias. De fato, é difícil negar essa transição quanto às preocupações do sociólogo francês. Contudo, cumpre analisar em que consiste cada uma dessas etapas. Quando se afirma que Durkheim, no início da carreira, enfatizou os aspectos estruturais ou morfológicos, está se querendo dizer que o autor procurou demonstrar a maneira como a sociedade, em suas estruturas, influi na vida de seus membros no sentido de englobá-los - como no caso da solidariedade mecânica -, ou liberá-los - como se dá com a passagem para a solidariedade orgânica. Em ambos os casos, a sociedade precede logicamente os indivíduos e, conquanto só possa existir por meio destes, constitui uma força distintiva que se faz sentir por meio da maior ou menor pressão exercida pela "consciência coletiva". Tanto a "exterioridade" quanto a "coerção" surgem como características do que Durkheim denomina de "fato social". A própria passagem da solidariedade mecânica à orgânica é explicada pelo autor em termos puramente morfológicos, isto é, através do aumento da densidade material e moral.
Nota-se claramente a influência que autores como Montesquieu e Rousseau exerceram sobre as concepções do autor, embora seja possível, ao se tratar da precedência lógica do social sobre o individual, aproximar as posições sustentadas pelo mestre francês das premissas aristotélicas - à medida que, em termos lógicos, segundo o estagirita, o homem é um animal potencialmente social, cuja realização plena só pode ocorrer no interior da pólis (CHAUI, 2002, p. 464-465).9 Em suma, a sociedade é, nessa fase, tratada em termos causais, e o indivíduo, na maior parte das vezes, em termos determinísticos. O primado do social sobre o campo individual está calcado na visão objetivista sustentada pelo autor. Na medida em que, para o sociólogo, a sociedade não se reduz a mera soma das partes, seu caráter sui generis explica a coerção que exerce os fatos sociais sobre as consciências particulares, o que delineia um movimento de fora - do campo social - para dentro - em direção ao indivíduo. Pelo menos nas primeiras obras, não fica claro em Durkheim um posicionamento mais cuidadoso em relação ao indivíduo.
Não por acaso, como argumenta Giddens (1998), nesse momento Durkheim emprega o termo "indivíduo" para se referir a tudo que escape ao campo social.10 Só mais tarde o sociólogo francês se dá conta da multiplicidade de sentidos contidos na referida expressão. Fica claro, porém, que a sua posição inicial é antes resultado do embate travado com o pensamento utilitarista e de seu esforço para definir as fronteiras da ciência social. Pouco mais tarde, o próprio autor concedeu um espaço maior ao indivíduo, principalmente nas obras tardias, quando passou a entendê-lo não só como "portador" dos elementos que a sociedade lhe imputa, mas também como "representante" de uma nova moralidade centrada na "racionalidade" e na "autonomia" - como procurou demonstrar na primeira parte da sua Educação Moral.
Mas, conforme assinalamos, segundo alguns de seus intérpretes, Durkheim teria abandonado, na fase final de sua carreira, o viés morfológico e positivo que tanto caracterizou as suas primeiras publicações, em detrimento de uma perspectiva mais voltada aos aspectos morais e simbólicos incutidos na relação entre indivíduo e sociedade. Há, entretanto, dois pontos importantes nesta tese. Primeiramente, é preciso destacar o fato de que esta posição supõe uma divisão entre um "primeiro" e um "segundo" Durkheim. Levada às últimas consequências, esta divisão incorre na ideia de amadurecimento das teses durkheimianas, o que, por sua vez, deixa a impressão de que tudo aquilo que o autor expressou em suas obras da juventude fora simplesmente abandonado na fase seguinte. A referida leitura está calcada nos impactos que os estudos antropológicos dedicados ao fenômeno da religião nas sociedades primitivas tiveram sobre a obra de Durkheim, quando este passa a se preocupar com questões referentes à moral e à religião.11 Em segundo lugar, a separação do "primeiro" e do "segundo" Durkheim está assentada em outra ideia, não menos discutível, de que a sociedade é uma espécie de "ser" ontologicamente superior às consciências particulares a ponto de possuir uma "alma", o que se deve principalmente à publicação do artigo Representações Individuais e Representações Coletivas. A maneira como o autor se expressa e o conteúdo das ideias que defende no referido texto certamente justifica esse tipo de crítica.
Por outro lado, se há uma coisa que Durkheim se esforçou em provar ao longo de vários anos é que a sociedade não deve ser "reificada", pois, em última análise, ela só existe por meio dos indivíduos. Com efeito, a sociedade não está "solta no ar". Mesmo a ideia segundo a qual as "representações coletivas" são autônomas e capazes de gerar outras representações deve ser tomada com cuidado, pois isso não significa que estas independam completamente da estrutura social e dos próprios indivíduos. Como adequadamente apontou Tiryakian (1962), Durkheim tinha presente duas ordens de fatos sociais os quais procurou distinguir. A primeira categoria corresponde aos fatos da "morfologia social" - ecológicos e demográficos - que dão origem ao segundo tipo que são os fatos das "representações coletivas". Estes podem gerar novos "fatos sociais", cuja origem morfológica não é possível determinar. Ademais, podem influir, ou até mesmo gerar, fatos de ordem morfológica. Por consequência, muitos de seus comentadores identificaram uma mudança de foco ao comparar os primeiros e os últimos trabalhos do autor. Enquanto os escritos iniciais tratam a estrutura social como fonte dos fatos mentais, os escritos finais enfatizam a autonomia das "representações coletivas" em relação aos epifenômenos de base morfológica.12 Mas, de fato, todos esses fatos e representações não se desgarram totalmente da base morfológica. Há entre esses elementos uma conexão e, ainda que a análise de Durkheim tenha sofrido um deslocamento, disso não decorre que o autor tenha abandonado as teorias desenvolvidas no começo da sua carreira. Nisto repousa a necessidade de distinguir uma "reorientação" de uma "ruptura". Antes, porém, analisemos, com um olhar mais detido, o conteúdo das principais críticas dirigidas a Durkheim.
Um dos críticos mais refinados de Durkheim, Nisbet, naquela que é considerada uma das mais celebradas obras sociológicas do século XX, Formación del Pensamiento Sociológico, publicada originalmente sob o título The Sociological Tradition (1966), defende que o sociólogo francês deslocou sua preocupação inicial com a morfologia para os elementos de cunho moral. Essa inferência se assenta na percepção de que o mestre francês teria aberto mão de suas teses iniciais, por demais arraigadas em certa visão estrutural, em detrimento de uma visão simbólica construída a partir de O Suicídio (DURKHEIM, 2005b). Esse insight seria fruto de um processo de "amadurecimento", que reforçado pelos estudos sobre temas concernentes à religião, mais tarde realizados, teria sido responsável por mudar radicalmente a estrutura de seu pensamento em direção a uma leitura hiperespiritualista da sociedade. No fim das contas, é como se Durkheim, principalmente nas obras finais, creditasse à sociedade, entendida como uma entidade, as características próprias das personalidades individuais. Isso obviamente dá a impressão de que Durkheim fracassa em seu esforço no sentido de negar o indivíduo da psicologia, na medida em que termina por ver a sociedade como uma personalidade autônoma e autoconsciente. Esse tipo de crítica, que também encontramos em autores como Gurvitch (1986) - Vocação Actual da Sociologia- e Adorno (2008) - Introdução à Sociologia -, para mencionar os intérpretes mais importantes, difundiu-se entre os membros da comunidade acadêmica, em especial aqueles que se dedicam à compreensão da história da teoria sociológica, resultando numa leitura até certo ponto incapaz de conectar o "primeiro" e o "segundo" Durkheim - utilizando uma expressão de Ortiz (2002a). Neste tipo de análise, contudo, fica implícita a rejeição dos conceitos de solidariedade mecânica e orgânica, empregados à exaustão em sua tese de doutoramento, mas pouco utilizados nas obras seguintes, haja vista que o sociólogo, de uma maneira mais ou menos sorrateira, passa, na visão destes intérpretes, a se dedicar apenas e sobremaneira aos fenômenos simbólicos e espirituais inerentes ao campo social. Daí a impressão da "ruptura" ou da "descontinuidade" a que nos referimos acima. Mas isso é o mesmo que pressupor a ideia segundo a qual Durkheim se desfez de tudo que havia produzido anteriormente, isto é, tivesse admito o "erro" de suas produções anteriores.
Dessa interpretação, se depreende outra, não incomum, segundo a qual Durkheim teria substituído certa visão objetiva dos processos socializadores, tão frequente em seus escritos de juventude, por um viés subjetivista. Haveria, portanto, um "deslocamento" fulcral em sua obra em direção à subjetivação moral - o que não implicou numa abertura para uma sociologia do indivíduo. Assim, a própria noção de "coerção" teria passado por uma transformação e, ao invés de falar de uma coerção direta e objetiva, o sociólogo passa a empregar o termo como sinônimo de internalização dos valores instituídos. Ademais, a própria sociedade, vista como uma espécie de "Ser", por suas características quase ontológicas, possuiria, segundo a leitura proposta, uma subjetividade e, portanto, uma consciência independente dos epifenômenos da base morfológica. Fica assim a impressão de que a consciência coletiva - e as próprias representações coletivas que dela derivam - invalida as consciências singulares, e essa nulidade desponta como reflexo da posição conservadora que caracteriza sua sociologia "sem sujeito" (DUBET, 1996). A preocupação do autor com a "ordem", conforme a argumentação de alguns de seus críticos, explica o trâmite da "morfologia social" para a "psicologia social", colocando as consciências particulares à margem de sua teoria sociológica.
Cumpre, porém, perguntar: se estas linhas interpretativas estiverem corretas, como explicar o sentido evolutivo que Durkheim empregou em suas obras tardias? Como ignorar o fato de que a comunicação, nem sempre dicotômica como a princípio possa parecer, entre solidariedade mecânica e orgânica fizesse parte de suas preocupações na vida madura? Como entender sua teoria moral, que dentro de um plano evolutivo pressupõe a emergência de uma nova forma de moralidade mais aberta às necessidades individuais, sobretudo no que concerne à liberdade de pensamento e ação? Na tentativa de refutar essas leituras, tão difundidas entre os críticos de Durkheim, é que passamos agora a analisar alguns de seus trabalhos, publicados após O Suicídio, com vistas a passar a limpo essa suposta tese da "ruptura".
O PROJETO DE UMA VIDA: A "FIDELIDADE INVISÍVEL" DE DURKHEIM
É lugar comum entre os especialistas o esforço despendido por Durkheim para conceder à sociologia um status acadêmico, científico. De fato, é impossível não reconhecê-lo. Durkheim fez a sociologia parte de sua vida, a ponto de se confundir com ela. Quem ousaria negar que este alsaciano foi o grande "arquiteto" da ciência social? Contudo, as implicações desse glorioso empenho só podem ser adequadamente compreendidas caso se considere as questões com as quais o sociólogo se debateu. Entre os temas de interesse, sem dúvida, o problema da autoridade apropriada ao Estado industrial moderno desponta como muita força em sua teoria (GIDDENS, 1998). Suas preocupações gravitavam em torno das rápidas mudanças desencadeadas pela industrialização e seus impactos sobre a vida social. Por isso, em Da Divisão do Trabalho Social, Durkheim lança mão de uma discussão acerca das formas de solidariedade, dedicando-se ao estudo tanto das sociedades primitivas quanto das modernas, com vistas a compreender as permanências e as transformações processadas num escopo evolutivo. Essa perspectiva evolucionária, sem dúvida, repercutiu nos trabalhos que se seguiram, de tal modo que não seria demais afirmar que o autor, no desenvolvimento de sua obra, manteve-se fiel ao esquema adotado em sua tese doutoral, ainda que essa fidelidade tenha sido inconsciente e, portanto, invisível. É o que faremos a seguir.
OS ECOS DA SOLIDARIEDADE "MECÂNICA" E "ORGÂNICA" EM O SUICÍDIO
O Suicídio é uma obra singular. Para a maior parte dos intérpretes de Durkheim esse trabalho constitui um aprofundamento de algumas das questões levantadas pelo autor em sua tese doutoral, abrindo espaço para uma teoria da integração cujo fulcro é a relação entre indivíduo e sociedade. Disso decorre sua preocupação com os impactos concernentes à maior ou menor qualidade do vínculo que se estabelece entre ambos (ARON, 2003; GIROLA, 2005; LUKES, 1984). Ao focar a taxa de suicídio, isto é, a soma dos números de "mortes voluntárias" em relação a uma determinada população, e analisar as suas flutuações, a partir do emprego do método clássico das variações concomitantes, Durkheim pretende compreender as relações entre o indivíduo e a vida coletiva, sem recorrer às explicações de tipo psicológico. Há, por parte do autor, uma declarada discordância em relação às interpretações de cunho individualista, e daí a necessidade de exaltar os aspectos sociais responsáveis, em sua ótica, por interferir diretamente na ação do suicida. Conforme destacou nesta obra, ao comparar as taxas de suicídio em diferentes países, muitos fatores como a religião, o estado civil, o tipo de organização familiar, o gênero, etc., podem reforçar certa propensão psíquica - haja vista que Durkheim não nega tal possibilidade - do sujeito a dar fim à própria existência. De todo modo, as conclusões do sociólogo são bastante claras: o fenômeno do suicídio, por mais individual que possa parecer, não pode ser inteiramente explicado à luz da psicologia. A sociedade, mas do que se imagina, tem enorme e decisiva influência em sua motivação.
Mas a estratégia de Durkheim em se dedicar ao estudo do suicídio, a princípio o mais particular dos fatos, constitui não só uma tentativa de afastar qualquer resquício de psicologismo, mas também um esforço no sentido de consolidar a sociologia - na esteira do que já havia sido anunciado em seus primeiros artigos. Interessante, porém, é que a tipologia do suicídio estabelecida por Durkheim nesta obra é bastante coerente com o modelo evolutivo apresentado em Da Divisão do Trabalho Social. Como é sabido, o sociólogo aponta em três formas de suicídio: o "altruísta", o "egoísta" e o "anômico".13 Todos esses tipos de suicídio se referem, em maior ou menor grau, ao tipo de laço que se estabelece entre indivíduo e sociedade. Quanto mais forte for a integração entre eles, menores a chances do suicídio ocorrer. As sociedades de solidariedade mecânica são exemplos claros disso. Conquanto as mortes voluntárias não estivessem completamente ausentes, quase sempre resultavam de fortes imposições sociais. O suicídio altruísta, sem dúvida, demonstra a veracidade desta proposição. O aumento do número de suicídios, portanto, coincide com o alargamento das liberdades individuais e, por conseguinte, a emergência da solidariedade orgânica.
Não por acaso, os dois últimos tipos de suicídio (egoísta e anômico) são muito comuns nas sociedades modernas. O enfraquecimento e a consequente fragmentação da consciência comum, por um lado, e a ampliação da capacidade deliberativa do indivíduo, situação típica do mundo moderno, por outro, certamente contribuíram para este crescimento. Isso explica a desconfiança de Durkheim em relação à felicidade do homem moderno diante da evolução social. Este, ao contrário do que imaginavam os economistas clássicos, não pode ser considerado mais feliz do que o homem do passado. Se a sociedade hoje oferece maiores possibilidades, inclusive de conforto, também é responsável por engendrar certos desejos que por vezes não podem ser tão facilmente satisfeitos. É justamente essa distância entre os desejos socialmente gerados e as possibilidades reais de satisfação o que pode acentuar as taxas de suicídio.14 Essa mudança paradigmática, por sua vez, está diretamente relacionada ao advento do mundo moderno e do tipo de solidariedade que se estabelece (de tipo orgânico). O individualismo como resultado do surgimento de formas mais complexas de organização social está na própria base dos suicídios anômico e egoísta. No primeiro caso, devido às transformações aceleradas que se processaram na modernidade, desacompanhadas de uma regulação adequada e capaz de proteger o indivíduo de si mesmo. No segundo caso, o suicídio resulta do isolamento pernicioso e doentio que se origina no enfraquecimento dos vínculos entre indivíduo e sociedade. Em ambos os casos, contudo, nota-se claramente que Durkheim raciocina em termos evolutivos, tal como em sua tese doutoral.
Com efeito, ainda que conceitos-chave como os de "solidariedade mecânica" e "solidariedade orgânica" não apareçam textualmente, os movimentos que o autor realiza e as conclusões a que chega deixam transparecer que todo seu raciocínio neles se assenta. Nesse sentido, não seria demais afirmar que O Suicídio, apesar de seu caráter empírico, está na esteira Da Divisão do Trabalho Social, pelo menos no que diz respeito à perspectiva histórico-evolutiva proposta nesta obra.
A EMERGÊNCIA DA "SOLIDARIEDADE ORGÂNICA" E O "INDIVIDUALISMO ÉTICO"
Se em Da Divisão do Trabalho Social Durkheim enfatizou o fenômeno da modernidade por meio da emergência da "solidariedade orgânica", também preparou caminho para uma discussão em torno do fenômeno do individualismo. Essa discussão, contudo, desenvolveu-se quando o sociólogo passou, a partir de 1898, a se dedicar ao estudo dos fenômenos religiosos. Dessa época data o artigo O Individualismo e os Intelectuais, publicado no calor do Affaire Dreyfus.
Adotando um tom polêmico, em oposição a um artigo do pensador conservador católico Ferdinand Brunetière, publicado algum tempo antes, Durkheim procura esclarecer sua posição em relação ao individualismo e, correlatamente, marcar a devida distância da acepção utilitarista. Para alguns intérpretes (GIDDENS, 1998; GIROLA, 2005), o referido artigo possui o mérito de mostrar com precisão a visão sustentada por seu autor acerca do individualismo, sem perder de vista a perspectiva sociológica, à qual se dedicou durante toda a vida. Decerto, trata-se de um trabalho importante. Percebe-se uma continuidade com algumas das ideias expostas em Da Divisão do Trabalho Social, como aquela que submete o alargamento das liberdades individuais aos processos sociais. Aliás, é neste ponto em especial que desejamos nos deter.
No referido artigo, Durkheim procura diferenciar o "individualismo utilitarista" do "individualismo moral", demonstrando que não se pode tratá-los igualmente. O primeiro se assenta em certa visão de sociedade que o autor rechaça, a saber, aquela segundo a qual a sociedade pode ser explicada a partir dos intercâmbios econômicos que se estabelecem entre os indivíduos. Durkheim jamais aceitou essa ideia. Isso seria o mesmo que atribuir às relações interesseiras, supostamente livres de qualquer influência coletiva, a origem da vida social. Quanto ao segundo tipo de individualismo, o ético, Durkheim destaca seu caráter eminentemente social, que vai resultar no "culto ao indivíduo", típico das sociedades urbano- industriais. Trata-se de um tipo muito especial de individualismo, que não se confunde com o dos economistas clássicos e dos utilitaristas. O individualismo ético preconizado por Durkheim retira sua força e autoridade da própria sociedade. Em outros termos, a emergência da sociedade moderna, caracterizada por uma acentuada divisão funcional, abriu espaço para o indivíduo, ausente como se viu nas sociedades tradicionais, e o colocou no centro de uma nova moralidade, em que o próprio homem passou a ser objeto de culto.
Há, nesse ponto, uma nítida aproximação com as ideias iluministas concretizadas na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e com certa tendência universalista presente na filosofia kantiana.15 Essa nova moralidade contrabalança a diversidade moral surgida da divisão do trabalho, pois se refere não a este ou aquele homem, mas ao homem em abstrato. Afinal, esta é, segundo Durkheim, a única qualidade que diz respeito a todos os indivíduos, independente da classe, gênero ou religião: somos todos seres humanos.
Não é difícil notar que, ao estipular as bases de seu individualismo ético, Durkheim está raciocinando em termos de solidariedade mecânica e orgânica, isto é, a partir de um viés evolucionista. Aliás, o culto ao indivíduo é um atributo das sociedades altamente desenvolvidas, pois, em organismos sociais simples, uma moral centrada no indivíduo seria impossível. Uma justificativa mais refinada, contudo, só seria oferecida mais tarde, quando o sociólogo passa a se dedicar mais detidamente ao tema da moral. Afinal, o que teria viabilizado em termos sociais esse primado do indivíduo?
A EDUCAÇÃO MORAL E A MORALIDADE DOS TEMPOS MODERNOS
Durkheim sempre demonstrou grande interesse pelo tema da moral. Isso fica evidenciado em seus primeiros artigos. Contudo, é em sua obra A Educação Moral16 - (DURKHEIM, 2008a) organizada a princípio para ser um trabalho que condensação de suas ideias acerca do tema da moralidade, mas que devido a seu interesse pelo fenômeno da religião, não foi totalmente concluída - que o autor submete de maneira clara, e até certo ponto didática, sua análise ao crivo daqueles que se interessam pelo assunto. Toda a primeira parte da referida obra centra-se na análise dos elementos que compõe o fenômeno moral. Grosso modo, o sociólogo procura definir o que é o fato moral. Ora, segundo Durkheim, não existe povo que não tenha sua moral. Aliás, o autor atribui uma dimensão histórica inegável ao fenômeno da moralidade. Ainda que os povos primitivos tenham erigido sistemas morais de cunho religioso, à medida que "a maior parte dos deveres não são dos homens para com os homens, mas destes para com os deuses", e onde qualquer violação é fracamente reprimida, "apenas as noções religiosas poderiam constituir a base de uma educação cujo principal consistia em ensinar ao homem a maneira de se comportar em relação aos seres religiosos." (DURKHEIM, 2008a, p. 22); contudo, atualmente, a situação é bem diferente, pois, como ressalta o sociólogo, o próprio homem se tornou um domínio sagrado, passando a ser cultuado. Esse novo cenário se refere às transformações inerentes ao campo da moralidade. Acompanhemos o raciocínio do autor.
Segundo Durkheim o fenômeno moral é constituído por três elementos, a saber, o "espírito de disciplina", o "espírito de abnegação" e o "espírito de autonomia". Os dois primeiros elementos são inerentes a qualquer sistema moral. Isso por que toda a moral exige, de um lado, regularidade, disciplina, e, de outro, a adesão do sujeito às normas.
Na esteira no pensamento kantiano, Durkheim afirma que não há moral que em alguma medida não seja coercitiva. Contudo, na contramão de Kant, o sociólogo, num tom bem menos turrão, defende que a adesão à regra não é apenas resultado do respeito que esta infunde, mas também de certo desejo do sujeito em obedecê-la. Estes elementos já estão presentes nos sistemas morais das sociedades primitivas e continuam nos sistemas morais das sociedades complexas.
Há, entretanto, uma novidade quando se pensa na moralidade moderna. Esta tende a ser ainda menos pesada sobre o indivíduo. Segundo o autor, o "espírito de autonomia", isto é, a capacidade de analisar, julgar, deliberar sobre determinada regra, está garantida, haja vista que o próprio indivíduo se tornou o valor máximo nas formações sociais atuais. Toda regra, portanto, para ser aceita e respeitada, deve estar em consonância com os ditames da razão e com a própria moralidade do indivíduo, pois tudo que fira a dignidade do homem em geral é passível de repulsa.
Com efeito, ao chamar a atenção para a autonomia que desfruta o indivíduo na sociedade urbano-industrial e para a nova moralidade emergida justamente da ampliação dos direitos individuais, Durkheim mantém-se fiel aos preceitos evolutivos contidos nos conceitos de solidariedade mecânica e de solidariedade orgânica. O "espírito de autonomia" é um dos efeitos que emerge com a complexificação da divisão do trabalho, somada, sem dúvida, ao papel do Estado e dos "órgãos secundários", tais como as corporações profissionais.
A moralidade moderna, diferentemente da moral religiosa e passional que caracteriza as sociedades primitivas, é laica e racional. O fato de o autor salientar a autonomia como elemento último da moral reforça ainda mais o que se colocou anteriormente: é a partir da relação entre as duas formas de solidariedade, conforme as definiu em sua tese doutoral, que o tema da moral adquire importância em sua obra.
A TRANSMUTAÇÃO DOS SÍMBOLOS EM AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA
Publicada em 1912, As Formas Elementares da Vida Religiosa é considerada a última grande obra de Durkheim (1989). Nela se encontram algumas das mais prolíferas reflexões acerca do tema da religião e do conhecimento. Para muitos intérpretes, este trabalho consolidou a visão idealista de Durkheim, assumida a partir do artigo Representações Individuais e Representações Coletivas, de 1898.17 De fato, a publicação deste artigo, entre outras consequências, marcou o interesse do sociólogo pelo universo simbólico e abriu espaço para a fundamentação de uma teoria do conhecimento assentada na noção de "representação coletiva". Isso certamente incidiu sobre a sua decisão de estudar mais profundamente o fenômeno religioso e o seu papel em termos simbólicos.
A opção pelo estudo de um núcleo social primitivo, mais especificamente os Aruntas, tribo aborígene australiana considerada por Durkheim uma das mais simples formas de organização social, deve-se à sua confiança de que é possível estabelecer, a partir da compreensão do que há de mais essencial neste povo, a origem do fenômeno religioso. Com isso, o autor pretende demonstrar que o sistema de crenças e de práticas relativas às coisas sagradas, isto é, interditas e distanciadas daquilo que é comum e corriqueiro, seja por meio das crenças ou dos ritos, continua a determinar a organização das sociedades atuais, conotando, portanto, um continuísmo.
Mas, para além das implicações religiosas e simbólicas desta obra, que não serão aqui discutidas, há alguns elementos que nos chamam a atenção. Primeiramente, o interesse do autor pelas sociedades primitivas australianas. Embora se possa argumentar que a intenção de Durkheim é simplesmente chegar a um exemplo de religião elementar, o olhar que o autor lança para uma organização de menor complexidade social é um indício significativo de que está trabalhando dentro de um esquema conhecido, a saber, certa visão evolutiva pressuposta nos conceitos de solidariedade mecânica e orgânica.
Contudo, na contramão dos trabalhos precedentes, o autor está interessado não apenas em salientar as características de cada um destes tipos de solidariedade e as descontinuidades que os encerram, mas também em demonstrar os elementos que os aproximam. O universo religioso e ideológico passa a ser o fulcro dessa tentativa. Toda a discussão promovida em torno de uma forma essencial de religiosidade, em oposição ao "naturalismo" e ao "animismo", não tem por objetivo apenas estabelecer o "totemismo" como forma mais simples de religião, mas fundamentar uma teoria capaz de explicar a forma como a religiosidade se expressa simbolicamente nas sociedades modernas.
Nota-se, assim, que Durkheim defende a existência de um elemento perene na religião, que, embora possa se modificar no tempo e no espaço, não perde completamente a sua essência. Este elemento, que corresponde à noção de sagrado, é o ponto de intersecção entre a solidariedade mecânica e a solidariedade orgânica. Se a modernidade tem como consequência o homem no centro do mundo e a diminuição da influência exercida pelas instituições religiosas, isso não significava que a religião tenha sido superada. A laicização, decorrência da urbanização e da industrialização crescente, não deve ser encarada como um processo de desencantamento do mundo. As características que definem o sagrado sobreviveram a essas transformações, conforme os rituais laicos parecem comprovar. O indivíduo se tornou um objeto sagrado, algo a ser cultuado e respeitado como uma espécie de totem moderno. A pátria, a bandeira, enfim, passam a ocupar o lugar que outrora era ocupado pelas divindades.
Com efeito, ainda que a racionalidade seja um elemento definidor das organizações sociais modernas, não superou, nem mesmo ofuscou, a presença dos universos religiosos e ideológicos. E, à medida que a religião se define como um sistema solidário de crenças e práticas relativas às coisas sagradas, os rituais e as cerimônias adquirem a função de envolver os membros da comunidade e aproximá-los na esteira de certos sentimentos coletivos. Se os velhos deuses estão mortos e não há mais possibilidade de exumá-los, como argumenta Durkheim, então os homens modernos se encontram num período de frio, de mediocridade moral que de algum modo cobre as fontes de calor contidas na sociedade. Daí a importância de novas crenças, de novos valores, ainda que despidos dos atributos mágicos do passado, pois só assim a autonomia do indivíduo será preservada em consonância com as demandas da sociedade moderna.
Observamos, assim, que o sociólogo, para além da discussão acerca dos símbolos e dos rituais, tem por objetivo explorar algo mais profundo, arraigado, isto é, as "forças irracionais e subconscientes" que sobrevivem ao processo de laicização moderna. Esse objetivo é perseguido ainda tendo como pano de fundo os tipos de solidariedade estabelecidos em sua tese doutoral, contudo, procurando agora demonstrar as permanências entre um e outro tipo. Talvez Collins tenha razão ao se referir às contribuições de Durkheim, quando afirma que "a racionalidade possui sempre uma fundamentação não racional a partir do qual ela emerge." (COLLINS, 2009, p. 166).
Não seria demais afirmar que Durkheim, em comunhão com as posições por ele assumidas em As Formas Elementares da Vida Religiosa, abre precedente para se pensar o papel exercido pelo universo ideológico nas sociedades modernas. Isso porque, embora a "consciência coletiva", marcada nos modelos sociais "primitivos" pela forte influência sobre seus membros, não seja mais uma realidade tão vigorosa, nem mesmo os organismos sociais altamente diversificados em termos funcionais, como no caso das sociedades complexas, podem prescindir de valores, ideias, rituais e cerimônias, ainda que hoje estes estejam voltados para a valorização do indivíduo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se procurou demonstrar, a partir do próprio desenvolvimento teórico de Durkheim, a polêmica que envolve os conceitos de "solidariedade mecânica" e "solidariedade orgânica" e o suposto abandono destes nas obras subsequentes à publicação de sua tese doutoral não encontra respaldo. Isso porque a maior parte de seus trabalhos, ainda que o autor não faça referências diretas a ambos os conceitos, está estruturada em torno de uma visão progressista da humanidade. A mudança que alguns intérpretes atribuem a Durkheim acerca da perspectiva morfológica da primeira fase, substituída por uma leitura mais simbólica na segunda fase, em nada altera a leitura segundo a qual muitos dos temas e dilemas com os quais Durkheim se defrontou estavam seminalmente postos em Da Divisão do Trabalho Social (DURKHEIM, 2008b). Nesse sentido, nos aproximamos da posição defendida por Girola (2005) e Giddens (1986, 1998, 2001, 2005) concernente à continuidade entre as obras iniciais e finais deste autor.
Em nosso entendimento, nem a vertente "materialista" nem a "idealista", modifica o fato de que as formas de solidariedade anunciadas em sua tese doutoral acompanharam o ulterior desenvolvimento de seu raciocínio, permeando toda a sua produção intelectual, inclusive os trabalhos mais tardios. Conquanto a perspectiva evolutiva adotada por Durkheim escape aos rígidos ditames da teleologia de Comte - à medida que não partilha da tese comtiana segundo a qual a sociedade moderna constitui o último estágio da evolução social (positivo-científico), o que lhe possibilita refletir as diferentes sociedades sem esbarrar em noções como as de inferioridade e superioridade -, é impossível deixar de notar a influência que a concepção evolucionária, herdada da biologia, exerce sobre a sua sociologia, assumindo a forma de discussão acerca da complexidade dos modelos sociais primitivos e complexos, respectivamente referentes aos conceitos de "solidariedade mecânica" e "solidariedade orgânica".
2 A respeito do embate com o espiritualismo, Durkheim marcou uma posição contrária à filosofia moral tradicional, sobretudo àquelas tentativas de deduzir as doutrinas éticas de princípios a priori. Segundo o autor, os "fatos morais" consistem em regras de ação com caracteres distintivos o que, portanto, permite ao sociólogo estudá-los empiricamente.
3 Embora Durkheim (2005a) tenha sido enfático no prefácio da primeira edição de As Regras do Método Sociológico, ao declarar que a única denominação teórico-filosófica que admite é a de "racionalista", não se pode descartar a leitura proposta por Florestan Fernandes, segundo a qual Durkheim "confiava na razão dentro dos limites da experiência e acreditava na experiência segundo as regras da razão." (FERNANDES, 1980, p. 70). Com efeito, o racionalismo durkheimiano não pode ser confundido com o racionalismo abstrato ou espiritualista o qual dispensa as relações com o mundo empírico.
4 Levada às últimas consequências, a tese de Durkheim dispensaria a necessidade de uma ciência jurídica, à medida que, como mera expressão da vida coletiva, o direito poderia também ser objeto da análise sociológica. Não por acaso, o jurista Hans-Kelsen, um dos expoentes do "normativismo jurídico", argumenta que, embora o direito seja um fato social, isto não substitui a ciência jurídica (KELSEN, 1966).
5 Essa preocupação seria retomada no curso que o autor ministrou sobre o socialismo, no qual encara o problema da produção e das inclinações individuais na sociedade moderna com maior afinco, dedicando sua análise à crítica da visão economicista predominante entre os socialistas.
6 Referimo-nos à publicação do artigo O individualismo e os Intelectuais, em 1898, no qual Durkheim expõe de modo claro e direto seu pensamento a respeito do que chamou de "individualismo moral".
7 A exigência das universidades francesas à época de Durkheim ocorria no sentido de que o candidato ao doutoramento produzisse uma tese principal, escrita em francês, e uma tese menor, espécie de opúsculo, escrita em latim. Daí o emprego da expressão "tese latina".
8 A este respeito, a primeira parte da obra Educação Moral não deixa dúvidas. Ao tratar do desenvolvimento da moralidade, Durkheim deixa claro que o "espírito de autonomia" constitui um incremento da moralidade típica do mundo moderno, ao lado do "'espírito de disciplina" e do "espírito de abnegação", elementos constituintes da moralidade tradicional.
9 Contudo, cumpre esclarecer que, no caso de Aristóteles, a sociedade desponta com um movimento que vai do interior do indivíduo para fora dele. Isto é bem diferente do que propõe Durkheim, que vê um movimento inverso. Ainda assim, é possível encontrar similaridades, pois, tanto num quanto no outro, a sociedade é anterior ao indivíduo.
10 Sobre os diversos sentidos que o termo "individualismo" adquire em Durkheim, ao longo de sua obra, recomenda-se a leitura de Duvgnaud (1982) e também de Alpert (1945).
11 Cumpre lembrar os trabalhos levados a cabo por alguns autores ingleses, a exemplo de Spencer, e que exerceram grande influência sobre os estudos da religião mais tarde empreendidos por Durkheim.
12 O exemplo oferecido por Tiryakian (1962, p. 36, tradução nossa) é bastante elucidativo a esse respeito. Vejamos: "Assim, o desenvolvimento da religião no ocidente não guarda relação direta com as condições sociais ou a organização social dos antigos gregos, conquanto o historiador social descubra vínculos entre a religião dos helenos e sua situação ecológica e demográfica; as crenças religiosas gregas (como fato social) originam posteriormente as crenças e práticas religiosas cristãs (novos fatos sociais), prescindindo da influência primária dos fatos morfológicos."
13 Durkheim chega e mencionar em nota um quarto tipo denominado suicídio "fatalista". Todavia, o fato de o próprio autor ter dedicado uma explicação mínima para este tipo de suicídio demonstra que a importância dos outros três é muito maior e daí nossa opção por destacá-los.
14 Não por acaso, Durkheim ressalta que o número de suicídios entre os mais ricos era maior na época do que entre os mais pobres. Desse modo, a miséria, por ser não gerar expectativas demasiadas, conteria o ímpeto suicida. Disso não se depreende que o autor esteja defendendo a miséria como uma condição de vida ideal, como, por vezes, alguns intérpretes parecem sugerir (ZEITLIN, 1973).
15 Não se pode esquecer que o neokantismo, à época de Durkheim, era muito forte na França. Aliás, Renouvier, um dos mais importantes representantes dessa corrente, foi professor de Durkheim, e isto certamente não pode ser omitido.
16 Trata-se de um curso que Durkheim começou a esboçar nos tempos em que lecionava em Bordeaux e que mais tarde, entre os anos de 1902 e 1903, realizou na Sorbonne, voltando a oferecê-lo anos entre os anos 1906 e 1907. Originalmente o curso compreende 20 lições, sendo que as duas primeiras, entre estas a lição de abertura, destinadas a discutir a metodologia pedagógica, foram publicadas no Brasil separadamente sob o título Educação e Sociologia. Quanto às outras lições, foram recentemente publicadas pela Editora Vozes, numa tradução de Raquel Weiss. Há ainda uma edição mais antiga da editora portuguesa Rés em que todas as 20 lições estão disponíveis, sob o título Sociologia, Educação e Moral.
17 No Brasil, este artigo está inserido no livro Sociologia e Filosofia (DURKHEIM, 2004).
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. Tradução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Unesp, 2008.
ALPERT, Harry. Durkheim. México: Fondo de Cultura Economica,1945.
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. Tradução de Sérgio Bath. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
AUGUSTO, Maria Helena Oliva. Indivíduo e moral em Durkheim. In: MASSELA, Alexandre (Org.). Durkheim: 150 anos. Minas Gerais: Argvmtevm, 2010. p. 209 -229.
CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
COLLINS, Randall. Quatro tradições sociológicas. Tradução de Raquel Weiss. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
DOMINGUES, Ivan. Epistemologia das ciências humanas. São Paulo: Loyola, 2004.
DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
DURKHEIM, Emile. A educação moral. Traduzido por Raquel Weiss. Rio de Janeiro: Vozes. 2008a.
DURKHEIM, Emile. As formas elementares da vida religiosa. Traduzido por Joaquim Pereira Neto. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1989.
DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. Traduzido por Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2005a.
DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social. Tradução de Eduardo Brandão. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008b.
DURKHEIM, Emile. Educación y sociologia. 2. ed. Barcelona-Espanha: Península, 2000.
DURKHEIM, Emile. Ética e sociologia moral. Traduzido por Paulo Castanheira. São Paulo: Landy, 2003.
DURKHEIM, Emile. La educación moral. Madrid/Espanha: Morata, 2002a.
DURKHEIM, Emile. Lições de sociologia. Traduzido por Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes. 2002b.
DURKHEIM, Emile. O individualismo e os intelectuais. In: DURKHEIM, Emile. A ciência social e a ação. Traduzido por Inês Duarte Ferreira. São Paulo: Difel, 1975. p. 235-250.
DURKHEIM, Emile. O suicídio. Traduzido por Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2005b.
DURKHEIM, Emile. Socialismo. Traduzido por Ângela Ramalho. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.
DURKHEIM, Emile. Sociologia e filosofia. Traduzido por Fernando Dias Andrade. São Paulo: Ícone, 2004.
DUVIGNAUD, Jean. Durkheim. Tradução de Joaquim João Braga. Lisboa: Edições 70, 1982.
FERNANDES, Florestan. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. 4. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 1980.
FERNANDES, Heloísa Rodrigues. Sintoma social dominante e moralização infantil: um estudo sobre a educação moral em Émile Durkheim. São Paulo: Edusp, 1994.
GIANNOTTI, José Arthur. A sociedade como técnica da razão: um ensaio sobre Durkheim. Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 1, p. 47-98, 1971.
GIDDENS, Anthony. Capitalismo e moderna teoria social. Tradução de Maria do Carmo Cury. 6. ed. Lisboa: Presença, 2005.
GIDDENS, Anthony. Durkheim. London: Fontana Press, 1986.
GIDDENS, Anthony. Em defesa da sociologia: ensaios, interpretações e tréplicas. Tradução de Roneide Venâncio Majer e Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Unesp, 2001.
GIDDENS, Anthony. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássico e contemporâneo. Tradução de Cibele Saliba Rizek. São Paulo: Unesp, 1998.
GIROLA, Lidia. Anomia e individualismo: del diagnóstico de la modernidad de Durkheim al pensamiento contemporáneo. Barcelona: Anthropos, 2005.
GURVITCH, Georges. Vocação actual da sociologia. Tradução de Orlando Daniel. Lisboa: Cosmos, 1986.
KELSEN, Hans. Jurisprudência normativa e sociologia. In: MACHADO NETO, Antonio Luis; MACHADO NETO, Zahidé. O direito e a vida social. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966.
LUKES, Steven. Émile Durkheim su vida y su obra: estúdio histórico-crítico. Madrid: Siglo XXI de Espana, 1984.
NISBET, Robert A. La formación del pensamiento sociológico. Buenos Aires: Amorrortu, 2003.
ORTIZ, Renato. Durkheim: arquiteto e herói fundador. In: ORTIZ, Renato. Ciências sociais e trabalho intelectual. São Paulo: Olho d'água, 2002a. p. 89-122.
ORTIZ, Renato. Durkheim: um percurso sociológico. In: ORTIZ, Renato. Ciências sociais e trabalho intelectual. São Paulo: Olho d'água, 2002b. p. 123-148.
PARSONS, Talcott. A estrutura da ação social. Tradução de Raquel Weiss. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.
PIZZORNO, Alessandro. Uma leitura atual de Durkheim. In: COHN, Gabriel (Org.). Sociologia: para ler os clássicos. Rio de Janeiro: Azougue, 2005. p. 55-104.
TIRYAKIAN, Edward. Sociologismo y existencialismo. Buenos Aires: Amorrortu, 1962.
WEISS, Raquel. Estado, sociedade civil e indivíduo na teoria política de Durkheim. In: MARTINS, Paulo Henrique (Org.). Limites da democracia. Recife. UFPE, 2008. p. ini- fin.
ZEITLIN, Irving. Ideología y teoría sociológica. Buenos Aires: Amorrortu, 1973.
Sidnei Ferreira de Vares1
1 Professor Doutor do Centro Universitário Assunção - UniFAI, Brasil. [email protected].
You have requested "on-the-fly" machine translation of selected content from our databases. This functionality is provided solely for your convenience and is in no way intended to replace human translation. Show full disclaimer
Neither ProQuest nor its licensors make any representations or warranties with respect to the translations. The translations are automatically generated "AS IS" and "AS AVAILABLE" and are not retained in our systems. PROQUEST AND ITS LICENSORS SPECIFICALLY DISCLAIM ANY AND ALL EXPRESS OR IMPLIED WARRANTIES, INCLUDING WITHOUT LIMITATION, ANY WARRANTIES FOR AVAILABILITY, ACCURACY, TIMELINESS, COMPLETENESS, NON-INFRINGMENT, MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR A PARTICULAR PURPOSE. Your use of the translations is subject to all use restrictions contained in your Electronic Products License Agreement and by using the translation functionality you agree to forgo any and all claims against ProQuest or its licensors for your use of the translation functionality and any output derived there from. Hide full disclaimer
Copyright Universidade Estadual de Londrina, Depto de Ciências Sociais Jul-Dec 2013
Abstract
This paper purports to analyze the concepts of "mechanical solidarity" and "organic solidarity", coined by Durkheim in his first works, through the study of the theoretical and interpretative debates that constitute the basis of a vast, specialized literature, in order to understand the reasons why he abandoned such concepts in the course of his carrier. The paper intends to investigate whether such "absence" is the result of a theoretical review or simply a pragmatic solution, in which case such interpretive keys would be already presupposed by the author. [PUBLICATION ABSTRACT]
You have requested "on-the-fly" machine translation of selected content from our databases. This functionality is provided solely for your convenience and is in no way intended to replace human translation. Show full disclaimer
Neither ProQuest nor its licensors make any representations or warranties with respect to the translations. The translations are automatically generated "AS IS" and "AS AVAILABLE" and are not retained in our systems. PROQUEST AND ITS LICENSORS SPECIFICALLY DISCLAIM ANY AND ALL EXPRESS OR IMPLIED WARRANTIES, INCLUDING WITHOUT LIMITATION, ANY WARRANTIES FOR AVAILABILITY, ACCURACY, TIMELINESS, COMPLETENESS, NON-INFRINGMENT, MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR A PARTICULAR PURPOSE. Your use of the translations is subject to all use restrictions contained in your Electronic Products License Agreement and by using the translation functionality you agree to forgo any and all claims against ProQuest or its licensors for your use of the translation functionality and any output derived there from. Hide full disclaimer