Os primeiros psicanalistas: atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1906-1908 - Vol. I Hermann Nunberg e Ernest Federn (Orgs.) Marcelo Checcia, Ronald Torres e Waldo Hoffman(Orgs. da ed. brasileira) Säo Paulo: Scriptorium, 2015, 583 págs. Arquivos da psicanálise: a construçâo do freudismo
Em 1902, Freud buscava ansiosamente recrutar adeptos para as suas descobertas, anunciadas dois anos antes, no "livro dos sonhos". Precisava fazer algo que o tirasse de suas "noites enfadonhas", de seu splendid isolation e o "reanimasse", "revigorasse" como ele costumava relatar a Fliess (Masson, 1985).
Os primeiros a embarcar nessa aventura, que iria "impactar o mundo", foram Alfred Adler, Wilhelm Stekel, Rudolf Reitler, Max Kahane. Um círculo pequeno de médicos que passou a frequentar a Berggasse 19, semanalmente, após as 21 horas. Eles se reuniam em uma sala esfumaçada por charutos e cigarros que consumiam com café e biscoitos, em tomo de uma mesa oval, envoltos em discussöes intermináveis, no estilo "banquete socrático" (Roudinesco, 2014). Logo foram chegando intelectuais, quase todos judeus, representativos da cultura da Mitteleuropa, ligados à arte, literatura, filosofia, como Paul Federn, Hugo Heller, Max Graff, Eduard Hirschmman, Isidor Sadger e Fritz Wittels. Estava fundada a primeira instituiçao da historia do freudismo: a Sociedade Psicológica das Quartas-feiras.
Os debates eram acalorados, por vezes violentos, a ponto do "Prof. Freud" intervir e "aconselhar moderaçao". Todos eram obrigados a falar, por ordem de sorteio, e sobre os mais variados temas: medicina, literatura, arte, política ou ainda sobre os seus próprios sonhos, sofrimentos e os de seus pacientes. Discutiam, também, sobre o "mundo novo" que o inconsciente freudiano descortinaba, interrogando a "dimensao biológica e psicológica da sexualidade". Por sua vez, o mestre ensinava aos seus discípulos seu método, iniciando-os na prática psicanalítica, ao mesmo tempo em que refletia sobre conceitos como transferencia, pulsao, libido, trauma, neurose, entre tantos.
Foi somente em 1906 que, sob os cuidados de Rank, as reuniöes passaram a ser registradas de maneira sistemática, inaugurando um procedimento que seria mantido até 1918, e que fez desses documentos preciosos os primeiros arquivos da psicanálise.
No final dos anos 1950, essas Atas foram compiladas por Nunberg e Federn e publicadas em quatro volumes, entre 1962 e 1975 (vol. I: 1906-1908; vol. II: 1908-1910; vol. III: 1910-1911; vol. IV: 1912-1918) e, a seguir, traduzidos nos Estados Unidos, Argentina, França e Inglaterra.
Agora, com uma cuidadosa traduçao, a partir da ediçao alema de 2008, finalmente chega ao Brasil o primeiro volume, sob a responsabilidade de Marcelo Checchia, Ronaldo Torres e Waldo Hoffmann que assinam o prefácio pela editora Scriptorium.
Como toda fonte primária, as Atas podem ser lidas e exploradas de inúmeras maneiras, naquilo que revelam sobre a linguagem e as problemáticas da época, no que informam sobre a teoria e a clínica em permanente construçao. Nesse volume, que contempla uma excelente introduçao de Nunberg, entre tantos, o leitor pode perceber como algumas ideias precisaram de muito tempo de maturaçao, tal qual as de Stekel sobre as pulsöes de vida e de morte, esboçadas em abril de 1907, e só desenvolvidas em "Além do principio de prazer" (1920).
Do ponto de vista societário, pode-se notar a passagem de um período, que Adler e Federn qualificaram de "comunismo intelectual", para um outro mais estruturado e vertical, desde a dissoluçao da Sociedade e da fundaçao da Wierner Psychoanalytische Vereinigung (WPV), em outubro de 1907, quando já contava com 19 membros. Nesse processo, alguns ganharam destaque enquanto outros se tornaram silenciosos. Na mesma medida em que as posiçôes foram ficando mais claras, uns deixaram a cena, novos adeptos chegaram, e de diferentes lugares. Foi o caso de Jung e Binswanger, da prestigiosa Escola de Zurique, ou ainda de Eitingon, que participaram de algumas reuniöes enquanto convidados. Foi quando, pela primeira vez, a doutrina flertou com a psiquiatría, no tratamento da psicose.
Mas nesse período, em Viena, dentre os membros mais atuantes, havia o "apóstolo" Stekel, por quem Freud nutria simpatia, reconhecia o talento e admirava a capacidade inventiva, mas que também incomodava com a agressividade com que tratava os colegas. Freud também ficava igualmente exasperado com os comentários do "fascinado" Wittels, principalmente pela sua "extrema falta de delicadeza" e "misoginia".
Por outro lado, havia Adler, médico brilhante, simpatizante de esquerda, que recusava a posiçâo de discípulo e em suas intervençôes sempre marcava as discordâncias ao enfatizar a dimensäo organicista da sexualidade. Sem nunca aderir efetivamente à doutrina, esse primeiro dissidente da história do freudismo seguiu no grupo com parcimônia até 1911, enquanto amadurecia suas teses sobre adaptaçâo ao meio, complexos de superioridade e inferioridade, que mais tarde se tornariam centrais em sua Psicologia Individual.
Já o respeitado Max Graf, o pai do pequeno Hans, costumava liderar interrogates entusiasmadas sobre a "psicanálise aplicada" à literatura e à arte, ou o significado de uma psicologia dos artistas e escritores.
Dentre as contribuiçôes do mestre, os organizadores do livro destacam e com razäo a síntese da apresentaçâo e discussäo do célebre "caso do Homem dos Ratos". Merece consulta tanto a que consta nas Atas de 30 de outubro e 6 de novembro de 1907, como as mençôes sobre o seu desenrolar em atas posteriores, pelos argumentos nem sempre presentes no relato publicado em 1909.
Por essas e tantas outras fontes de pesquisa que revela, cabe saudar a iniciativa dos organizadores da ediçâo brasileira. Uma obra imprescindível na biblioteca de todo estudioso e clínico da psicanálise.
Citaçào/Citation: Oliveira, C. L. M. V de (2016, setembro). Arquivos da psicanálise: a construçao do freudismo. Resenha do livro Os primeiros psicanalisstas: a construçao do freudismo. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 19(3), 572-575.
Editor do artigo/Editor: Profa. Dra. Sonia Leite
Recebido/Received: 19.10.2015/ 10.19.2016 Aceito/Accepted: 20.12.2016 / 12.20.2016
Copyright: © 2009 Associaçao Universitaria de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/ University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuiçao e reproduçao em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original authors and sources are credited.
Referências
Masson, J. M. (ed.). (1986). A correspondencia Sigmund Freud para Wilhelm Fliess (1889-1904). Rio de Janeiro: Imago.
Roudinesco, E. (2014). Sigmund Freud en son temps et dans le nôtre. Paris: Seuil.
C. Lucia M. Valladares de Oliveira*1
*1 Pontificia Universidade Católica de Säo Paulo - PUC-SP (Säo Paulo, SP, Br).
CARMEN LUCIA M. VALLADARES DE OLIVEIRA
Psicanalista; Doutora pela Université Paris VII; Pós-doutorado em Psicologia Clínica pelo Laboratorio de Psicopatologia Fundamental da Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo - PUC-SP (Sao Paulo, SP, Br); Cocordenadora e Profa. do Curso de Especializaçao em Teoria Psicanalítica da Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo - PUC-SP; Membro da Société Internationale d'Histoire de la Psychiatrie et de la Psychanalyse - SIHPP e da Associaçao Universitaria de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental - AUPPF (Sao Paulo, SP, Br). Autora de diversos artigos em publicaçôes nacionais e estrangeiras e do livro Historia da psicanálise. Sao Paulo 1920-1969. Sao Paulo: EscutaFapesp, 2005.
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05015-081 Sao Paulo, SP, Br
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