Resumo
Este artigo versa sobre o conceito de lettre na obra do psicanalista francés Jacques Lacan, entre as décadas de 1950 e 1970 do seu ensino. Do quadro deste conceito, colocaremos uma questao clínica, a partir de um sonho de um paciente nosso: o que implica, em termos de direçao do tratamento, uma passagem da letra como instrumento de leitura para um instrumento de escrita? Para tanto, desenvolveremos duas interpretaçoes desse sonho, uma segundo uma leitura da letra e outra segundo sua escrita. Trata-se de um tema que estamos desenvolvendo na nossa pesquisa de mestrado.
Palavras chaves: psicanálise, letra, leitura, escrita, sonho.
ENTRE ESO Y ESO: LECTURA Y ESCRITURA DE LA NO RELACIÓN SEXUAL
Resumen
En este artículo se aborda el concepto de lettre en la obra del psicoanalista francés Jacques Lacan, entre las décadas de 1950 y 1970 de su enseñanza. En el marco de este concepto, se plantea una pregunta clínica, a partir de un sueño de un paciente: ¿qué implica, en términos de dirección de la cura, un pasaje de la letra como instrumento de lectura a un instrumento de escritura? Para esto, se desarrollarán dos interpretaciones de tal sueño, una según una lectura de la letra y otra según su escritura. Se trata de un tema que se está desarrollando en nuestra investigación de maestría.
Palabras clave: psicoanálisis, letra, lectura, escritura, sueño.
BETWEEN THAT AND THAT: READING AND WRITING OF THE NO SEXUAL RELATIONSHIP
Abstract
This paper approaches the concept of lettre in the work of the French psychoanalyst Jacques Lacan, between the decades 1950 and 1970 of his teaching. In the context of this concept, a clinic question is posed from a patient's dream: What is the implication, in terms of direction of the treatment, of a passage from letter as an instrument of reading to an instrument of writing? For this purpose, two interpretations of such dream will be developed, one of them according to a reading of the letter and the other one according to its writing. It is a subject currently developed in our master's research.
Keywords: psychoanalysis, letter, reading, writing, dream.
ENTRE ÇA ET ÇA : LECTURE ET ÉCRITURE DU NON-RAPPORT SEXUEL
Résumé
Cet article aborde le concept de lettre dans l'enseignement du psychanalyste français Jacques Lacan entre 1950 et 1970. Un rêve d'un patient est à l'origine d'une question clinique, posée dans le cadre de ce concept : quelles sont les implications, en termes de direction de la cure, d'un passage de la lettre comme outil de lecture à outil d'écriture ? Pour ce faire, deux interprétations dudit rêve seront développées, l'une suivant la lecture de la lettre, l'autre son écriture. Ce travail s'inscrit dans le cadre d'une recherche de Master.
Mots-clés : psychanalyse, lettre, lecture, écriture, rêve.
Recibido: 27/07/16 * Aprobado: 07/09/16
Introduçâo
Este artigo versa sobre o conceito de lettre na obra do psicanalista francés Jacques Lacan, entre as décadas de 1950 e 1970 do seu ensino. Interessa-nos investigar uma questao clínica, que será melhor colocada a partir do relato de um sonho de um paciente nosso: o que implica, em termos de direçao do tratamento, uma passagem da letra como instrumento de leitura para um instrumento de escrita?
A ressonância do sonho nos servirá de guia para avançarmos no campo teórico de leitura e escrita da letra em Lacan. Antes, porém, cabe dizer que, para a pesquisa conceitual, analisaremos a letra em dois textos fundamentais das décadas de 1950 e 1970, quais sejam: L'instance de la lettre dans l'inconscient ou la raison depuis Freud, de 1957, e La fonction de l'écrit, do seminário Encore (Lacan, 1972-73/1975). Tais textos se justificam por uma diferença fundamental na abordagem do conceito. Segundo Maleval (2010), lettre aparece primeiramente no texto Séminaire sur la lettre volée (Lacan, 1955/2001), sob a forma da carta do conto de Poe, cujo destino serve para evocar o significante. Mas é somente no texto L'instance de la lettre que ela ganhará valor de conceito. Seu estatuto é aí fundamentalmente ligado ao simbólico, à estrutura significante. Já no seminário Encore, a letra é usada como borda entre os registros simbólico e real, como escrita do saber no real, onde se marca um litoral e um gozo (Maleval, 2010).
Nossa hipótese aproxima essa diferença de registro de uma diferença entre leitura e escrita do conceito na obra. Por leitura, entendemos a organizaçao significante, tal qual estaría estruturado o inconsciente, que a letra no inicio da obra permitiria ler. Significantes inconscientes lidos em sua literalidade. Já por escrita, nao se trataria mais de uma leitura da maneira como os significantes estariam estruturados inconscientemente, mas da escrita de equívocos com significantes. Exploraremos mais essas questöes com o avanço do texto. Para assim avançar, partamos ao sonho:
Sonhei que meu pai esmurrava a minha mae que se defendia, e havia a frase Para isso (o que ela havia feito) você tinha isso (os murros). Isso vinha de uma maneira cómica. Ao mesmo tempo, era como se esses murros fossem do meu avô sobre a minha avó (materna), e a expressäo de defesa na cara da minha mäe, da minha irmä, quando eu e ela, quando crianças, brigávamos e ela se defendía e ao mesmo tempo ameaçava com seus braços. (Castro, comunicaçâo pessoal, 3 de abril de 2016)
Esse paciente, no momento em que relatou esse sonho, vivía uma separaçâo com a entäo namorada, com quem permanecera por muito tempo e com quem teve uma relaçâo conturbada e cheia de brigas. Näo havia violência física. Uma primeira interpretaçâo, segundo uma leitura dos significantes e da fantasia, seria falar do desejo de agressäo física que no sonho o colocaria no mesmo lugar do pai e do avô materno. Ao apontar esse desejo, provavelmente alguma coisa o faria "parar" para se ouvir, como talvez traga a ressonância do "Para isso", no inicio do sonho. Trata-se de uma interpretaçâo baseada numa mensagem inconsciente, para a qual se supöe significantes organizados entre si estruturando a linguagem dessa mensagem. O conceito na obra lacaniana que permite essa interpretaçâo é o conceito de letra. Será, portanto, importante analisar o seu estatuto. Veremos no próximo tópico como ela foi conceitualizada na década de 1950. Com esse primeiro passo dado, poderemos avançar uma outra interpretaçâo desse sonho, a partir de uma concepçâo da letra pautada na escrita.
Leitura da carta e da letra
Uma das maneiras de conceber lettre é a partir da vertente "carta", possível na traduçâo da palavra e assim trabalhada por Lacan em Le séminaire sur la lettre volée (Lacan, 1955/2001). O psicanalista analisará o conto de Poe e demonstrará a importância da carta roubada no estabelecimento de diversas relaçôes estruturais entre os personagens, que väo se construindo e repetindo na passagem do enredo (Nancy & Lacoue-Labarthe, 1991). Seu conteúdo é desconhecido, mas comprometedor, engajando cada personagem em determinadas posiçôes, de acordo com o momento do texto. Lacan (1955/2001) a tomará como significante a partir do qual diversas relaçôes estruturais seräo formadas.
Segundo Le Gaufey (1991), com a inversao feita por Lacan no algoritmo saussuriano (S/s), passou-se de uma concepçao sobre as ligaçoes entre significante e significado, para uma concepçao de ligaçoes entre significantes. Seriam estas últimas que efetuariam a gênese do próprio significado: "(...) Lacan faz de partida valer uma 'autonomía do significante', cujos cortes prevalecem na produçao de significaçao, nas quais aparecem entao, e somente entao, cortes no significado" (Le Gaufey, 1991, p. 150) (traduçao nossa). O caráter enigmático de uma "carta" do inconsciente se dá por essa primazia do significante. Pois, se o significado (sublinha-se: enigmático) nao fosse produzido nessa operaçao, saberíamos de antemao ao que correspondería determinados significantes num sonho. Essa prevalência dada à estrutura do significante (às suas próprias ligaçoes) permite a Lacan ler o sujeito freudiano como determinado por uma estrutura de linguagem. Serao as ligaçoes e cortes dos significantes entre si que determinarlo cadeias associativas, e nao um suposto significado existente de antemao no inconsciente.
Em Instância da Letra (Lacan, 1957/2001), a carta se tornará uma letra, num texto no qual, segundo Le Gaufey (1991), podemos ler o essencial da operaçao lacaniana do significante. Lacan (1957/2001) aí falará da letra como o "(...) suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem" (p. 492) (traduçao nossa). Será ela que, materialmente, permitirá uma apresentaçao estrutural dos significantes, e por isso também será definida como "(...) a estrutura essencialmente localizada do significante" (Lacan, 1957/2001, p. 498) (traduçao nossa). Trata-se de uma maneira de apresentar os significantes por uma via outra que aquela do significado (posto que significante prevalece sobre o significado), e que se constrói através de uma leitura que esse suporte material permite da estrutura de linguagem. Nao mais exatamente leitura de uma "carta" do inconsciente, mas especificamente leitura material, literal, do significante:
O que pertence à instância no sonho dessa mesma estrutura literalizante (dito de uma outra maneira: fonética), na qual se articula e se analisa o significante no discurso. Tais quais as figuras nao naturais do barco sobre o teto ou do homem com cabeça de vírgula, expressamente evocadas por Freud, as imagens dos sonhos devem ser retidas pelo seu valor de significante; ou seja, por aquilo que elas permitem soletrar sobre o "proverbio" proposto pela charada do sonho. Essa estrutura de linguagem que torna possível a operaçao da leitura está no principio da significáncia do sonho, da Traumdeutung (Lacan, 1957/2001, p. 507) (traduçao nossa).
Nessa citaçao, a instância da letra é evocada como estrutura "literalizante", ou fonética. É uma maneira de falar do caráter de decomposiçao e localizaçao da cadeia significante, que a letra permite. Ao literalizar o puro som do significante, encontra-se um traçado que possibilita sua leitura. É também fonético, posto que a soletraçao dos sons demonstra uma lei sincrónica de organizaçao, própria ao significante.
Segundo os autores Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, em sua obra O Título da Letra, a instância da letra é também a sua insistência (Nancy & Lacoue-Labarthe, 1991). Na razao desde Freud se trataría da produçao insistente da letra no inconsciente. Se, como dirá Lacan (1964/1973)2, em certo momento, a característica do inconsciente é de partida o fechamento, essa razao freudiana, com a letra, estaria ligada à sua abertura. Abertura que permite uma leitura da organizaçao significante inconsciente. Trata-se de um conceito que mantem algo suspenso no sentido, apontando, a contragolpe, a estrutura inconsciente. O reportar indefinido e insistente do sentido, específico à cadeia significante, transmitiria algo que iria além do próprio sentido, e que, portanto, nao se restringiria a este. O sentido nunca se satisfaria por completo, logo a necessidade de sempre novos sentidos. A letra transmitiria isso que, ao insistir, nao permitiria aos sentidos se esgotarem por si só. O que apontaria algo para além dos sentidos: o significante, enquanto estrutura inconsciente (Nancy & Lacoue-Labarthe, 1991).
Outro ponto importante, caro à conceitualizaçao da letra vinculada à articulaçao significante, é uma definiçao de inconsciente trabalhada por Lacan (1957/2001) no mesmo texto: "O inconsciente é o discurso do Outro (...)" (p. 522) (traduçao nossa). O conceito de discurso atravessa todo o Instância da Letra com um caráter bem específico: é aquilo diante do que o sujeito se mantém servo, mais servo do que em relaçao à própria linguagem. Ele se diferencia da fala, estando ligado ao que se pode ouvir de estrutura e de lugar ocupado pelo sujeito, no além da sua fala (Lacan (1957/2001). Podemos dizer que se trata de um texto cuja saída dada ao sujeito, na sua constituiçao subjetiva, é a sua entrada. Texto da cultura em questao, da história da sua familia e da sua lingua. A letra aqui teria como funçao mostrar qual é a articulaçao significante desse discurso do Outro, do qual o sujeito se mantém servo.
De uma maneira precipitada, seria possível tomar o texto do sonho do nosso paciente e nele enxergar um "discurso do Outro" (do qual o sujeito se manteria servo) em relaçao à posiçao "masculina", a partir do significante murros que no sonho aparece vinculado a homens em très geraçoes: ele, pai e avô (materno). Imediatamente, seria necessário pontuar que se trataría de um abuso conceitual. O cenário formado por essa metonimia dos murros, que parte do pai, vai ao avô e chega a ele nao nos dá nenhum indicativo, por si só, que se trataria de uma determinaçao simbólica do lugar de "homem" na familia. Nao se pode supor, só com esse sonho, que o significante murros tenha sido "passado" de geraçao em geraçao, até porque o avô materno nao o teria transmitido, nessa sequência, ao pai. Criamos a hipótese desse abuso teórico para marcar o caráter imaginário pelo qual se poderia tratar alguns conceitos. O que se pode ter certeza, em relaçao ao desdobramento pai-avô-filho, é que a posiçao imaginária do sujeito sobre esses homens da familia é equivocada por alguma coisa ali que nao dá certo, e que estranhamente ressoa no enredo do sonho: dois isso que nao sao a mesma coisa. Lembremos da frase: Para isso você tinha isso.
Exploraremos essa ressonância mais à frente. Por hora, prossigamos com a análise teórica. Partiremos ao texto La fonction de l'écrit, e a diferença da letra e do discurso lá trabalhada.
Letra e a funçâo do escrito
No capítulo 3 do seminário XX, Lacan considera que o escrito S/s (lido como significante sobre significado) surge como efeito de um discurso. Ou seja: que o discurso linguístico cria os conceitos de significante e significado, e que dele se estabelece uma relaçao mútua entre estes termos ao dizer que o significante prevalece sobre o significado, e que deste está separado por uma barra. Trata-se, fundamentalmente, de escritos, efeitos de uma teoria que os assim define. Melhor dizendo, efeitos de um discurso: "Distingue-se aí algo que nao é senao efeito do discurso, do discurso enquanto tal, ou seja: de algo que funciona já como laço" (Lacan, 1972-73/1975, p. 45) (traduçao nossa).
Como em relaçao ao Instância da letra, a letra (aqui tomada como escrito) vem demonstrar uma articulaçao discursiva. Entretanto, o conceito de discurso trabalhado por Lacan no seminário XX passou por mudanças significativas, a partir do seminário XVII. Ali, ele definiu estruturalmente quatro discursos, se servindo da escrita de quatro lugares ocupados diferentemente em cada discurso por quatro letras (Lacan, 1969-70/1991). As articulaçoes dessas letras entre si transmitem a estrutura do discurso em questao.
Além de se tratar de uma conceitualizaçâo diferente do discurso, Lacan diz textualmente nessa liçao que a letra nao é do mesmo registro daquele do significante. Ele dirá que num certo momento da historia a letra, que "(...) nao tem nada a ver com a conotaçâo do significante (...)" (Lacan, 1972-73/1975, p. 48) (traduçao nossa), é usada para elaborá-lo e aperfe^oá-lo. Ela seria, antes, efeito de discurso -como as marcas do que era produzido e comercializado, que ressurgem no alfabeto fenício, mas que já estavam presentes no mercado antes mesmo do estabelecimento da Fenicia (Lacan, 1972-73/1975). Tempos depois, ao serem usadas no alfabeto, permitem uma leitura da organizaçao dos sons, dos significantes, na língua. Mas surgem, primeiramente, como efeito de um discurso.
Com essas articulaçoes e referencias, percebe-se um uso diferente da letra daquele trabalhado no primeiro texto no qual, segundo Maleval (2010), ela adquire valor de conceito na obra de Lacan (1957/2001)3. Enquanto em 1957 é "estrutura localizada do significante", nessa liçao de 9 de janeiro de 1973 é lida como efeito de discurso que vem elaborar e articular o significante. Se de um lado na década de 1950 o registro simbólico tem uma importancia maior que o real e o imaginário, essa mudança no conceito de letra faz entrever uma nova articulaçao desses registros por Lacan. Ele nao parece nessa época estar querendo validar a psicanálise enquanto uma ciência, o que o teria feito se ater mais à estrutura simbólica na década de 1950 (Beer, 2015). O projeto em questao na década de 1970 parece estar ligado ao desdobramento do impossível que surge com a clínica psicanalítica.
Quando atrás levantamos uma hipótese sobre um descuido teórico que pudesse tomar o sonho como revelador de um discurso do Outro no quadro do qual os homens da familia estariam associados ao significante murros, visávamos colocar em tensao essa diferença de consideraçao do discurso entre o seminário 20 e o texto Instancia da letra. Cabe dizer que a definiçao O inconsciente é o discurso do Outro (do qual o sujeito se mantém servo) nao pode ser simplesmente reduzida, visando afirmar que no sonho o masculino na familia é necessariamente associado ao significante murros, e o sujeito determinado e servo de tal concepçao de homem, herdada de geraçao em geraçao. Nao deixamos esses termos em tensao aqui para, como efeito de retórica, encontrar uma soluçao fácil que associe a um primeiro Lacan tal leitura precipitada do sonho. Pois, desse discurso do qual o sujeito se mantém servo, nao se trata de um significado (significado de como é ser homem na familia) mas de uma organizaçao significante.
Se voltarmos ao sonho, veremos como esses significantes trazem antes a estrutura de um impasse que um significado sobre ser homem. Impasse entre os significantes homem e mulher. Alguma coisa entre esses homens e mulheres é estranha. A mensagem sobre o discurso do Outro tem a ver com esse estranhamento. Pelas associaçôes do sujeito e seu processo de análise, murros nao era um significante recorrente em sua fala. Parece antes que foi usado para produzir tal cena de estranhamento.
Vemos que, como se trata da estrutura de um impasse4 nada nos impediría de prosseguirmos a interpretaçao nos servindo dessa concei tualizaçao do inconsciente na década de 1950: o inconsciente é o discurso do Outro. Ela nao implica, forçosamente, na interpretaçao imaginária que atrás imaginamos e a qual nos opusemos. Mas existe uma diferença entre tratar a letra como efeito do significante (e assim efeito do discurso do Outro) da letra como efeito de discurso que vem elaborar o significante. Nao é necessário supor as letras do enredo do paciente como efeitos dos significantes inconscientes. Murros, como comentamos, sequer era um significante que houvesse se repetido em sua fala em análise. Talvez possa revelar um desejo nessa separaçao com a entao namorada, um desejo que ao ser ouvido possa tê-lo feito parar. De qualquer forma, nao podemos generalizá-lo para toda história do sujeito, simplesmente por no sonho se fazer referência a très geraçôes.
Ao tomar a letra como sendo usada para elaborar as questöes inconscientes, permite-se mais facilmente entender a entrada de discursos nao necessariamente ligados ao discurso do Outro (como tema fundamental do sintoma do sujeito) que viriam em auxilio para se organizar questöes (e também para mascará-las). Discursos diversos que fornecem letras para construçao das questöes do sujeito. Nesse sentido, em relaçao ao sonho, poder-se-ia mesmo supor um uso de discursos correntes sobre o lugar do homem é aquele que bate com o intuito de cernir alguma coisa sobre a posiçao masculina (imaginária). Um uso do tema do machismo como metáfora de uma forma de gozo que nao necessariamente se vincule, diretamente, com violência contra a mulher (tal forma de gozo), mas segundo uma posiçao obsessiva de equivalência (ali podendo ser tratada metaforicamente como equivalência entre "crime" e "castigo"). "Para isso (o que a mae havia feito) você tinha isso" (os murros). Entretanto, o que se escreve com esses isso é alguma coisa que faz estranhar a suposta equivalência. "Para isso você tinha isso", como se os dois isso fossem equivalentes, mas sua repetiçao demonstrando que já nao se trata da mesma coisa.
Para melhor avançar nesse tema, será necessário adentrar num ponto da letra que gira em torno da escrita do impossível.
O impossível da relaçâo sexual
Um ponto importante trabalhado por Lacan em relaçâo à escrita no seminário 20 é o campo do impossível da relaçâo sexual, traduzido pelo aforismo "Il n'y a pas de rapport sexuel" ("Nâo há relaçâo sexual") (Traduçâo nossa). Ele resume uma concepçâo lacaniana de nâo haver qualquer complementaridade e naturalidade da relaçâo sexual humana. Na mesma liçâo do 9 de janeiro de 1973, no seminário Encore, podemos encontrar a seguinte fala de Lacan (1972-73/1975) sobre essa fórmula "Il n'y a pas de rapport sexuel":
(...) ela (tal fórmula) nâo se sustenta senâo com o escrito, na medida em que a relaçâo sexual nâo pode se escrever. Tudo o que está escrito parte do fato que será para sempre impossível de escrever a relaçâo sexual enquanto tal. É daí que há um certo efeito do discurso chamado escrita (p. 47) (traduçâo nossa).
A inexistência desse rapport, ao se suportar pelo escrito -mesmo que ele nâo possa se escrever de fato- cria uma espécie de laço baseado justamente na sua inexistência. Os sentidos que serâo construidos a partir dessa inscriçâo -dessa escrita da nâo relaçâo sexual- serâo sentidos sexuais, pois se basearâo na inexistência de um a priori relativo à sexualidade humana, se criando (esses sentidos) enquanto expressöes de suas vicissitudes.
Segundo Barbara Cassin (Badiou & Cassin, 2010), num trabalho no qual ela comenta o texto Étourdit (Lacan, 1972/2005), cronologicamente muito próximo ao seminário 20, Jacques Lacan teria substituido o principio da nâo contradiçâo por essa fórmula. A discursividade derivada daí baseia-se no equívoco, no tropeço:
Nâo se trata de nada menos que mudar o principio de todos os principios. Passar do principio "nao há contradiçâo" para o principio "nao há relaçâo sexual". É a discursividade desse novo principio, nâo há relaçâo sexual, que o Étourdit coloca em jogo (Badiou & Cassin, 2010, p. 10) (traduçâo nossa).
Ao definir o real a partir de uma impossibilidade, de uma negatividade relativa a nâo existência de proporcionalidade ou relaçâo entre os parceiros (rapport), passa-se a operar com um principio lógico no qual, justamente, se permite contradiçao. Principio este que se assemelha ao que Freud (1933/2010) dizia quanto a nao haver contradiçao no inconsciente, por lá serem encontrados traços de tendência que, ao nível consciente, seriam contraditórias entre si. Com um princípio tal, que permite contradiçao, será possível dizer que a nao relaçao sexual se sustenta com o escrito (como efeito do discurso analítico), embora ela nao possa se escrever de fato (Lacan, 1972-73/1975). E a partir de entao se derivar a escrita, como negaçao de um suposto universal ou natural da sexualidade humana, criando equívocos e diversidade.
Ora, no sonho a relaçao sexual nao está exatamente escrita, como fórmula fixa e irrefutável sobre O homem e A mulher. Entreve-se que alguma questao sobre isso lá se coloque, a partir dos desdobramentos já comentados, mas sua enunciaçao se faz sem palavras. Se novamente notarmos a frase principal do sonho, veremos como ela se baseia num equívoco: para isso você tinha isso. Trata-se de uma mesma palavra, embora sua repetiçao equivoque sua igualdade. Poderíamos dizer que há um desejo de equivalência entre as duas posiçoes (mae, o que ela tinha feito; e pai, sua açao violenta e "justa"): isso, isso. Mas, o sentido mesmo da frase é uma dissonância desses isso, como um equívoco do inconsciente que diz "Nao há relaçao sexual". As posiçoes masculino-feminina (3 geraçoes) sao equivocadas na nao correspondência de alguma coisa consigo mesma: entre isso e isso há uma diferença irredutível. Ao se equivocar um imaginário acerca do masculino e do feminino, cria-se a possibilidade de diversidade, de nao naturalidade na sexualidade humana.
Em Étourdit (Lacan, 1972/2005), há um termo criado por Lacan que poderá ser útil nesse ponto. Trata-se do ab-sens. Sens é traduzido para o portugués como sentido e ab indicaría uma separaçao, um distanciamento. O som ab-sens é o mesmo de absence (auséncia). Trata-se de algo que se produziria com a escrita, que anularia o "único sentido" de alguma coisa e, do mesmo golpe, criaria uma diversidade. Barbara Cassin faz o seguinte comentário sobre esse termo:
No lado de Lacan, o sentido único, o "um-sentido" (un-sens) faz parte do "insensato" (in-sens) - a saber, daquilo que é privado de sentido (a homofonia sempre atua de antemao com equívoco), ou ainda: faz parte da significaçao, mas nao do sentido. Nao há sentido senäo naquilo que é equívoco e isso se chama "ab-senso", a salvo da norma aristotélica do sentido - aliás, norma constitutiva da regulaçao perene da língua, mesmo que ela nao cesse de retornar, como o faz o inconsciente. "L'étourdit" (traduzido por aturdito), uma enunciaçao tal que se possa vê-la, maneira mais certa de ouvila (Badiou & Cassin, 2010, p. 12) (traduçao nossa).
A produçao de equívocos via o ab-sens se faz com a escrita. É a produçao de letras como efeito discursivo que se obtém com tal escrita. Trata-se de uma decantaçao das significaçoes únicas, visando seu esvaziamento e provocando equívocos de sentido. O próprio título desse texto, Étourdit, se baseia num ab-sens5. Trata-se de uma inscriçao, que nao tem que ver com o significado, mas com o que para além do significado pode restar como "representante" do impossível da relaçao sexual. Entre isso e isso é impossível definir um significado que encerre a ressonância da frase. Muitos sentidos podem ser supostos, mas segundo uma abertura contida no equívoco mesmo. Dizendo de um outro modo: uma apresentaçao do impossível na linguagem, como um "paradoxo sonoro". Leíamos uma frase de Lacan (1972-73/1975) no seminário XX sobre a inscriçao do real:
É aí que o real se distingue. O real nao saberia se inscrever senao de um impasse da formalizaçâo. É no que eu acreditei poder desenhar o modelo a partir da formalizaçao matemática, na medida em que ela é a elaboraçao mais avançada que nos tenha sido dada para produzir a significancia. Esta formalizaçâo matemática da significancia se faz ao contrário do sentido, eu ia quase dizer a contra-senso. O isso nao quer dizer nada concernente às matemáticas (...) (p. 118) (traduçao nossa).
Nessa fala acerca da formalizaçao matemática, faz-se notar o que da inscriçao do real se apresenta a partir de um impasse de formalizaçao. No termo ab-sens, trabalhado por Cassin, também se trata de um impasse, do impasse que se inscreve como Il n'y a pas de rapport sexuel. Dizendo de um outro modo, a inclusao do impossível no discurso analítico cria cisöes, equívocos, impasses. O que se produzirá a partir de entao, nao terá um sentido único, pois nao se baseará no principio da nao contradiçao. Para tal empreitada, Lacan convoca a operaçao de escrita. Ele usará ai da letra, nao mais simplesmente como recurso material e literal para localizar o significante (como discutido acima, quanto ao texto Instância da letra). Mas como inscriçao, inclusao do real. No inicio deste trabalho, a partir de Maleval (2010), foi dito que a letra permitirá, no final da obra de Jacques Lacan marcar um saber (que por definiçao é simbólico) no real. Será usada como ranhura no real, fazendo borda entre os registros do real e do simbólico.
Cabe também comentar do sonho uma frase que pode indicar o equívoco como um recurso que esse sujeito fora construindo no seu percurso de análise. Logo depois dos isso, ele diz: "Isso vinha de uma maneira cômica". O "cómico" fora uma posiçao muito importante que este sujeito construiu no seu percurso analítico. Talvez nao seja à toa que se tenha escrito isso no seu sonho diante de um desencontro sexual.
Para finalizar este trabalho, leiamos essas duas últimas frases do texto La fonction de l'écrit. Talvez essa convocaçao resuma, em termos de direçao do tratamento, a diferença entre leitura e escrita da letra:
No seu discurso analítico, o sujeito do inconsciente, você o supöe saber ler. Isso nao é nada mais que a sua história de inconsciente. Nao somente você o supöe saber ler, mas você o supöe poder aprender a ler.
Só que isso que você lhe ensina a ler nao tem entao nada a ver, em nenhum caso, com o que disso se pode escrever (Lacan, 1972-73/1975, p. 50) (traduçao nossa).
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Oliveira, Silva - Guilherme C. (2017). Entre isso e isso: leitura e escrita da nao relaçao sexual. Revista Affectio Societatis, 14(26), 52-66. Medellín, Colombia: Departamento de Psicoanálisis, Universidad de Antioquia. Recuperado de http://aprendeenlinea.udea.edu.co/revistas/index.php/affectiosocietatis
2 Capítulo XVI, "le sujet et l'autre: L'aliénation".
3 Trata-se do texto discutido acima, "L'instance de la lettre dans l'inconscient".
4 Impasse entre desejo de reconhecimento e reconhecimento do desejo. Na página 522, Lacan (1957/2001) completará a definiçâo o inconsciente é o discurso do Ou- tro com o grande Outro enquanto "(...) o além no qual se amarra o reconhecimento do desejo ao desejo de reconhecimento" (p. 522) (traduçao nossa).
5 L'étourdi significa em portugués "o descuidado", "o distraído", "o aturdido". Ao colocar o t final, Lacan cria um equívoco: l'étourdit, com o mesmo som de l'étourdi, pode ser escutado como Les tours dits, ou seja, algo como "os giros ditos", ou "as voltas ditas".
Bibliografie
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Guilherme C Oliveira Silva1
Universidad de Sâo Paulo, Brasil
1 Psicanalista e mestrando no programa de Psicología social na Universidade de Sao Paulo.
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