Resumo: Os centros urbanos no âmbito social brasileiro são caracterizados por realidades de grande desigualdade socioeconômica, trazendo para os técnicos de diferentes áreas, entre eles o terapeuta ocupacional, a atuação em contextos de vulnerabilidade social. Assim, a pesquisa teve como objetivo se aproximar e identificar as intervenções em terapia ocupacional social e aquelas na atenção básica em saúde, com o intuito de verificar as proximidades e as distinções das atuações, quando realizadas em cenários de vulnerabilidade social. A pesquisa se deu no município de São Carlos-SP, a partir da entrevista com todas as terapeutas ocupacionais em atuação nas áreas selecionadas, sendo seis terapeutas ocupacionais no campo social e cinco terapeutas ocupacionais na atenção básica em saúde. Realizou-se também observação participante de atividades de terapeutas ocupacionais na área social e na atenção básica em saúde. A partir da observação da prática e análise temática do discurso das terapeutas ocupacionais, observou-se uma diferenciação significativa quanto aos objetivos e recursos utilizados pelas profissionais mesmo quando desempenhadas no mesmo território caracterizado por grande vulnerabilidade social. Conclui-se que há especificidades claras em cada campo, sendo que se faz necessária a identificação das diferenciações e dos objetivos de cada intervenção. Compreender as práticas desempenhadas permite aproximar-se da identidade do profissional e de suas maiores contribuições que possam vir a ser executadas nos diferentes setores.
Palavras-chave: Terapia Ocupacional/Tendências, Terapia Ocupacional Social, Atenção Primária à Saúde, Vulnerabilidade Social.
Occupational therapy and action in social vulnerability contexts: proximities and distinctions between the social field and the primary health care area
Abstract: In the scenario of the Brazilian social reality urban centers are characterized by high socioeconomic inequality, this fact makes social/health professionals of many areas, including occupational therapists, take part in social vulnerability contexts. Thus, the objective of this study was to approach and identify interventions in social occupational therapy and primary health care in order to verify the proximities and distinctions between the actions, when performed in social vulnerability contexts. This research was carried out in São Carlos, state of São Paulo, based on semi-structured interviews with all occupational therapists working in the selected areas: six therapists working in the social field and five from the primary health care area. We have also observed in situ the activities of occupational therapists in the social and primary health care areas. Based on the observation of the occupational therapists' practices and on the thematic analysis of their speech, we found a significant difference between the objectives and resources used, even when performed in the same territory of social vulnerability. It was possible to conclude that there are clear specificities in each field, and that it is necessary to identify the differences and objectives of each intervention. The understanding of the practices performed allows us to approach the identity of the professionals and their major viable contributions to different sectors.
Keywords: Occupational Therapy/Trends, Social Occupational Therapy, Primary Health Care, Social Vulnerability.
1 Introdução
Partindo da definição que a terapia ocupacional é uma profissão que realiza sua intervenção no âmbito da saúde, do trabalho, da educação e na esfera social, a qual reúne:
[...] tecnologias orientadas para a independência e autonomia de indivíduos que por diversas problemáticas ligadas a fatores físicos, sensoriais, mentais, psicológicos e/ou sociais demonstram dificuldade na inserção e participação na vida social [...] (UNIVERSIDADE..., 1997),
propõe-se discutir as especificidades, os pontos de congruências e as diferenciações entre as intervenções terapêutico-ocupacionais no campo social e na atenção básica em saúde.
A presente pesquisa voltou seus questionamentos para os objetivos e os recursos utilizados pelo terapeuta ocupacional para o desenvolvimento de sua prática profissional em dois campos de atuação que se autointitulam como interventores no território. Ambos propõem o território como lócus privilegiado de intervenção na medida em que utilizam o local de vida das pessoas como espaço de atuação.
Um importante pesquisador acerca do conceito de território, avançando na discussão para além das questões sobre a delimitação geográfica, foi Milton Santos (1926-2001). Segundo Faria e Bortolozzi (2009), a obra do pesquisador renova o pensamento geográfico, uma vez que sua concepção de território contribuiu para a centralidade da discussão sobre as desigualdades sociais e os aspectos socioculturais, relacionando espaço e chances de vida. No campo da saúde, alguns estudos, ampliando a compreensão acerca dos processos de saúde e doença, extrapolaram a discussão acerca dos processos biológicos, incluindo os fatores sociais, econômicos, políticos e culturais como fundamentais para o planejamento e implantação de ações em saúde, trazendo a noção de território como ponto relevante para as diretrizes políticas.
A respeito dos fatores sociais e culturais, Haesbaert (2005) afirma que a noção de território está ligada ao significado que as pessoas atribuem ao lugar que ocupam desde a utilização da terra ao modo que se organizam no espaço que vivem.
A partir de tais referências, compreende-se território como sendo um espaço de possibilidades de expressões concretas de vida, dentro do qual é possível conhecer e atuar sobre os sentidos atribuídos aos diferentes elementos cotidianos, incluindo a produção de valores e trocas sociais. Um dos principais lugares de produção de saberes sobre a vida, sobre os problemas e sobre as possibilidades de criação de soluções (OLIVER et al., 2001).
Considera-se uma estreita relação entre o debate conceitual sobre território e as intervenções em terapia ocupacional, na medida em que esse profissional dedica-se a intervenções em espaços do cotidiano dos grupos com os quais intervém. Segundo Barros (2004), é necessário ao trabalho do terapeuta ocupacional conhecer as culturas locais específicas de seus espaços de intervenção, buscando uma ruptura de procedimentos técnicos preestabelecidos. Além disso, a formação interdisciplinar do terapeuta ocupacional torna-se um fator estimulante no desenvolvimento de ações que estejam focadas na esfera individual e na coletiva (JARDIM; AFONSO; PIRES, 2008).
1.1 A área social
A área social vem sendo reconhecida e normatizada pela categoria dos terapeutas ocupacionais tendo, em 2010, recebido uma resolução do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (Coffito). Segundo a Resolução no 383/2010, art. 10o (CONSELHO..., 2010, p. 80), o terapeuta ocupacional desenvolve seu trabalho no:
[...] campo social por meio de atividades como tecnologias de mediação sócio-ocupacional, desenvolvendo estratégias de pertencimento sociocultural e econômico, organizações da vida cotidiana, projetos de vida, entre outros; com intuito de fortalecer as redes de suporte social e de trocas afetivas, econômicas e de informações, com pessoas, famílias ou grupos.
A ação da terapia ocupacional no campo social prevê um recorte metodológico específico para o qual se voltam ações para públicos que têm a vulnerabilidade social como eixo central de sua demanda de atenção. Dessa forma, é necessário trabalhar e desenvolver instrumentos e métodos voltados à interpretação da realidade pessoal-social e à atuação em um universo complexo de interações e interconexões (LOPES et al., 2010).
Para a efetivação do trabalho do terapeuta ocupacional social, parte-se do princípio de que é necessário que haja o reconhecimento do outro como sujeito autônomo, como ideia fundamental e princípio norteador, vendo-o como interlocutor do processo que se promove. Para tanto, propõe-se o desenlace da mediação saúde-doença, a partir do extravasamento do campo da saúde e confronto com as realidades sociais. Dessa forma, a intervenção no âmbito social prevê uma atuação embasada em saberes plurais e em ações voltadas ao coletivo, à cultura específica local e à vida cotidiana da comunidade inserida, utilizando-se da atividade como mediadora das relações e eixo organizador da intervenção (BARROS, 2004; BARROS; GHIR ARDI; LOPES, 2002).
Segundo Lopes (2006), para as ações em terapia ocupacional social faz-se necessário o conhecimento da realidade da população que se acompanha, das suas necessidades e das maneiras com que essa população visualiza o mundo ao seu redor, o seu cotidiano. Portanto, o conceito de território permeia a intervenção como um importante espaço de ação. Barros (2004, p. 96) afirma que "[...] é preciso conhecer como vivem, onde moram, como se constroem as relações familiares, os laços de amizade e os desejos [...]" a fim de se produzir estratégias eficazes para o trabalho.
Para tanto, o intuito do trabalho do terapeuta ocupacional na área social tem sido fomentar estratégias para o fortalecimento das redes de suporte pessoais e social de sujeitos em contextos de vulnerabilidade social, com vistas à possibilidade de construção de perspectivas de futuro, a partir de maior autonomia e inserção social, embasados nos pressupostos do exercício da democracia e dos direitos decorrentes da cidadania (LOPES et al., 2010; LOPES; BORBA; CAPPELLARO, 2011).
1.2 Atenção Básica em Saúde
As ações no cenário da saúde, por sua vez, são aquelas que concentram um maior número de profissionais terapeutas ocupacionais no Brasil, sendo que o Sistema Único de Saúde - SUS, desde sua institucionalização, impulsionou a inserção desse profissional na assistência pública em saúde. Tal fato é consequência da ampliação do atendimento aos grupos populacionais no âmbito do SUS, na prerrogativa, conforme definido pela carta constituinte, do direito à saúde para todos (BRASIL, 1990).
No âmbito da atenção básica em saúde, o SUS tem adotado, desde 1996, uma estratégia de reorientação do modelo assistencial: a Estratégia de Saúde da Família (ESF). É pensado no trabalho por meio de equipes multiprofissionais, responsáveis pelo acompanhamento de um número específico de famílias, alocadas em uma área geográfica delimitada. As equipes de saúde da família atuam com ações de promoção da saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças, e na manutenção da saúde desta comunidade (BR ASIL, 2010).
Trata-se da priorização desse nível de atenção para organização do sistema de saúde, ocorrida, inclusive, por incentivos financeiros do Ministério da Saúde destinados para os municípios, com o intuito de direcionar as ações desenvolvidas. Assim, as discussões para as diversas categorias profissionais em atuação no campo da saúde, entre elas o terapeuta ocupacional, voltam-se para as suas contribuições no nível da atenção básica em saúde.
Nesse contexto, em 2008 houve a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) com objetivo de ampliar e articular ações de saúde mental, reabilitação, promoção de saúde, orientações nutricionais, atividades físicas e práticas corporais, assistência social, práticas integrativas e complementares e assistência farmacêutica. Através da incorporação de profissionais como assistentes sociais, educadores físicos, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, psicólogos, entre outros (BRASIL, 2008).
Segundo Jardim, Afonso e Pires (2008), diversos profissionais atuam no nível básico de assistência em saúde compondo as equipes, estando presente, também, o terapeuta ocupacional. Cabe ao profissional atuar no território, considerando suas múltiplas potencialidades, como as residências dos sujeitos e, em especial, os espaços comunitários e sociais, com objetivo de ampliar o serviço de saúde para além de seus muros institucionais; informar os usuários sobre sua patologia e, mais que isso, o que pode ser feito para ajudá-lo, em toda comunidade, trazendo conhecimentos inovadores, desmistificando preconceitos e oferecendo um atendimento integral. Os objetivos são trabalhados por meio de atendimentos individuais ou em grupos, nos quais são utilizadas atividades para viabilizar, inserir e reinserir o sujeito na sociedade e em seu trabalho, além da troca de vivências e experiências; e por meio de ações individuais, objetivando a solução de suas demandas, quanto à sua patologia, moradia, cuidadores, entre outras.
Assim, tendo por base a intervenção da terapia ocupacional no campo da atenção básica em saúde e na área social, essa investigação debruçou-se sobre a discussão acerca das diferenças e similaridades de intervenção, com vistas a pontuar as especificidades de cada área a partir de seus objetivos e recursos, bem como as semelhanças, quando direcionadas para um mesmo contexto de vulnerabilidade social e com proposições teóricas de ação no território.
1.3 Vulnerabilidade social e intervenções em Terapia Ocupacional
O Brasil é um país que abarca fatores como: concentração de renda; altos índices de analfabetismo; violência; desemprego; alimentação de baixa qualidade; precariedade no ensino público; entre outros, que evidenciam o alto grau de desigualdade social que descreve a situação de grande parcela da sociedade brasileira, levando-a, muitas vezes, a uma situação de rupturas da participação social. Tem-se, então, o desafio social do desenvolvimento de estratégias e ações que promovam a efetivação dos direitos e a participação decorrentes da cidadania dessa parcela da população (COTTA et al., 2007; LOPES, 2007).
Cabe, portanto, aos profissionais envolvidos com a defesa dos direitos e a efetivação de políticas sociais o fortalecimento de ações e o investimento em pesquisas nesse campo, com intuito de produzir subsídios e tecnologias sociais que se dediquem à diminuição das desigualdades, além do incentivo e apoio à associação e participação na discussão sobre o acesso aos direitos e às condições de vida (LOPES et al., 2008). Lança-se, portanto, o desafio aos profissionais, entre eles o terapeuta ocupacional, em criar metodologias, reflexões e estratégias de intervenção para a atuação no território, de acordo com as demandas locais encontradas, a fim de buscar a efetivação das políticas sociais de acordo com seus pressupostos pautados pelos direitos sociais (MALFITANO, 2005).
O estado de vulnerabilidade social é produzido na aliança da precariedade do trabalho com a fragilidade dos vínculos sociais, sendo uma categoria capaz de descrever a situação de uma grande parcela da população brasileira. Para Castel (1994), o espaço social pode ser analisado segundo dois eixos: o da relação com o trabalho (variando de emprego estável à sua completa ausência) e o da inserção relacional (das redes sólidas de sociabilidade ao isolamento social).
Por conseguinte, considerando a predominância das políticas públicas em contextos de vulnerabilidade social, estudamos os objetivos e os recursos utilizados pelo terapeuta ocupacional para o desenvolvimento de sua prática profissional em uma região periférica da cidade de São Carlos, interior paulista.
O local estudado caracteriza-se por ser uma região periférica urbana. Assinala-se como um local com visibilidade pela gestão municipal, fato incentivado pelos níveis de pobreza local. Conta com uma rede de equipamentos sociais que, apesar de insuficientes, tem atuação local e previsão de crescimento. Um dos bairros componentes da região possui um histórico de ocupação, entre 1977 e 1979, caracterizado pela irregularidade quanto à demarcação e à divisão dos lotes, assim como pela ilegalidade de suas novas construções, que se localizam cada vez mais próximas de uma grande área de risco e de preservação ambiental, chamada pelos moradores locais de "buracão". Atualmente, com a ocupação desordenada do espaço urbano, o local é detentor dos maiores índices de vulnerabilidade social da cidade de São Carlos, no qual se observam pobreza, altos índices de violência, de desemprego, de uso de drogas, de baixa escolaridade, entre outros. Portanto, considerado como zona crítica, o território é cenário de preconceitos e estigmas para com seus moradores, exercido pelos demais munícipes locais (CAMPOS et al., 2003).
Por ser reconhecida com uma região de vulnerabilidade social, realizou-se parte da presente pesquisa nesse local, na medida em que se buscou a discussão das ações territoriais em terapia ocupacional em contextos de vulnerabilidade.
2 Metodologia
O referencial adotado de análise filia-se aos estudos teóricos da terapia ocupacional social no Brasil buscando identificar, em aspectos concretos da realidade, chaves de leitura que se dediquem à compreensão de questões microssociais e suas interrelações com o contexto macrossocial. Em outras palavras, parte-se de uma compreensão da necessária associação entre as dimensões pessoal e social para que, a partir de uma perspectiva coletiva, se possa falar de intervenções profissionais, como do terapeuta ocupacional, na complexa e múltipla contemporaneidade social (BARROS; GHIR ARDI; LOPES, 2002).
Utilizamos, como método de pesquisa, 11 entrevistas semiestruturadas e quatro meses de observação participante, sendo dois meses junto a uma terapeuta ocupacional na atenção básica em saúde e dois meses junto a uma terapeuta ocupacional em um serviço social.
As entrevistas objetivaram obter informações contidas na fala dos atores sociais, relevantes para a compreensãio acerca das práticas desenvolvidas pelos profissionais. Segundo Meihy (1998), o discurso oral ou a história oral tem como matéria essencial a humanização das percepções, permitindo através de entrevistas, por exemplo, uma aproximação entre pessoas e instituições com o objetivo de conhecer suas visões e práticas.
Paralelamente, a observação participante pode ser compreendida como uma técnica que se realiza através do contato direto do pesquisador com o fenômeno observado, para obter informações sobre a realidade dos atores sociais em seus próprios contextos, bem como propiciar situações de participação naquela realidade, favorecendo sua apreensão e debate sobre ela (MINAYO et al., 2002).
A observação participante na área social ocorreu junto às ações de extensão e formação do Projeto METUIA1. As intervenções aconteciam em um equipamento direcionado ao lazer e à convivência da população juvenil.
Conjuntamente, acompanhou-se a dinâmica local daquele equipamento social. Acompanhou-se, também, uma terapeuta ocupacional atuante na atenção básica em saúde, no mesmo território, demarcado pela vulnerabilidade, que engloba Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Saúde da Família (USF).
Optou-se em fazer o trabalho de observação no mesmo território geográfico, na tentativa de se compreender as diferenças e similaridades de intervenções destinadas às mesmas características socioeconômicas, priorizando um território de vulnerabilidade social, para atender aos objetivos dessa investigação; realizando, portanto, as observações-participantes na região sul do município de São Carlos.
Elaborou-se relatório diário do acompanhamento de ambos os campos, por meio de roteiro elaborado para este fim, o qual descrevia as atividades realizadas pelas profissionais, seus objetivos, população envolvida e temáticas surgidas a partir daquela intervenção.
Paralelamente à observação participante, lançamos mão do uso de entrevistas a partir de um roteiro semiestruturado que visava conhecer qual era a visão da profissional acerca das especificidades de seu trabalho naquele campo, sua visão sobre a intervenção técnica em contextos de vulnerabilidade social, bem como apreender, num espectro mais amplo, o discurso das terapeutas ocupacionais sobre as ações que desenvolvem.
No total, obtivemos como sujeitos da pesquisa seis terapeutas ocupacionais que desempenhavam sua ação na área social da cidade de São Carlos e cinco terapeutas ocupacionais que realizavam seu trabalho na rede de atenção básica em saúde do município.
Por fim, os dados foram analisados a partir de análises temáticas advindas do discurso das terapeutas ocupacionais entrevistadas e dos relatórios elaborados nas observações participantes.
Destaca-se que todos os procedimentos de ética em pesquisa foram respeitados, sendo que recebemos autorização das instituições envolvidas para a realização das observações participantes, tanto da Diretoria de Saúde responsável quanto da Coordenação do Equipamento de Atenção ao Jovem; assim como todas as entrevistadas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
3 Resultados e discussão
3.1 O discurso das terapeutas ocupacionais
Os estudos acerca da área social apontam duas discussões iniciais presentes na preocupação das terapeutas ocupacionais. A primeira refere-se ao questionamento sobre a compreensão do processo de adoecimento, em suas dimensões individual e coletiva, numa crítica à visão biomédica e à medicalização da sociedade, na perspectiva de inclusão das dimensões socioculturais e econômicas para a compreensão da dinâmica de vida e da inserção social das pessoas. A segunda questão se fundamenta na proposição que a terapia ocupacional social se desenlaça da mediação saúde-doença, na qual a profissão se alicerça em outros campos de intervenção, incitando o debate de uma especificidade da questão social (BARROS, 2004; BARROS; LOPES; GALHEIGO, 2007).
Desse modo, para se realizar uma prática na área social condizente com seus preceitos é preciso "transcender a clínica", "[...] superar a necessidade do setting terapêutico e confrontar-se com o território[...]", com a comunidade e os espaços cotidianos (BARROS; GHIRARDI; LOPES, 2002, p. 100). Entretanto, observou-se nas falas de 50% das terapeutas ocupacionais atuantes na área social uma forte ligação com o campo clínico de intervenção.
[...] não dá pra dizer que você é um TO só social, porque quando você vê são várias patologias [...] você como profissional da saúde, você vai vê nessa rotina, nesses atendimentos, nessa população (terapeuta ocupacional social 2, p. 1).
Desse modo, nota-se no discurso das terapeutas ocupacionais entrevistadas atuantes na área social ainda a presença de um raciocínio clínico, voltado à saúde, mesmo quando em intervenção social. Tal questão pode apresentar desdobramentos relevantes, uma vez que tais práticas não condizem com os objetivos postulados pelo campo social e a atuação clínica nesse contexto ocasiona o risco de medicalização das ações sociais.
Por outro lado, na fala das demais terapeutas ocupacionais sociais entrevistadas, ou seja, 50% delas, observou-se uma predominância em torno das temáticas sobre cidadania e direitos sociais, produção de identidades, interpretação da demanda como expressão de necessidades e desejos individuais e coletivos, o trabalho com projetos de vida, indo ao encontro dos conceitos da literatura específica produzida na área social.
Eu acho que é a produção de autonomia, o fortalecimento e a garantia dos direitos desses jovens. Que a gente consiga plantar algumas sementinhas na vida deles pra que eles possam ter [...] pra que eles possam fazer planos de mudança de vida, de projetos de vida (terapeuta ocupacional social 4, p. 2).
Supomos que a não apropriação dos conceitos da área social e de suas metodologias relacionam-se ao fato de haver uma defasagem na formação de profissionais nessa área, identificados em alguns relatos.
[...] porém acho que a nossa formação de graduação a gente aborda muito pouco a TO social. Então, acho que a graduação precisaria investir mais nesse campo (terapeuta ocupacional social 4, p. 3).
[...] eu acho que a formação dentro da graduação, acho que a gente vê muito pouco da área social, pelo menos na minha época de formação (terapeuta ocupacional social 5, p. 4).
A questão da deficiência na formação no nível de graduação permanece no discurso das terapeutas ocupacionais atuantes na atenção básica em saúde. Embora a política do Sistema Único de Saúde (SUS) seja mais antiga que a política do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), e possua o reconhecimento da atuação do terapeuta ocupacional em diferentes níveis de atenção, as profissionais ainda demarcam o pequeno conteúdo estudado.
[...] eu acho que até foi uma boa disciplina, mas era uma disciplina de noções de saúde coletiva, noções de saúde pública, alguma coisa assim [...] do que era SUS, mas assim, não teve visita, não teve algo mais (terapeuta ocupacional - Atenção Básica em Saúde 7, p. 1).
O campo social, por seu turno, tem crescido como espaço de trabalho para os terapeutas ocupacionais, requerendo profissionais habilitados e formados dentro das especificidades da área. Recentemente o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), por meio da resolução no17/2011, habilita o terapeuta ocupacional como um dos profissionais para atuar nas especificidades dos serviços socioassistenciais do SUAS, demarcando, assim, a necessidade de formação específica (CONSELHO..., 2011).
Na cidade de São Carlos-SP, especificamente, já se conta com três terapeutas ocupacionais como funcionárias públicas municipais em intervenção no SUAS, no âmbito dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS). Entretanto, as terapeutas ocupacionais foram realocadas de um concurso específico para a saúde, visto que não se realizou um concurso específico sobre política de assistência social para as pessoas ocuparem esse cargo, podendo se levantar outra hipótese sobre a pouca formação das profissionais para tais atribuições.
[...] não sei, eu acho assim, tá começando [...] e o fato de irem pessoas pra cidadania, né, desse concurso da TO, eu acho que é um marco (terapeuta ocupacional social 2, p. 4).
Espera-se que, num futuro próximo, possamos ter concursos específicos para cada área da terapia ocupacional nos municípios com ampliação de espaços de trabalho para os profissionais, de acordo com as regulamentações de cada campo.
Vê-se, portanto, a primeira semelhança encontrada nos relatos das entrevistadas remete às lacunas da formação acadêmica. A partir de tais dados, levanta-se como hipótese que a área social e a atenção básica em saúde são disciplinas insípidas na graduação em terapia ocupacional, colocadas como coadjuvantes em muitas formações. Desse modo, colocamos como questão pertinente para a discussão a necessidade de um maior investimento das universidades para com o ensino acadêmico dessas áreas, visto que estão se transformando em campos de atuação em expansão para os terapeutas ocupacionais.
Em relação ao campo da saúde, tal quadro vem sendo modificado, na medida em que a formação para o SUS é preocupação crescente dos cursos de graduação na área da saúde, em geral, com induções específicas do Ministério da Saúde. Entretanto, a formação para a intervenção na área social permanece um desafio a ser incorporado nos diferentes cursos de graduação do país.
Especificamente sobre os recursos utilizados pela terapeuta ocupacional da atenção básica em saúde, notou-se como elemento de presença constante os grupos terapêuticos. Segundo Ballarin (2007), os grupos terapêuticos são espaços que proporcionam aos participantes a possibilidade de experimentar outras formas de se relacionar e de vivenciar situações relativas ao fazer, possibilitando sentido e significado à ação desempenhada. Além disso, há a possibilidade de convivência, relação e troca de vivências e experiências.
A gente tem a linha de cuidado coletivo que são os grupos. Então são vários grupos que eu coordeno, por exemplo, grupo de apoio aos tabagistas, grupo de gestante, grupo de convivência, que é uma tentativa de integrar as pessoas com tratamento na saúde mental e algumas pessoas com deficiência física nas rotinas da unidade de saúde (terapeuta ocupacional - Atenção Básica em Saúde 10, p. 1).
Já na terapia ocupacional social o trabalho também se fundamenta na prática coletiva, contudo pelo conceito de oficina de atividades e/ou culturais, diferenciado-se dos propósitos dos grupos terapêuticos. A noção de atividade, por conseguinte, sai da noção de instrumento terapêutico e constitui-se como instrumento de emancipação, de mediação de relações para o foco nas questões socioeconômicas, e não naquelas terapêuticas (BARROS; GHIRARDI; LOPES, 2002; LOPES, 2006; BARROS; LOPES; GALHEIGO, 2007).
A oficina, como eu disse, ela é bem estruturada [...]. Sempre tem alguns temas que permeiam esse momento. Depois desse momento a gente tem um aquecimento inespecífico, que pode ser qualquer tipo de dinâmica. Depois a dinâmica, propriamente dita, onde a gente trata de temas como a violência, drogas, gravidez na adolescência, sexualidade, entre outros. E aí a gente faz uma dinâmica com as meninas usando diversos recursos, como filme, material artesanal ou alguma coisa mais dinâmica, propriamente dita (terapeuta ocupacional social 4, p. 1).
Observa-se, portanto, que ambos os campos de atuação lançam mão de atividades coletivas como recursos de intervenção. As atividades e a realização de grupos constituem-se como marcas da identidade da profissão, independente da área específica em discussão. Contudo, a aproximação pormenorizada das práticas demonstra objetivos distintos entre as áreas, visto que a área social visa à experimentação e à aprendizagem, com a finalidade de inserção social frente às questões sociais colocadas; já a saúde estabelece-se mais proximamente do viés terapêutico, com ações para a reabilitação, promoção da saúde e prevenção.
Quando abordamos especificamente aquele território, demarcado por vulnerabilidades sociais, evidenciaram-se semelhanças logo no início da aproximação, trazidas pelo contexto. As ações territoriais requerem intervenções condizentes com a realidade local, a fim de construir propostas que se voltem à compreensão do indivíduo de maneira global, a partir do contexto coletivo no qual se insere, sem restringi-lo às suas necessidades e problemáticas singulares (BARROS; GHIRARDI; LOPES, 2002).
Desse modo, cabe aos terapeutas ocupacionais atuantes tanto na área social quanto na atenção básica em saúde a compreensão do espaço social que utilizam para atenção às pessoas, marcado fortemente pelos contextos de vulnerabilidade social, uma vez que compõem a realidade dos sujeitos, grupos e comunidades acompanhados.
3.2 A observação da prática: cenas de intervenção nos dois campos em estudo
Crianças correndo e brincando entre intensa circulação de carros e motos, grupos de pessoas sentadas nas calçadas ou andando pela rua, jovens empinando pipas; é assim que se desenha a maioria das ruas do território estudado, como de regiões periféricas de muitos municípios brasileiros. A referida região, estigmatizada por ser um local periférico e empobrecido da cidade, é composta por um bairro notoriamente conhecido pelos altos índices de desemprego, pobreza, violência e baixos índices de desenvolvimento humano, especialmente no que se refere ao acesso a bens e serviços sociais (CAMPOS et al., 2003; LOPES; SOUZA, 2010).
As profissionais de ambos os campos relatavam tentativas de aproximação com aquela realidade:
Geralmente, eu pauto muito na questão das visitas, de estar indo na casa, de saber como é a rotina, como que é o cotidiano, de adequação do ambiente (terapeuta ocupacional 9 - Atenção Básica em Saúde, p. 8).
As propostas eram que elas mostrassem pra gente um pouco do bairro, um pouco do que elas gostam de fazer, de onde elas moram. E a gente saiu para o território antes da criação [do grupo] para poder conhecer e saber onde que estavam (terapeuta ocupacional social 4, p. 2).
Na convivência com a região estudada, demarcada pela vulnerabilidade social, ficaram evidenciadas questões relacionadas à precarização do trabalho formal. Associado a este fator, o mundo da ilegalidade apresentou-se como elemento constitutivo daquele espaço, com forte relação com o universo das drogas e, mais especificamente, do tráfico de drogas. Tais fatores estavam presentes e eram discussões constantes em ambas as equipes: na unidade de saúde assim como no centro de lazer voltado aos jovens.
Desse modo, têm-se o cenário da intervenção como ponto de partida, que aproxima as duas práticas estudadas, na medida em que a realidade dos sujeitos, grupos e coletivos é elemento intrínseco e inerente ao trabalho do terapeuta ocupacional em qualquer campo de atuação.
As características daquele contexto requeriam o estabelecimento de relações de confiança para que a ação técnica pudesse ser desenvolvida. Assim, o trabalho em terapia ocupacional demonstrava necessidade de desenvolvimento de vínculos para que pudesse atingir, verdadeiramente, aquela comunidade. Esteve presente a criação de estratégias para fortalecimento do vínculo com as pessoas em ambas as intervenções acompanhadas.
Na terapia ocupacional social a importância do vínculo se deve ao fato de que, na ausência dele, não se consegue acessar as reais demandas, necessidades e desejos das pessoas, resultando no insucesso das intervenções (LOPES, 2006). No acompanhamento das atividades, notou-se que o processo de vinculação acontecia de forma lenta e gradual, assim como nas experiências vivenciadas por Lopes, Borba e Cappellaro (2011) e Lopes, Malfitano e Borba (2006). Partia-se da aproximação do sujeito através das oficinas de atividades que, por meio desta, elegia uma pessoa da equipe, mantendo-a como referência às suas demandas e relatos pessoais.
Já no âmbito da saúde o vínculo com pacientes é também um importante instrumento, uma vez que possibilita maior adesão ao tratamento, ampliando a eficácia das ações de saúde e favorecendo a participação do usuário durante o processo terapêutico. Na prática observada na atenção básica em saúde, a terapeuta ocupacional dispunha do vínculo como passo inicial de um tratamento, adquirindo-o por meio da escuta qualificada e do acolhimento em saúde. Notou-se que era estabelecido de forma mais rápida e pontual, uma vez que os usuários dos serviços públicos de saúde, principalmente daquela região, depositavam nos profissionais de saúde grande pujança, colocando-os como referência em seu processo saúde-doença. Partia-se da demanda e procura espontânea dos usuários, modificando as características do processo.
Outro elemento observado constituiu-se na composição de equipes de trabalho pelos terapeutas ocupacionais. Na atenção básica em saúde, a terapeuta ocupacional estava inserida em equipes multiprofissionais por meio do apoio matricial. De acordo com Campos e Dommiti (2007), o apoio matricial é uma metodologia de trabalho complementar com objetivo de assegurar e dar suporte técnico às equipes e profissionais encarregados da atenção à saúde, como em Unidades de Saúde da Família (USF).
Assim, esse suporte acontecia por meio de reuniões, nas quais os profissionais das unidades traziam casos e discutiam possibilidades e formas de tratamento, com sugestões e esclarecimentos dos profissionais responsáveis pelo matriciamento, como a terapeuta ocupacional acompanhada.
Nas atividades acompanhadas no campo social, a equipe de atuação, responsável pelas ações práticas, era composta apenas por terapeutas ocupacionais, profissionais e estudantes. A equipe também desempenhava papéis de articulador e de suporte técnico aos profissionais atuantes no centro da juventude, assessorando-os na elaboração técnica de proposições e nos relacionamentos com os jovens, entre outras ações.
Portanto, observa-se que o trabalho em equipe e sua articulação aparecem como outros elementos de trabalho do terapeuta ocupacional, utilizados nos dois campos estudados, como ponto de similaridade, realizando o papel de articulador de saberes.
A prática terapêutico-ocupacional também possui enfoque distinto na dicotomia saúde-social quando observada a intervenção diretamente no domicílio do indivíduo acompanhado. A visita domiciliar, como técnica para levantamento de informações, é utilizada por diversas profissões, constituindo-se como um momento para a escuta qualificada, o vínculo e o acolhimento de indivíduos ou famílias que demandam cuidados.
Na saúde foi acompanhada uma visita domiciliar a uma senhora idosa, e com obesidade mórbida, a qual não saía de casa e não realizava nenhuma atividade física, assim a terapeuta ocupacional traçou como demanda o trabalho voltado à promoção de sua saúde, prevenção de outros agravos, melhora na qualidade de vida por meio da interferência em suas atividades cotidianas, usando a criação de vínculo como meio para tal.
A área social, por sua vez, também utiliza da visita domiciliar como um instrumento de informação e de criação/estreitamento do vínculo, assim como para encaminhamentos demandados da aproximação com os jovens, naquela experiência. Foi acompanhada uma visita a um adolescente e aos seus familiares com intuito de propor seu encaminhamento às atividades esportivas e escolares. Naquele momento, o objetivo era a viabilização da ida da adolescente à escola, por se tratar de etapa fundamental da vida adolescente, apropriando-a desse direito como cidadã. Observa-se, portanto, que o objetivo central se difere, ao passo que sua realização propõe investigar a história do sujeito com vistas a buscar novos projetos de inserção e perspectivas de efetivação de ações sociais.
Os desdobramentos do processo de vinculação refletiram em ações individualizadas e mais aprofundadas entre a profissional e o sujeito. Na saúde, principalmente nos atendimentos ambulatoriais e/ou domiciliares, acompanharam-se ações de adaptações e treinos para atividades de vida diária; estímulos para o autocuidado, autoestima e autoconhecimento; reestruturação do cotidiano; entre outros.
Eu foco muito no atendimento individual, eu tenho uma postura meio tradicional assim, eu gosto desse contato no individual. Sei que tem muita crítica na atenção básica, o pessoal gosta muito de trabalhar em grupo, de fazer outro tipo de estratégia de atendimento, mas têm alguns casos que eu gosto de atender no individual, principalmente quando é questão de deficiência física ou alguma coisa que eu precise fazer um treino de AVD ou reestruturação de cotidiano (terapeuta ocupacional - Atenção Básica em Saúde 9, p. 3).
Já no campo social, os denominados acompanhamentos individuais refletem um acolhimento das demandas do outro, em responsabilidade conjunta para a resolução de problemas, como articulações com familiares, com escolas, com o mercado de trabalho, tendo a inserção social como eixo de ação.
Acho que o terapeuta ocupacional [social] tem um olhar para os acompanhamentos individuais e que têm produzido muito material pra gente pensar nessa ampliação do campo da terapia ocupacional (terapeuta ocupacional social 4, p. 1/2).
Compreende-se, portanto, que as intervenções individualizadas são pontos que distinguem a prática da terapia ocupacional social e na atenção básica em saúde, visto que a diferença já se dá na própria nomenclatura das ações: atendimento e acompanhamento.
O atendimento em saúde pelo viés do SUS é calcado em objetivos como promover a integralidade da assistência, a equidade, a promoção e prevenção de agravos e a revisão das práticas cotidianas (CASATE; CORRÊA, 2005). Estabelecem-se metas para um Plano Terapêutico Singular, a partir das necessidades do outro. Já o acompanhamento individual empregado na área social é uma ferramenta utilizada para promover o fortalecimento das redes sociais de suporte, com vistas a proporcionar maior inserção social do indivíduo, não abordando questões "terapêuticas" ou da relação saúde e doença. Por meio de estratégias diversas, volta-se para uma leitura conjunta das necessidades apresentadas, tendo como viés sua responsabilidade profissional política, técnica e ética na função de articular redes sociais, redes comunitário-familiares e de serviços e órgãos públicos (LOPES; BORBA; CAPPELLARO, 2011).
Assim demarca-se a diferença de recursos utilizados para ações individualizaas em ambos os campos.
Quando nos voltamos especificamente ao trabalho técnico em contextos de vulnerabilidade social, observam-se proposições diferentes quando realizadas pelo viés da área da saúde ou da área social. No âmbito da saúde, a vulnerabilidade social é encarada como
[...] um conjunto de aspectos que vão além do individual, abrangendo aspectos coletivos, contextuais, que levam à suscetibilidade a doenças ou agravos. (SÁNCHEZ; BERTOLOZZI, 2007, p. 323).
Além de também levar em conta aspectos que se relacionam à disponibilidade ou à ausência de recursos destinados à proteção dos indivíduos. Dessa maneira, a utilização do conceito na atenção básica em saúde tende a apoiar novas práticas que se dissociem de explicações relacionadas ao paradigma unicausal das doenças, nas quais o cuidado às pessoas surja de ações em conjunto com outros setores da sociedade, por meio da intersetorialidade (SÁNCHEZ; BERTOLOZZI, 2007). Entende-se, portanto, que a vulnerabilidade social é uma condição pela qual a ação da saúde pode perpassar, devendo construir intervenções para se trabalhar com ela.
Em contraponto, na área social a vulnerabilidade se constrói como instrumento de trabalho, na qual a questão socioeconômica se faz como elemento central da intervenção, na medida em que o recorte escolhido se dá pela intervenção em contextos desfavorecidos economicamente. Portanto, a atuação intersetorial também se faz necessária para a possibilidade de articulação de recursos em determinada região, notadamente marcada por estigmas sociais. Segundo Malfitano (2005), a área social se constitui como um campo, de caráter mais geral e interdisciplinar, composto por diversos núcleos e suas especialidades, os quais são formados por uma dada área com um dado profissional. A autora afirma que o trabalho em rede determina maior efetividade para a população assistida, na medida em que visualiza, de forma integral, suas demanadas.
Têm-se, para as duas áreas trabalhadas, a vulnerabilidade social e a intersetorialidade como pontos de partida e de similaridade, contudo com objetivos de trabalho distintos, sendo para a saúde o intuito voltado para a prevenção de doenças e a promoção da saúde, e, para a área social, o objetivo de discussão de direitos e o vislumbre de possibilidades de efetivação de projetos voltados para a inserção social, nos níveis individual e/ou coletivo.
Portanto, a atuação da terapia ocupacional em contextos de vulnerabilidade nos campos social e atenção básica em saúde possuem diferenças intrínsecas aos cuidados que cada uma delas estabelece aos sujeitos atendidos e acompanhados, sendo distinto o enfoque da saúde e o enfoque social dessa modalidade de assistência.
Apresentamos, na Tabela 1, uma síntese das principais ações realizadas pelas terapeutas ocupacionais em ambos os campos e as distinções entre elas, segundo seu discurso e observações feitas.
4 Considerações finais
A partir de elementos de necessidade de distinção e especificidades nos campos, pudemos observar a concretude de dois universos distintos de atuação: a terapia ocupacional na área social e a terapia ocupacional na atenção básica em saúde. Muitas vezes lidas pela similaridade dos "contextos sociais", vale destacar que a intervenção em espaços de vulnerabilidade socioeconômica não define, por si, a natureza do trabalho desempenhado, na medida em que se faz necessário o olhar aproximado aos objetivos, recursos e especificidades de cada intervenção, para que se possa delimitar as intenções com a intervenção, os conhecimentos com os quais dialoga, sua finalidade e habilidades e competências requeridas para o seu desenvolvimento.
Destacamos a necessidade de preocupação com as lacunas na formação graduada para que se possa voltar a atenção para a capacitação técnica, política e ética de profissionais para ambos os campos. Pelos relatos apresentados, pautamos a necessidade de discussão acerca da necessidade de um maior investimento das universidades para com o ensino acadêmico de ambas as áreas.
Contextos de vulnerabilidade social têm marcado práticas profissionais e requerem atenção e compreensão aprofundadas. Demandas como a articulação entre equipamentos sociais formais e informais disponíveis na região, a compreensão de demandas individuais e/ou coletivas dos sujeitos, assim como atuar sob contextos onde impera a ilegalidade, com predominância para a organização do tráfico de drogas e suas consequências, como crimes e mortes, são pontos que aproximam a prática tanto de terapeutas ocupacionais da saúde quanto da área social e interpelam as possibilidades e limites do desenvolvimento de trabalhos. Tais apontamentos estendem-se a todos os técnicos que se encontram trabalhando em regiões periféricas, independente de sua formação de base. Com isso, têm-se o cenário da intervenção como ponto de partida, que aproxima as duas práticas estudadas, na medida em que a realidade dos sujeitos, grupos e coletivos é elemento intrínseco e inerente ao trabalho do terapeuta ocupacional em qualquer campo de atuação.
O espaço marcado por vulnerabilidades compõe também distinções importantes em relação às duas áreas de atuação, quando se volta a seus objetivos específicos. A saúde foca-se na prevenção de doenças suscetíveis pela situação local e a área social utiliza-se da vulnerabilidade como instrumento de trabalho e de reflexão para se pensar as possibilidades de inserção social daqueles sujeitos e comunidades.
Além das similaridades e distinções aqui apresentadas, observou-se durante a pesquisa a estreita relação que o trabalho em equipes multiprofissionais proporciona à terapia ocupacional e aos outros profissionais. Compreendendo a ação por meio de núcleos de especificidades que compõem um campo de atuação comum, o trabalho intersetorial se faz quando tais núcleos se casam e realizam intervenções similares e conjuntas. Portanto, tem-se que a intersetorialidade se faz presente nos dois campos estudados evidenciando que o trabalho em rede determina a maior efetividade de intervenção à população assistida.
Por fim, através da comparação do trabalho da terapia ocupacional na atenção básica em saúde e na área social, concluímos que se trata de campos específicos, com questões inerentes que requerem atuações singulares e distintas, e, portanto, formações e habilidades específicas.
Consideramos necessário aos terapeutas ocupacionais a compreensão das práticas desempenhadas a fim de que realizem intervenções condizentes com as necessidades do campo, inferindo em maiores contribuições ao público para o qual desempenha sua ação. É de fundamental importância que os terapeutas ocupacionais conheçam as particularidades e funções de cada campo, visando atuações responsáveis e efetivas, com respostas coerentes às demandas da população assistida.
Notas
1 Grupo interinstituciona l de estudos, formação e ações pela cidadania de crianças, adolescentes e adultos em processos de ruptura das redes sociais de suporte. Criado em 1998 por docentes de terapia ocupacional de três universidades paulistas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Universidade de São Paulo (USP). Desde então, sua proposta tem sido desenvolver projetos no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão em terapia ocupacional social. Atualmente mantém os núcleos da Universidade de São Paulo (USP), da UFSCar (BARROS; LOPES; GALHEIGO, 2007) e da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
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Ana Paula Serrata Malfitanoa, Pamela Cristina Bianchib
aDoutora em Saúde Pública, Universidade de São Paulo - USP, Professora Adjunta do Departamento
de Terapia Ocupacional e do Programa de Pós-graduação em Terapia Ocupacional,
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, São Carlos, SP, Brasil
bResidente do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade,
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, Graduada em Terapia Ocupacional,
bolsista do Programa PIBIC/CNPq/UFSCar, 2010-2011,
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, São Carlos, SP, Brasil
Autor para correspondência : Ana Paula Serrata Malfitano, Laboratório METUIA, Departamento de Terapia Ocupacional, Universidade Federal de São Carlos, Rod. Washington Luís, Km 235, SP-310, CEP 13565-905, São Carlos, SP, Brasil, e-mail: [email protected]
Recebido em 13/3/2013; 1a Revisão em 3/6/2013; 2a Revisão em 22/6/2013, Aceito em 25/7/2013.
Contribuição dos Autores
Ana Paula Serrata Malfitano: Contribuiu na concepção do trabalho, na análise dos dados e na elaboração e redação do texto. Pamela Cristina Bianchi: Contribuiu na concepção do trabalho, na coleta e organização dos dados, na análise, elaboração e redação do texto.
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