Resumo
Os conceitos, a linguagem e as acepçôes teóricas formulam um conhecimento. A Teologia, como área de um saber, também se serve de principios teóricos para elucidar o Transcendente. Contudo, a Teologia Oriental apregoa que antes de todo conceito, os saberes decorrentes da experiência de fé do homem com Deus nao sao resultantes somente de fórmulas conceituais, axiomas irrefutáveis; brotam da intimidade pessoal e da experiência de fé que, longe de serem confundidas com ideologias, abstraçôes, alucinaçôes de natureza psíquica, instituiam-se quais fundamentos e materialidade da teologia oriental. Neste universo de conhecimentos teológicos, afora o conjunto de conceitos, a fé oriental ultrapassa a lógica e parámetros de um conhecimento elaborado apenas por teorias e dá espaço e releváncia à experiência vivida. Para o cristianismo oriental, na experiência estao a chave, a distinçao e a especificidade da Teologia oriental que procura dialogar com o mundo em sua inteireza. Este artigo discorre sobre o lugar da experiência na práxis teológica das igrejas cristas orientais, buscando nos teólogos orientais ortodoxos gregos e eslavos os pressupostos e fundamentos para tal compreensao.
Palavras-Chave: Teologia Oriental; Experiência; Igrejas Cristas Orientais; Práxis Teológica
Abstract
The concepts, language and theoretical meanings formulate knowledge. Theology, as an area of knowledge, also makes use of theoretical principles to elucidate the Transcendent. However, Eastern theology proclaims that before every concept, knowledge resulting from man's experience of faith with God are not only a result of conceptual formulas, irrefutable axioms; They stem from personal intimacy and the experience of faith that, far from being confused with ideologies, abstractions, psychic nature hallucinations, they showed themselves as the foundations and materiality of Eastern theology. Within this universe of theological knowledge, apart from the set of concepts, Eastern overcomes logic and the parameters of some knowledge made only by theories and gives space and relevance to lived experience. In Eastern Christianity, the experience is the key, distinction and specificity of Eastern theology that seeks to dialogue with the world in its entirety. This article discusses the place of experience in theological praxis of the Eastern Christian churches, seeking the Eastern Orthodox theologians Greeks and Slavs the foundation for such an understanding.
Keywords: Eastern theology; Experience; Eastern Christian Churches; Praxis Theological
Introduçâo
As problemáticas levantadas nas pesquisas de cunho religioso, em suas diversas possibilidades de recorte acerca de um objeto, tentam decodificar os saberes a partir de num lugar e marco epistemológico distintos. Logo, é dentro de uma contextualizaçao geográfica e sócio cultural que os objetos ou fontes historiográficas sobre o Oriente e os assuntos correlatos a ele devem ser estudados, investigados, interpretados e compreendidos. Disso decorre que as temáticas relativas às religiosidades orientais, cristas ou nao, também sao despertadas a partir de desdobramentos conceituais pensados em um lugar. Assim, o lugar tornase um ponto de construçao de saberes que nem sempre estao em conformidades hermenêuticas com outros conhecimentos. A antropología olhará para os individuos ou cultura do Oriente, respaldada em suas lógicas e métodos; de igual forma a Teologia e a Filosofia assim o fazem. Mesmo que haja compartilhamento ou comungaçao de fontes, cada uma dessas áreas de conhecimentos enxergará o Oriente buscando respostas às perguntas feitas, obedecendo critérios de legitimidade conceitual. Talvez, mais importante que achar as respostas é saber fazer as perguntas obedecendo aos principios racionais acerca de uma realidade circunscrita.
Ao mesmo tempo, é preciso entender que os plurais saberes que caracterizam os diversos campos investigativos sobre as religioes e religiosidades orientais, em suas diversas denominaçoes, (Cristianismo, Budismo, Hinduismo, Bramanismo, Confucionismo, Xintoísmo, Taoismo) tentam oferecer ao mundo uma compreensao a respeito do Transcendente que é capaz de revelar-se, mostrarse, relacionar-se com o humano. Tal apreensao acarreta efeitos práticos e decifratórios na elaboraçao de conceitos, de discursos, de promulgaçao de dogmáticas, conteúdos doutrinários e principios teóricos que formam um corpo conceitual distinto que chamamos de Teologia. Afinal, o conhecimento metódico reivindicado pela Teologia nao funciona sem definiçoes, conceituaçoes, pareceres; como ciência ela também precisa de uma maneira ajustada de pensar sobre seu objeto.
Ocristianismo, como religiao experimentada e posteriormente instituida - portanto, formalizada e formatada por dizeres e lógicas - nasceu no Oriente. De lá, espraiou-se para diversas partes do Ocidente, levando consigo um modo de pensar e compreender Deus (SPIDLIK, 2002). O corpo dogmático e doutrinal aprovado no Oriente cristao pelos sete primeiros Concilios Ecuménicos, tornou-se a espinha dorsal da Teología crista que explanava e elucidava racionalmente as verdades instituidas sobre a fé em Jesus Cristo, o Logos encarnado, o Verbo prometido pelo Pai.
Os que iam de encontro ao estabelecido pela Igreja em matéria de fé ou se contrapusesse aos dogmas, eram acusados de cairem em cisma, porque alimentavam conceitos, arrazoados que justificavam a separaçao, a ruptura, a heresia. No entender da Teologia Oriental, a heresia é o erguimento ou a edificaçao de razoes feitas por mediaçao das palavras, que explicam a escolha deliberada por uma parte da verdade, por um único aspecto da certeza, relativizando as outras partes e os outros aspectos. O processo dessa escolha é sempre intelectual, como consequência de uma preferência teórica que tenta esquematizar certa compreensao eclesial. A Igreja como jurisdiçao e respaldada por decisoes conciliares, reagindo mediante o anúncio de verdades-parciais (heresias) tentava por limites, instituindo o dogma. Era o dogma que impedia que as certezas ou as verdades promulgadas pelos Concilios perdessem sua totalidade e catolicidade. Heresia e dogma, portanto, sao resultantes de estruturas fundamentadas e justificadas por conceitos, por palavras, por pareceres.
Nesse sentido, as palavras sao facilmente manipuladoras e manipuláveis porque, dependendo de quem as usa, embasa as defesas ou as contestaçoes. Por isso, o Oriente cristao faz lembrar que antes de toda formulaçao dogmática, os saberes da Teologia eram decorrentes da relaçao do homem com Deus; nao eram resultantes só de fórmulas conceituais, axiomas irrefutáveis; brotavam de uma experiencia que, nao podia ser confundida com ideologías, abstraçoes, alucinaçoes de natureza psíquica (MESKIN, 1987).
Para as igrejas cristas ortodoxas de vertente grega e eslava, por exemplo, na experiência estao a distinçao e a chave para a compreensao da Teologia Oriental. Até porque, para o pensamento teológico ortodoxo, toda relaçao com a divindade fora da experiência mística com o próprio Deus torna-se abstrata, ideológica, individualizante e desencarnada (FELMY, 2002). Este artigo, portanto, trata da experiencia como especificidade da Teologia oriental e chave de compreensao da práxis teológica das igrejas cristas bizantinas gregas e eslavas.
1Teologia crista oriental como resultante de conceitos, lugares e experiências.
Oriente e Ocidente nao foram assim chamados por acaso, até porque toda nomenclatura tem sua historicidade e fundamentos. Se foram nomeados, criados, inventados para designar as porçoes de espaço, na contemporaneidade se instituem para além disso, quais marcas e atributos de identidades, pensamentos e culturas. Nao sendo o Oriente e o Ocidente blocos homogêneos dentro dos quais nem tudo se assemelha, é possível verificar que o Oriente, tido por Hegel como o "lugar onde começa a vida e aonde o sol nasce" (HELGEL, 1995, p. 194), nem sempre significou prosperidade, ascensao e luz. Sobretudo, na formulaçao da doutrina e dogmas cristaos, o Oriente foi palco de inúmeras contendas, batalhas axiológicas, sombras e dúvidas. Na contemporaneidade, na compreensao dos termos 'Oriente' e 'Ocidente' que extrapolam as marcos geográficos, verifica-se que os perímetros nao mais obstaculizam a confluência de costumes, vivências, pensamentos e modos de se entender em um mundo cada vez mais globalizado, compartilhado e interligado pelos meios de comunicaçao.
Por isso, quando as pesquisas se debruçam sobre temas acerca do Ocidente e do Oriente cuidam para nao reduzir suas investigaçoes a mera questao de antagonismos teóricos e abstratos, tampouco observar esses espaços quais pontos mapeados do globo (BRECK, 2013). Trata-se de diagnosticar que nestes extremos existe um modo diferente de compreender conceitos e teorias que se propoem a compartilhar. Os que agem de forma contrária sao imediatamente taxados de fundamentalistas e remam contra a corrente da evoluçao cultural.
Decorrente disso, verifica-se que a distinçao entre Oriente e Ocidente nao é mais facilmente discernível, nao é mais evidente, como no passado. O Ocidente e o Oriente nao sao mais apenas fronteiras geográficas; estao por toda parte e representam a simbiose e a materialidade de uma revoluçao cultural pondo em xeque a confluência de pressupostos teóricos concretos de ordem indenitárias demasiadamente exclusivistas (KNITTER, 2012).
No tocante às igrejas ou comunidades eclesiais orientais, torna-se imprescindível entender que, da mesma forma que se convencionou chamar de "Igreja Oriental" o conjunto de igrejas cristas, nascidas em território nao-ocidental - mas que nele se espalhou - os plurais saberes dogmáticos cristaos orientais que caracterizam diversas escolas teológicas, encontram-se catalogadas naquilo que se compreende por "Teología Oriental". Logo, quando dizemos "Igreja Oriental" ou "Teología Oriental" queremos contemplar e se referir à multiforme realidade do conhecimento teológico cristao oriental que explica e legitima suas igrejas particulares. Como nao há uma só igreja oriental nao haverá também uma só teología oriental (ANDRONIKOV, 1992).
Assim, em cada Igreja particular do mundo oriental, de procedência grega ou eslava, unida ou nao entre si, o reconhecimento canónico e a legitimaçao se dao dentro de uma lógica e uma coerência respaldadas em pressupostos teológicos específicos. As comunidades cristas orientais encontrarao em seus cánones as justificativas para aceitar ou rechaçar pareceres que possam contribuir ou ameaçar suas verdades. O mesmo fazem os ocidentais. Mesmo no Oriente, as vozes de tantos cristaos que se somam a tantas outras denominaçao e crenças plurais, interrogam as práticas de fé em uma hermenêutica circunscrita e relativa ao escopo de certa tradiçao e herança cultural. Isto posto, é compreensível que o pensar teológico oriental seja fortemente tributário de um passado distante e de um lugar geograficamente localizado de pouca familiaridade para nós, ocidentais.
No tocantes às religioes e religiosidades, ao se descrever sobre as teologías cristas orientais sublinha-se que tal conhecimento ultrapassa a mera formalidade doutrinal, nem se trata de uma apresentaçao sistemática dos dogmas ou das verdades religiosas próprias do cristianismo oriental. Neste universo do conhecimento teológico, afora o conjunto de conceitos, a fé oriental excede à lógica e parámetros de um conhecimento elaborado apenas por teorias e dá espaço e relevância à experiencia vivida (YANNARAS, 1971).
A teologia oriental fundamenta que a experiência de fé acerca de Deus leva também a conhecê-lo de um modo específico (apofático) e que foge da pura racionalidade. O Oriente, nao obstante, observa que o costume de pensar de maneira formal e legalista sobre tudo cria o hábito de objetivar as realidades e de substituir a indeterminaçao dinámica da vida por esquemas e modelos prontos. Se o moralismo e o totalitarismo encontram seu arrazoado na forma de conhecimento positivo, logo, a verdade pode ser manipulada pela lógica, bastando apenas traçar os axiomas corretos. As certezas tornam-se escravas do inteligir humano, dos princípios e das leis, relegando outras formas de se conhecer a verdade ao puro subjetivismo e à mera especulaçao.
A teologia oriental se recusa a esgotar o conhecimento sobre Deus pela via racional, conceitual, doutrinal, baseando-se também na empiria, na experienciabilidade que está além de toda formulaçao lógica. Nesse sentido, o corpo teórico é posterior à experiência e à relaçao pessoal com Deus, credenciando linguagem urdida pela experiência, pela contemplaçao, pelo estupor, pelo maravilhamento (que brota das celebraçoes litúrgicas e da veneraçao aos icones, por exemplo) como elocuçao científica plausível. Geradora de saberes, a experiência equipara-se entao, à linguagem esquematizada e convencional proveniente do polido raciocínio e das noçoes menos descuradas, para compor o quadro teórico da teología que ordena as Igrejas cristas de vertente grega e eslavas.
Longe das grandes cátedras universitárias e dos grandes polos de pesquisas, também as oraçoes, os cantos litúrgicos, o olhar, o silêncio, o perfume do incenso, o tremular das velas acesas, o constante persignar da pessoa frente à sacralidade instituem-se acepçao e compreensao da encarnaçao do Logos que se manifesta no humano. Nesse entendimento, os ensaios gestual e introspectivo, as celebraçoes monacais, os rituais vespertinos e os oficios litúrgicos densos levam a um conhecimento sobre as realidades sagradas que a razao apenas complementa. Esse modo de compreender as formulaçoes teológicas acerca de Deus faz com que, diante do maravilhamento oriundo da experiência, os conceitos se tornem apenas suporte; a inteligibilidade perde sua funçao exclusiva para o perfeito entendimento; e o arrazoado deixa de ter a última palavra (LOSSKY, 1967).
Na Teologia crista oriental, se entende que diante do icone, por exemplo, a relaçao espiritual com o divino do homem e da mulher inteiros têm preponderante participaçao. Porque o que se contempla no icone é a individualidade do Logos encarnado escrita em cores e formas e nao os sentimentos ou formosuras humanas. No icone, os símbolos remetem àquilo que Deus se deixou revelar, nem sempre decifráveis pelo intelecto. Desde modo, nao só a razao tenta chegar a um conhecimento acerca do divino, mas a pessoa como realidade inteira (com seus sentidos, emoçoes, experiência) contribui para esse fim. É a pessoa em sua totalidade hipostaseada de corpo e alma que conhece e experimenta o divino no humano.
No entanto, Ioannis Zizioulas, teólogo oriental grego, adverte que até mesmo a experiência mística vivida em uma profunda intensidade, é incapaz de conhecer Deus em sua totalidade. Porque "somente o que se pode conhecer acerca de Deus é o que foi dado pela Revelaçao, sendo Ele muito mais que isso". Identificar a Deus pelo o que demonstra a Criaçao e a Encarnaçao do Verbo nao faz jus a sua ontologia (ZIZIOULAS, 2011). Ainda assim, a experiência mística dá sua contribuiçao à Teología porque enfatiza a incapacidade humana de somente positiva e racionalmente, se conhecer quem é Deus em sua inteireza.
2O Oriente e o Ocidente e a clivagem entre o Império e a Igreja: a substituiçâo da experiência pela razao
Para além de rubricas falsamente unificadoras, tanto no Oriente quanto no Ocidente cristaos, luz e trevas coexistiram (ZIZIOULAS, 2003, p. 101). A morte, o sangue, os conluios, os conchavos ou alianças e as disputas de poder, as traquinagens e as vilanias foram encenadas em ambos os lugares. Neles as experiências da dor e do afastamento de Deus também encontram seus regaços; e, por vezes, em ambientes em que a reluzente coroa régia tinha chancela e fazia eco com as das altas ou arredondadas mitras episcopais.
Tanto a Teologia como a História, como áreas de conhecimento em conexao, demonstra que nos très primeiros séculos de cristianismo, na Igreja nao havia forte ou incontestável formulaçao de principios teóricos a respeito das verdades e dogmas que anunciava. A pequena e recente comunidade crista vivia da imediatez do anúncio da Boa Nova, sem elaboraçoes sentenciosas. Era a fase da vivência experimental de uma fé gestada na crença de um Deus encarnado. Ainda que fosse um período embrionário, o testemunho da certeza vivida e experimentada nao prescindia de um convencimento pessoal, capaz de justificar a determinaçao de, até mesmo, entregar sua vida por causa daquela nova crença. Essa razao, essa certeza, ou persuasao nao vinha de pressupostos teóricos, mas da experiência e proximidade de um Deus que se fazia humano. Uma fé que tinha sua gênese na escuta do Evangelho, no entendimento das epístolas, na leitura das cartas e missivas que os primeiros bispos compunham para dirigir e orientar as primeiras comunidades. Aquela fé nao era uma certeza ideológica, sustentada por argumentos; era um movimento de confiança em que se depositava as expectativas e sede de vida nova em Deus, promovida pela experiência pessoal (LOSSKY, 1976).
Ainda que pese a fase rudimentar institucional da Igreja crista, em que a experiência era a mediaçao de conhecimento, no decorrer do primeiro milênio, com a realizaçao dos Concilios, consolidou-se o escriturístico, as normativas, a letra. Por isso, o segundo e revolucionário estágio de estabelecimento da Igreja é marcado pelo Edito de Milao, decretado pelo imperador Flavius Valerius Aurelius Constantinus ou Constantino I (272-337), no ano de 313, quando a fé crista passava a ser tolerada nos territórios do império romano. O reinado de Constantino tornouse uma linha divisória na história da Igreja crista: de figura de proa e monarca pagao passou a governante aureolado pela sacralidade das insígnias cristas (SAID, 2007).
O fato de o Império Romano do Ocidente ter capitulado diante da invasao dos Alanos, Vándalos e Suevos, na segunda metade do século V, Constantino encontrou em Bizáncio1 o lugar estratégico para dar continuidade ao império, formando aliança com o bispo local, na época Metrophanes. Se com o Edito de Milao (313) decretado por Constantino, o cristianismo era apenas tolerado no império romano, foi o imperador Teodósio (com o Edito de Tessalônica, em 360) que avançou e consolidou o cristianismo nao apenas em religiao tolerada, mas exclusiva e oficial dentro da circunscriçao territorial do império romano (GIORDANI, 1992, p. 87).
A igreja que vivia anteriormente da experiência e do testemunho, passava a partir dali a alicerçar suas certezas também na razao, teoremas, conceitos, formulaçoes dogmáticas. Com o abraço do Império, a igreja crista deixava de ser excluida para ser recepcionada pela corte e dela ganhar o status, indumentária, signos e aparatos régios, conservados até o momento presente nas Igrejas cristas Orientais católicas e ortodoxas, ainda que sob justificativas de novos critérios e hermenéuticas teológicas. Se de um lado, a incorporaçao de insignias próprias da simbologia e do poder imperial, presentes nos ritos e cerimônias religiosas desenhavam e organizavam os modos de ser de uma igreja que se servia do poderio para se legitimar, de outro, o império apropriava-se do capital simbólico e do conjunto de dispositivos imagéticos e materiais de poder (divino) para legitimar e justificar muitos de seus mandos.
O cristianismo desde entao guardou duas faces de uma mesma realidade institucional (a latina e a bizantina) que se viu apartada no século XI, quando do Cisma de 1054. A separaçao do cristianismo em comunhao fez instituir duas igrejas (a ortodoxa, no Oriente e a católica, no Ocidente) que nao mais se reconheciam partes integrantes de um mesmo corpo eclesiástico. Tal desconhecimento voluntário e intencional diagnosticou o surgimento de um fosso teológico que ainda na contemporaneidade se tenta ajustar.
Contudo, o desvincelhamento entre Oriente e Ocidente cristaos possibilitou que cada porçao desenvolvesse teologías especificas: enquanto a do Oriente primava pela mística e experiência, capazes de fundamentar conceitos, a do Ocidente reafirmava a primazia das palavras e da razao para explicar a Deus. Tais diferenças geraram consequências organizacionais, administrativas, compreensoes eclesiológicas distintas e, muitas vezes, antagónicas e excludentes. Enquanto a eclesiologia ocidental baseada na primazia, por exemplo, admitia a existência de uma só igreja, a sinodalidade oriental e a valorizaçao da experiência eclesial de cada lugar e cultura contribuiram para o surgimento de várias igrejas particulares que, juntas e em comunhao, formavam um corpo jurídico canónico pluriforme. Observa-se outra vez que a experiência ditou as normativas para que uma nova comunidade eclesial ou Igreja tivesse sua canonicidade reconhecida.
Atualmente, as igrejas cristas orientais estao assim agrupadas: 1) Igreja Assiríaca do Oriente ou Igreja Nestoriana; 2) Igrejas Ortodoxas Monofisistas naocalcedônias (Igreja Armênia, Igreja Copta, Igreja Etíope, Igreja Siríaca e Igreja Malankar); 3) Igrejas Ortodoxas Orientais (Constantinopla Alexandria, Antioquia, Jerusalém, Rússia, Romênia, Grécia, Sérvia, Bulgária Georgia, Chipre, Polônia, Albânia, Checo-Eslováquia e América); Igrejas Ortodoxas Autónomas (Monte Sinai, Finlândia, Japao e China) 4) Igrejas Canónicas dependentes de Constantinopla (Igreja Ortodoxa Carpático-russa, Igreja Ucraniana da América e do Canadá; Igreja Russa na Europa Ocidental; Igreja Albanesa da América; Igreja Bielorusso na América do Norte.
Ainda há um grupo que preserva, como os ortodoxos, os mesmo ritos, tradiçao, calendários litúrgicos e organizaçao interna, mas sao ligadas à Igreja de Roma: Igreja Maronita, Igreja Ítalo-albanesa, Caldeana, Malabar, Armênia, Copta, Etíope, Siríaca, Malankar, Melquita, Ucraniana, Rutena.2
Dessas igrejas orientais - e carregando às costas o peso e as consequências de polarizaçoes, fundamentalismos e dicotomías -, algumas chegaram ao Brasil, a partir do século XVIII, agrupadas conforme suas etnias e organizadas conforme a estruturaçao de eparquias diocesanas. O grupo de cristaos orientais de vertente ortodoxa, por exemplo, se organizou com o erguimento de suas distintas sedes administrativas eparquiais: a Ucraniana (Patriarcado Ecumênico) em Curitiba-PR; a Antioquina (Patriarcado de Antioquia) em Sao Paulo-SP; a Polonesa (Patriarcado da Polônia) no Rio de Janeiro, RJ; o Exarcado Patriarcal e Arquidiocese Grega (Patriarcado Ecumênico) em Sao Paulo-SP; as Arquidioceses da Rússia (Patriarcado de Moscou) no Rio de Janeiro-RJ, e da Sérvia (Patriarcado da Sérvia) em Recife-PE. O grupo de cristaos orientais católicos, por sua vez, se estruturou de modo equivalente: a Eparquía Ucraniana Católica de Rito Oriental, em CuritibaPR; a Eparquía Maronita Católica de Rito Oriental, a Eparquía Melquita Católica de Rito Oriental e a Eparquia Armênia Católica de Rito Oriental, todas em Sao PauloSP.
Nessas cidades de acolhida, ainda hoje, as igrejas cristas orientais continuam a pontificar um saber e um percurso de códigos que foram advindos de uma regularidade. O caldo de devoçao religiosa - moldado pelas mediaçoes simbólicas que circundam o lugar em que os orientais aportaram e ainda vivem - indica um fiel cristao oriental que tenta experimentar Deus à sua maneira, conforme seus costumes, crenças e tradiçoes.
Por vezes, redesenhadas na tela dos espaços de acolhida, a face e a identificaçao étnico-religiosa dos herdeiros desse inventário cultural oriental passaram a ganhar novos tons e um colorido que traduz uma liberdade de escolha e de profissao de fé e pertencimento religioso. Contudo, longe de ser uma descontinuidade, os cristaos orientais ortodoxos e católicos, a um modo condizente ao contexto do espaço em que se sociabilizam, por vezes, trocam suas experiências, sem maiores revezes, com os cristaos latinos. Se de um lado, o lugar de acolhimento de cristaos orientais tentava ditar seu ritmo e impor a readequaçao cultural daqueles que nele procuraram aconchego, por outro, nesses espaços os ortodoxos e católicos orientais deixaram também suas marcas, sabendo com maestria conciliar a herança cultural com as novidades trazidas pelo urbano, mapeando relaçoes com a alteridade. Com isso, a cultura religiosa crista de vertente oriental no Brasil ainda pulsa, ganha carne e anuncia um modo de crer e relacionar-se com Deus legitimado pelo tempo, pela tradiçao e suas teologias.
3 Liturgias orientais: momentos da experiência e da práxis teológica
As experiências e práticas devocionais têm um endereço; geralmente localizadas em um espaço que instituí uma geografía mística, em que se opera uma passagem de tempo, onde o racional e a experiência misturam-se: o interior das igrejas. No templo, considerado casa de Deus, possibilita-se abertura para que os individuos assimilem algo de fé pelo conjunto que o circunda (STANILOAE, 1986).
Segundo Pàvel Evdokimov, para se tentar compreender o mundo religioso oriental e suas práticas devocionais é preciso entrar nos meandros de sua Teologia (EVDOKIMOV, 1990). Na atual concepçao teológica crista oriental, guiar a vida de fé de uma comunidade pela experiência religiosa tornou-se a principal missao da Teologia. Disso decorre que a manifestaçao da religiosidade dos cristaos orientais, em geral possibilita compreender, a partir de amostragens sensiveis e de práticas ritualisticas individuais ou coletivas, sua visao de mundo. A este respeito, o teólogo russo, naturalizado francés Jean Meyendorff, considera que por meio da liturgia, os cristaos orientais se reconhecem e experimentam a pertença a uma comunidade que nela se identificam. Para ele, a liturgia, entao, é considerada como fonte e expressao nao só de uma teologia de uma Igreja institucionalizada, como também, é a instância de onde brota a identidade e a continuidade da igreja-comunidade (Εκκλησiα) formada pelos fiéis (MEYENDORFF, 1984, p. 141).
Por isso, na Carta Encíclica Orientale Dignitas, o Papa Leao XIII (18781903), insistia que os padres latinos, para que pudessem entender a identidade a que se reveste toda a Igreja (em suas porçoes oriental e ocidental), deveriam ter um conhecimento maior sobre a riqueza teológica e espiritual das diversas tradiçoes teológicas, litúrgicas e espirituais do Oriente cristao (BRUNINI, 1997). O insistente pedido, reforçado nos pontificados posteriores e chancelado no Concilio Vaticano II, ganhou voz e materialidade expressa em gestos concretos de aproximaçao também dos pontífices Joao Paulo II, Bento XVI e Francisco.
Consoante a estes très últimos papas, o termo 'unidade' entre as porçoes oriental e ocidental da Igreja ganhou visibilidade e peso de um caminho irreversível quando assinaram respectivamente documentos oficiais com os expoentes das Igrejas Orientais Ortodoxas: Atenágoras I, Demétrios I e Bartolomeu I.
Afora os conceitos teológicos ou as assinaturas de acordos de cooperaçao institucional ou o propósito de nao se medir esforços para a desejada unidade entre as igrejas, o conhecimento acerca de Deus se dá pelas celebraçoes litúrgicas. Contudo, as Igrejas Orientais católicas e ortodoxas ainda nao podem concelebrar juntas muitos de seus oficios religiosos, sobretudo a Divina Liturgia (na tradiçao oriental) ou a Santa Missa (na tradiçao ocidental) pela falta de plena comunhäo entre as instituiçoes. Por enquanto, por encontrarem-se em comunhäo parcial, algumas celebraçoes litúrgicas lhes sao permitidas. O padrao básico dos oficios religiosos orientais é similar ao da Igreja Católica Romana, no Ocidente. Secundariamente, sobressaem as que sao realizados diariamente: Oficios de Matinas, Vésperas, Primeira, Tércia, Sexta, Nona e Completas. O oficio de Matinas é equivalente ao das Laudes no Rito Romano. E por fim, os Oficios Sacramentais e de Bênçaos: Batismo, Casamento, Recepçao Monástica, Coroaçao Real, Consagraçao de uma Igreja, Sepultamento dos mortos, bênçao de casas, das águas, de crianças recém-nascidas, da mae parturiente, Bênçao dos Enfermos, de automóveis. Em cada uma dessas celebraçoes constitui-se um momento de encontro e de intimidade com Deus, que convida à introspecçao e à recepçao do mistério.
Uma forte característica das celebraçoes orientais reside no fato de as oraçoes serem cantadas em reto tom, com poucas alternâncias. A espiritualidade encontrou na inexistência da variaçao de tons e semitons dos hinos litúrgicos os caminhos para se instalar. Nas comunidades cristas orientais, o canto nao é acompanhado por qualquer instrumento; a voz humana impera sozinha e se alterna com a do celebrante. A voz da criatura em busca da experiência com seu Criador é soberana. Nem mesmo o som dos sinos pode afugentar a oportunidade do encontro. Por isso, os sinos se alojam fora da Igreja ou anexa a ela, em cima de torres. Isto porque, se entende que nada pode ofuscar a atençao do fiel que está ali para aprender a conhecer sagrado em suas formas rituais.
Como mostra a imagem abaixo, os templos das igrejas cristas orientais sao em geral cruciformes, com um largo espaço central coberto por uma cúpula, onde geralmente está iconografado a imagem do Cristo Pantocrator. As naves alongadas, comum nas catedrais e grandes igrejas paroquiais do estilo gótico ocidental nao sao encontradas na arquitetura de Igrejas Orientais. Segundo Zizioulas, o templo cristao oriental é assim configurado por ser o espaço da experienciabilidade, do encontro com o Inefável; é o lugar da aprendizagem sobre as realidades divinas pela via da contemplaçao e abstraçao. É a escola da razao que se faz fé (ZIZIOULAS, 2011). Para tanto, o espaço é projetado para que a experiência de fé encontra o cenário apropriado para uma gestaçao, onde as palavras se emudecem a razao cede sua primazia ao maravilhamento.
O pequeno nartex prepara a entrada do fiel para a grande nave; lá o fiel faz as primeiras reverências e oraçoes. A oraçao, na concepçao teológica oriental, é a força motriz de toda a vida espiritual, de todos os esforços humanos. É a conversaçao com Deus, é a relaçao pessoal com Deus, é a uniao com Deus, é a bússola do coraçao das virtudes (KATERELOS, 2014). A proximidade e intimidade com o divino faz da oraçao algo contínuo, encarnado porque já nao é mais a pessoa quem reza, mas o próprio espírito divino que a faz.
Ao se entrar em uma igreja de estilo oriental, o fiel ou o visitante ingressa nesse ambiente iniciador de novas experiências e das novas teofanias. Nao é somente o lugar em que o fiel faz suas primeiras oraçoes e acende suas velas para o santo de devoçao, mas é o ambiente das perdas. No nartex, perde-se ou deixa-se as perturbaçoes humanas, para entregar-se à gratuidade. Outra característica de um templo cristao oriental é que na nave (onde ficam os fiéis) nao se dispoem cadeiras ou bancos; as poucas cadeiras com encostos altos e arredondados estao dispostas juntas às paredes. Isto porque as igrejas orientais sao construçoes pensadas para a vida monástica. Na perspectiva teológica monacal, os lugares dos monges sao as laterais dos templos, porque o centro é ocupado pelo Cristo. Por isso, o cristao oriental, seguindo a regra monasterial, normalmente, fica de pé durante as celebraçoes; costume este pouco observado principalmente nos países de diáspora, como o Brasil. Algumas igrejas ucranianas e russas ortodoxas, no Sul brasileiro, ainda ressalvam esta prática.
Como mostra a imagem, em toda Igreja crista oriental o altar principal é separado da nave por uma parede repleta de icones, chamada de iconostásio. O iconostásio nas igrejas orientais anuncia a existência de uma passagem entre dois territorios, entre dois espaços instituidos, entre dois mundos que guardam seus sentidos e símbolos. Ultrapassando qualquer planejamento cênico e indo além de um gosto estético apurado, o iconostásio qual a cortina de um teatro deixa invisível o que guarda. Embora o conjunto iconográfico obedeça a uma disposiçao, regras, formas, tamanhos e conteúdo, nao esconde uma ruptura, um confrontamento, uma linha que separa o sagrado e o profano, ao mesmo tempo em que possibilita a poucos (ou seja, aos hierarcas) o tránsito entre duas realidades. Se o rito solenemente glorifica e acentua a existência desses dois mundos, o iconostásio em cada igreja oriental é a materialidade dessa distinçao.
Mircea Eliade, ao analisar específicamente as relaçoes entre o sagrado e o profano, tenta demonstrar que, também a porta, ao menos num templo, nao é tao somente uma passagem física, posto que está totalmente imbuída de sentidos outros. Em suas palavras:
A porta que se abre para o interior da igreja significa, de fato, uma soluçao de continuidade. O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distáncia entre os dois modos de ser, profano e religioso. O limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opoem dois mundos - e o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam, onde se pode efetuar a passagem do mundo profano para o mundo sagrado (ELIADE, 1992, p. 15).
Um exemplo dessa fronteira, desse limiar no sentido proposto por Mircea Eliade, pode ser as figuras que compoem a ornamentaçao o iconostásio, essa passagem entre os dois mundos. Em qualquer igreja oriental de estilo bizantino, o fiel diante da majestática parede, à esquerda contemplará o ícone de Maria Santíssima e à direita o de Jesus Cristo reproduzindo as posiçoes de ambos em determinadas passagens bíblicas: Maria está de pé à esquerda contemplando o seu filho crucificado; e Jesus, como relata o credo apostólico, após subir ao céu, está sentado à direita de Deus Pai. A disposiçao de ambos no compósito do iconostásio, no passado tinha funçao de instruir os iletrados acerca dos mistérios da fé, hoje, deixa evidente que o que estava por trás daquela parede eivada de icones é algo velado e mais santo que aqueles que se deixam ver. Se o iconostásio em sua fulguraçao tem como funçao primária instruir e catequizar, nao escapa, contudo, de uma associaçao com a arte cênica podendo também abrir brechas por onde se insinuem mudanças, por onde se imponham novidades.
Os santos iconografados no iconostásio se por um lado abrem alas para o místico, por outro trazem o germe de uma inquietaçao, essa geradora fértil de conhecimento e de experiência com o divino (SPITERIS, 2003). Estar atrás de uma linha sem se preocupar com o que existe do outro lado parece nao ser possível para as pessoas do mundo contemporáneo. A curiosidade, a investigaçao, a agudeza e a perspicácia em saber descobrir tornam qualquer indivíduo alguém inconformado. Os cristaos orientais de tradiçao bizantina, em seu modo de conceber suas crenças, parecem precisar da parede, da linha, do sinal que marca e separa. De todo modo, o iconostásio presente nos templos, seguindo em sua feitura um padrao fiel ao mundo bizantino, nao deixa de incomodar, inquietar e motivar os fiéis a transpor as fronteiras e perceber que aquela parede - apartada de sua funçao primeira - institui-se sinal material do mistério que só se deixa revelar pela experiência. Um veículo para um devir que, necessariamente, nao precisa trazer respostas, mas que, certamente, proporciona ao fiel cristao uma maior possibilidade de proximidade com o Velado.
Conclusäo
Nas Igrejas Orientais o lugar da experiência de Deus está no espaço em que se celebra da liturgia. Por isso, ZiZioulas (2011), Eliade (1989) e Yannaras (1989) certificam que os templos nao sao lugares comuns; se sobressaem dos outros pela funçao que ocupam e porque representam o inefável. Sendo Deus aquele que é inexprimível, homens e mulheres usam de sua condiçao humana, das mediaçoes e das ferramentas de acesso para dele se estar próximos: cantos, oraçoes, gestos, silêncios; meditaçao, leituras, contemplaçao.
Sendo a fé crista oriental essencialmente trinitária, a liturgia bizantina está carregada de símbolos que fazem referencias ao Deus Pai, Filho e Espirito Santo. Tal assertiva é demonstrada, por exemplo, no grande número de persignaçoes feitas pelos fieis desde sua entrada em um templo cristao oriental. Se os simples gestos condensam tal certeza, acreditam os teólogos gregos, que homens e mulheres podem experienciar o que esse Deus Uno e Trino deixa-se conhecer. Nesse sentido, todo ritual litúrgico e celebrativo prepara e capacita o fiel para a experiência de se compreender ou conhecer Deus através dos sentidos. Até porque, no convencimento cristao oriental a iniciativa da Revelaçao parte sempre do divino e nao das vontades, da razao e dos caprichos humanos (FLOROVSKY, 1976). Na perspectiva latina tomista, no entanto, a razao humana inicia e torna-se a mola propulsora que principia um caminho de busca da verdade; é a razao que faz nascer reflexoes dando o primeiro passo. Em uma época de tempos líquidos e entrecruzados, a Teologia crista muito se enriqueceria se a mútua compreensao entre acadêmicos orientais e ocidentais fosse buscada, sem se preocupar com defesas prévias de suas verdades e a imposiçao de seus códigos de saberes. Tanto uma quanto outra tem suas estruturas conceituais bem formadas, inexoravelmente justificadas e defendidas.
Ser cristao oriental nao significa mais estar alijado do mundo ocidental. Ele sofre também as influências da secularizaçao e do relativismo de valores favorecendo crises de identidades de instituiçoes e credibilidade de valores. Nesse caldo turbulento de culturas novas, as igrejas orientais católicas ou ortodoxas se veem constantemente desafiadas em sua missao de dar respostas às perguntas nascidas do inconformismo dos jovens cristaos orientais. Vários grupos de fieis incitam que as instituiçoes orientais também reflitam e deliberem sobre a maneira satisfatória de realizar no mundo contemporáneo, nao só a ortodoxia de uma fé confessional, como também a ortopraxis do Evangelho de Jesus Cristo que nasceu na pequena Belém, na Judéia (BRUNINI, 1997).
Por isso, o conhecimento acerca do divino, para a Teología oriental, nao se deixa adquirir somente pela abstraçao, pela ciência, dominio e empregabilidade de conceitos e, tao pouco, mutilando-se ou anulando-se o tempo de espera e de paciência. E os lugares apropriados para o exercicio dessa parcimônia gestadora de saberes sao os espaços de oraçao, de meditaçao e de encontro com o divino. As igrejas cristas orientais de vertente bizantina ou eslava apregoam, por isso, que a vida contemplativa é a escolha precisa para quem busca experimentar o Logos em sua singularidade. Ademais, para se experienciar o Verbo Encarnado, fundamenta a Teologia Oriental, nao depende exclusivamente da vontade humana, do ato de querer, mas de uma iniciativa alheia a sua (LOSSKY, 1967). Desse modo, a vontade e a razao sao colocadas em um segundo plano, tendo a graça ou o "dom que vem do alto" como norteadores de um saber; ainda assim, o conhecimento acerca de Deus é sempre tangenciado e nunca apreendido de forma absoluta ou total. Segundo a teologia oriental, o que podem ser captadas sao apenas algumas energias incriadas3, reveladoras da Trindade de um Deus que é Uno agindo no mundo e no homem, imagem e semelhança do Logos. Energias essas que se ramificam e estao diluidas nas mais variadas formas de vida racional ou nao.
A reflexäo acerca de Deus é possibilitada também pelas energías brotadas das palavras que podem ser ouvidas ou pelas palavras que se emudecem no instante da contemplaçâo. Daí porque a introspecçâo, esse momento de proximidade com o divino, dá-se pelo olhar, pelo silêncio, pelo emudecimento. Por isso, os icones presentes nos iconostásios das Igrejas cristäs Orientais näo säo apenas a materialidade de um dom artístico, ou peças de uma decorada parede que apenas divide a nave do altar de um templo, mas se instituem veículos transmissores da mística capaz de gerar proximidade e identificaçâo com o Logos. Nesse tipo de experimento, acreditam os grandes místicos cristäos orientais, a racionalidade dos dogmas e os conservadorismos de formas prontas das diversas teologias tendem a se curvar ante à simplicidade do apenas observar e adorar o mistério.
Embora o corpo teórico, conceitual, dogmático dos Concilios, esses instituidores e promulgadores de verdades, sejam também fruto de contendas, de escolhas feitas, de consensos, de exclusoes e de acordos encenados e costurados desde os primeiros séculos, a História registra um caminho percorrido de formulaçoes dessa fé também pela via da experiência. Disso decorre que, näo só a razäo burilou a crença cristä na formu^äo de propostos dogmáticos, como também a mística, a espiritualidade, o exercício de práticas litúrgicas e a introspe^äo deram seu contributo. Contudo, é bom frisar que para a Teologia oriental, a experiência mística e relacional com Deus näo exclui os dogmas, os preceitos, o corpus canónico da Igreja, porque eles säo percebidos como a racionalizaçäo do mistério, já experimentado por aquele que crê.
Talvez, atualmente, o grande desafio do cristianismo oriental näo seja mais formular dogmas, mas a de traduzi-los em vida e conhecimento, onde o compromisso com Deus e o estar no mundo exerçam sua precedência, antes de qualquer disputa teológica. Como no início do cristianismo, a teologia oriental fundamenta que a experienciabilidade institui-se como a via de redescoberta do divino no humano, do aprofundamento espiritual e da introspe^äo ativa que leva à atividade de intelecçao da alma em busca do Deus Uno e Trino que continua a fazer do homem e da mulher sua imagem e semelhança.
1 Fundada pelos imigrantes gregos em 637 a.C., Bizâncio, colônia helênica localizada entre os mares Negro e Egeu, tornou-se oficialmente a capital do império romano no Oriente, em 395, por decreto do imperador Teodósio que, antes de morrer dividiu-o territorialmente para seus filhos Arcádio e Honório. Para sinalizar o período novo no império, ordenou que modificassem o nome da capital Bizâncio para Constantinople/, já que o antigo nome remetia ao deus grego Byza. (RIVEROS; HERRERA CAJAS. 1998, p.15).
2 Para uma melhor compreensao acerca da natureza, história, especificidade e teologia das igrejas cristas orientais citadas ver: BINNS, 2009; KHATLAB, 1997; e GONZÁLEZ MONTESA, 2000.
3 Energías incriadas é um verbete de Gregorio Palamás que alude a um modo como a graça de Deus se manifesta no mundo. (PACOMIO; MANCUSO, 2003).
REFERENCIAS
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Paulo Augusto Tamanini*
Arttigo submetido em 23 de dezembro de 2015 e aprovado em 27 de setembro de 2016.
Agradeço à CAPES pela concessao da bolsa de PNPD.
* Doutor em História pela UFSC e mestre em História pela UDESC, especialista em Teologia Bizantina pela Escola Eclesiástica de Kilkis - Grécia, licenciado em Filosofia pela UNIFEBE. Professor Bolsista PNPD-CAPES no Programa de Pós-Gradi^ao em História da UFPR. País de Origem: Brasil. E-mail: [email protected]
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Copyright Pontificia Universidade Catolica de Minas Gera, Programa de Posgraduacao em Ciencias da Religiao Jul-Sep 2016
Abstract
The concepts, language and theoretical meanings formulate knowledge. Theology, as an area of knowledge, also makes use of theoretical principles to elucidate the Transcendent. However, Eastern theology proclaims that before every concept, knowledge resulting from man's experience of faith with God are not only a result of conceptual formulas, irrefutable axioms; They stem from personal intimacy and the experience of faith that, far from being confused with ideologies, abstractions, psychic nature hallucinations, they showed themselves as the foundations and materiality of Eastern theology. Within this universe of theological knowledge, apart from the set of concepts, Eastern overcomes logic and the parameters of some knowledge made only by theories and gives space and relevance to lived experience. In Eastern Christianity, the experience is the key, distinction and specificity of Eastern theology that seeks to dialogue with the world in its entirety. This article discusses the place of experience in theological praxis of the Eastern Christian churches, seeking the Eastern Orthodox theologians Greeks and Slavs the foundation for such an understanding.
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