Resumo: O presente artigo tem como objetivo central analisar a quarta conclusao emitida pela Comissao Nacional da Verdade (CNV) em seu relatório final, publicado em dezembro de 2014. Trata-se do reconhecimento quanto à persistencia do quadro de graves violaçoes de direitos humanos em tempos democráticos. A CNV destaca que essa perpetuaçao se relaciona diretamente ao nao tratamento das violaçoes cometidas no contexto ditatorial. Utilizando como marco teórico a obra do filósofo alemao Walter Benjamin, mais precisamente suas teses reunidas em "Sobre o conceito de história", será proposta uma reflexào sobre a potencialidade política da memória dos vencidos na luta contra a violencia e opressao dos dias atuais.
Palavras-chave: Comissao Nacional da Verdade. Relatório Final. Walter Benjamin
Abstract:
This article's main objective is to analyze the fourth conclusion issued by the National Truth Commission (CNV) in its final report, published in December 2014. It is about the recognition of the persistence of serious human rights violations in the democratic period. The CNV emphasizes that this perpetuation derives from the non-treatment of violations committed in the dictatorial context. Recurring to the theoretical framework of the German philosopher Walter Benjamin, more precisely his theses gathered in the oeuvre "On the concept of history", this article will propose a reflection on the political potentiality of the memory of the vanquished in the struggle against the current violence and oppression.
Keywords: National Truth Commission. Final Report. Walter Benjamin.
I- A dimensäo política da memória em Benjamin
Na obra "Sobre o conceito de história", em sua tese VIII, Walter Benjamin destaca que a "tradiçao dos oprimidos nos ensina que o 'estado de exceçao' no qual vivemos é a regra". Em suas palavras, a chamada concepçao "progressista da história" consideraría que evoluçao das sociedades se daria em uma direçao mais identificada com o aperfeiçoamento da democracia, liberdade e paz; essa seria a norma. Iludida pelo progresso científico, industrial e técnico, essa doutrina nao conseguiría conceber a barbarie social e política de outra forma senao sob a ótica de uma "regressao inexplicável" (LÖWY, 2005, p. 72). Em contraposiçao a esse entendimento, Benjamin pôde compreender a modernidade do fascismo (fenómeno político central ao seu estudo), sua íntima conexao com a sociedade capitalista-industrial e, ademais, como tal ideia "progressista da história" apoiava-se na memória dos vencedores.
Nesse sentido, somente a memória dos vencidos seria capaz de alterar a acepçao de história concebida a partir do esquecimento sobre as barbaries do passado, trazendo à tona o que foi olvidado e negado pelo progresso. Há, entao, a necessidade de se "escovar a história a contrapelo", de forma que nao se confunda a história com a memória dos vencedores. Na ótica benjaminiana, as vítimas e os demais expectadores podem lançar um olhar sobre o mesmo ponto e ver coisas distintas; assim o anjo da história vê cadáveres e escombros onde os demais enxergam apenas o progresso (MATE, 2011, p.155).
Finalmente, o filósofo germánico propoe uma acepçao de tempo amplo e heterogéneo, em contraposiçao ao tempo homogéneo e vazio da visao progressista. Conforme defendido na sua tese V, Benjamin posiciona-se por um engajamento ativo do materialismo histórico, objetivando desvelar a "constelaçao crítica" que o passado constitui com um momento do presente. O autor verifica que há uma dimensäo política e ativa da relaçao com o passado e, por conseguinte, o presente criaria uma conexao entre a escrita da história e a política (LÖWY, 2005, p. 56).
Seguindo essa linha, a história seria aberta e, do ponto de vista político, dever-se-ia considerar a possibilidade futura tanto de catástrofes quanto de movimentos emancipadores. As aberturas tanto do passado quanto do futuro relacionam-se, considerando que o futuro poderá, a qualquer momento, reabrir dossiês históricos que eram considerados fechados, reabilitar as vítimas ora caluniadas, redescobrir combates esquecidos, dentre outros (LÖWY, 2005, p. 141). Essa estreita relaçao entre passado e futuro transparece no entendimento de Benjamin de que a luta contra a opressao se inspira tanto nas vítimas do passado quanto nas esperanças depositadas às geraçoes futuras e, ao mesmo tempo, possui também como base a solidariedade com as vítimas do presente. (LÖWY, 2005, p. 97).
Ainda sob esse viés, o presente transforma-se em momento político e, nesse sentido, o passado surge no presente para que ali se possa tomar uma decisao. Contudo, nao se deve deixar de lado a consciência de sua fragilidade, visto que é impossível uma memória que dê conta de todas as injustiças e barbaries (FILHO, 2008, p. 127).
Benjamin nos recorda que a luta contra o fascismo perpassa os marcos temporais do nazismo, considerando que a história tende a repetir de forma mimética a ocultaçao da memória dos vencidos. Torna-se necessário que os acontecimentos sejam relidos por seu lado oculto, ou seja, pela história dos vencidos. Portanto, a luta política traduz-se em uma luta pela memória e pela interpretaçao dos acontecimentos, posto que os dominadores/vencedores têm como objetivo encobrir a barbárie por meio do esquecimento (RUIZ, 2012, p. 73). Por fim, sob sua ótica, a memória tem o condao de reacender a batalha hermenêutica pela significaçao do passado (MATE apud FILHO, 2008, p. 128).
II- A violência do presente à luz da opressâo do passado
Assim como sustenta Ruiz (2012, p. 73), a memória traz consigo a potência hermenêutica do sentido, podendo ressignificar os fatos sob várias acepçoes. Por esse motivo, a memória se torna motivo de disputa política, afinal, os agentes que possuírem o poder de dar significado à memória poderao controlar suas implicaçoes, recorrendo para isso, inclusive, às estratégias de esquecimento. Na maioria dos casos, as narrativas de memória histórica representam os discursos dos vencedores, que invocam a memória para embasar relatos que legitimem suas açoes (RUIZ, 2012, p.73).
No contexto brasileiro, a disputa hermenéutica pela significaçao do passado toma-se evidente quando sao analisadas as circunstâncias e os fatos ocorridos durante o regime militar (1964-1985). Após a transiçào pactuada à democracia e a defesa de uma anistia "ampia, geral e irrestrita", que concedeu interpretaçào extensiva à lei n° 6.683 de 1979, o discurso sobre um "virar de página" em prol da reconciliaçào nacional prevaleceu por anos. Pode-se dizer que o regime foi bem-sucedido em induzir um modo próprio de construçao de representaçoes sociais, denominado por Torelly (2012, p. 265) "de dupla construçao simbólica que produz o paradoxo da vitória de todos". Sob esse prisma, a anistia teria um caráter bilateral, pois dirigia-se às duas partes conflitantes, os "subversivos" e os agentes do Estado, ambos igualmente perpetradores de crimes. Portanto, a reconciliaçào desses dois polos pressupunha o "perdào" estatal e o esquecimento sobre os acontecimentos passados em nome da transiçào à democracia.
A anistia brasileira, conduzida e chancelada pelo regime, impediu processos mais efetivos de resgate de memória política, assim como a apuraçao das condutas dos agentes públicos responsáveis pelas graves violaçoes. Diferentemente do que ocorreu na Argentina e no Chile, onde houve processos penais e condenaçoes por tortura e crimes contra a humanidade dos agentes públicos e governantes envolvidos, no Brasil nao houve um processo similar por conta da persisténcia de uma anistia irrestrita aos agentes estatais. Perdura, ademais, uma grande resisténcia por parte de setores relacionados às Forças Armadas em admitir as mortes, torturas e desaparecimentos ocorridos no período ditatorial (FILHO, 2008, p.128).
Diante da falta de um conhecimento apurado sobre o passado repressivo, ainda parcialmente encoberto por versoes oficiais dos opressores, e a auséncia de um debate abrangente sobre a justiça de transiçào e o "entulho autoritário" presente em nossa sociedade, a violéncia resta legitimada e, até mesmo, naturalizada nas práticas sociais e institucionais.
Seguindo a mesma lógica do "inimigo comum" empregada pelo regime ditatorial para reprimir os chamados "subversivos"; as forças de segurança do país têm empreendido uma "guerra contra o tráfico de drogas" na qual legitima-se o uso excessivo da força policial contra as populaçoes socialmente marginalizadas. Nos dias atuais, discursos autoritários e repressivos, que exteriorizam o medo e a insegurança das classes mais altas, tém encontrado ampla aceitabilidade no seio das classes médias; ao passo que políticas afirmativas de inclusao social de populaçoes marginalizadas têm sido concebidas como uma mera tática política populista para angariar votos. Nesse sentido, questoes complexas de ordem social têm recebido um tratado repressivo e, por conseguinte, a pobreza criminalizada em tempos democráticos.
Se o inimigo à ordem e à segurança da naçao e de seus cidadaos eram os comunistas, "subversivos" de ontem; os inimigos de hoje fazem parte da populaçao que vive em áreas marginalizadas das grandes capitais brasileiras, principalmente os jovens negros. Do mesmo modo que os agentes estatais pretensamente cumpriam sua funçao pública, de defesa da ordem e da segurança da naçao em um ambiente no qual "terroristas" representavam um potencial perigo aos "cidadaos trabalhadores"; nos dias de hoje, em meio a uma "guerra contra o tráfico de drogas", os atuais agentes estatais, amparados por um discurso em prol da paz e tranquilidade das familias brasileiras, vêm empregando toda sua força coercitiva para o "aniquilamento" da criminalidade.
Sob o argumento da crescente sensaçao de insegurança da populaçao, vem-se promovendo uma tendência de justificaçao da brutalidade policial ou, ao menos, uma propensao a considerá-la como um simples fato desagradável da vida cotidiana (MÉNDEZ, 2000, p.36). Legitimam-se, socialmente, os homicidios policiais com uso excessivo da força, o emprego da tortura para obtençao de informaçoes, dentre outras práticas. Nesse sentido, uma pesquisa do ano de 2008 traz um dado estarrecedor: cerca de % da populaçao brasileira concorda com a utilizaçao da tortura como método de investigaçao policial1.
Ao mesmo tempo, as atitudes públicas em relaçao às situaçoes de violência, muitas vezes promovidas por veículos jornalísticos sensacionalistas, têm como marca "uma sensaçao de 'justiça' Rambo, que pode apenas ser realizada ao largo do processo legal e desprezando sutilezas como a presunçao de inocência" (MÉNDEZ, 2000, p. 37). Finalmente, conforme Pinheiro (2000) bem anota, "(...) a impunidade é virtualmente assegurada àqueles que cometem ofensas contra vítimas consideradas 'indesejáveis' ou 'subumanas'" (p. 19).
Portanto, a lógica do inimigo interno, adotada por governos autoritários, permanece em vigor durante a democracia brasileira, assim como os métodos e os valores militares restam presentes na conduçao das políticas de segurança pública. Nesse sentido, ao empregar as práticas belicistas e a "metáfora" de guerra como parte das políticas de segurança pública, os conflitos sociais passam a ser criminalizados e tratados através da força, nao existindo sob esse viés limites para o exterminio e para a destruiçao do inimigo, do "outro". Nos dias atuais, o "outro" tornase o individuo nao incluido pelo projeto neoliberal, os excluidos socialmente, pertencentes às populaçoes pobres e marginalizadas (DORNELLES, 2012, p. 444-5).
Nesse panorama, apesar de o Brasil ter realizado sua transiçao política de um regime repressivo à democracia, os agentes públicos restam responsáveis por uma parcela considerável dos casos de violaçoes de direitos humanos, que englobam um nivel elevado de mortes decorrentes de "autos de resistência à prisao"2, torturas, desaparecimentos forçados, tratamentos cruéis e desumanos, dentre outros (DORNELLES, 2012, p. 446). De acordo com um relatório da ONG Anistia Internacional, apenas no ano de 2012 foram cometidos 56 mil homicidios, sendo a policia responsável por uma porcentagem significativa dessa totalidade3.
Nao se deve olvidar que a policia militarizada é um dos mais significativos resquicios do regime militar nos dias de hoje. Durante a ditadura militar, o Ministério do Exército realizava o controle e a coordenaçao nacional das Policias Militares4, que eram submetidas ao treinamento nos moldes militares e a uma perspectiva militarizada de segurança pública. Desse modo, as técnicas e os manuais de operaçao empregados nas operaçoes do Exército foram apresentados aos policiais militares, passando os últimos a compartilhar do modus operandi das operaçoes repressivas empreendidas pelas Forças Armadas.
A despeito das reformas realizadas no ámbito do processo de transiçao à democracia, como a subordinaçao da Policia Militar aos governadores dos Estados, a PM continua sendo uma força auxiliar e reserva do Exército5 e preserva ainda práticas atentatórias contra a dignidade da pessoa humana e toda a normativa internacionalmente consolidada dos direitos humanos. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, há quase tres anos um caso ocorrido na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha ganhou repercussao nacional e internacional. O ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, morador da comunidade, foi vítima de tortura e desaparecimento cometidos por policiais militares da supracitada UPP.
O caso Amarildo, que nao se trata de um fato isolado, demonstra como as duas principais violaçoes aos direitos humanos perpetradas por agentes da ditadura militar continuam presentes na realidade brasileira, sendo conduzidas principalmente por agentes policiais contra jovens negros, moradores de áreas marginalizadas. A tortura e outros tratamentos cruéis e desumanos, nos dias atuais, sao ainda frequentes no contexto de prisao e interrogatorio pelas forças policiais e também no ámbito do sistema carcerário brasileiro (ONU, 2016).No tocante à prática do desaparecimento, é importante lembrar que o Brasil continua em mora perante à decisao da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Julia Gomes Lund e outros vs. Brasil, de 2010, na qual o país é instado a criar o tipo penal de desaparecimento forçado, "um crime considerado continuado ou permanente, enquanto nao se estabelecer o destino ou paradeiro da vítima"6 .
Contudo, apesar do exposto quanto ao legado repressivo da ditadura militar, é importante ressaltar que historia da opressao em solo brasileiro possui raízes ainda mais profundas. A violencia do período ditatorial e democrático, pode-se dizer, faz parte de uma longa trajetória de barbárie e opressao, considerando-se, principalmente, o genocídio dos povos indígena e a escravidao dos povos africanos. Os vencedores/opressores de hoje sao herdeiros de todos aqueles que venceram/oprimiram anteriormente.
Quanto ao genocídio indígena nas Américas, o próprio Benjamin teceu comentários sobre a violência dos conquistadores ibéricos, que, em suas palavras, transformaram "o mundo recém-conquistado em uma cámara de torturas" (LÖWY, 2014, p. 9). Por sua vez, a ditadura militar brasileira (assim como outros regimes latino-americanos repressivos, em especial, a ditadura peruana7) empreendeu um novo genocídio contra os povos indígenas amazónicos. De acordo com as pesquisas empreendidas pela Comissao Nacional da Verdade (CNV), estima-se que mais de 8 mil indígenas tenham sido mortes em decorrência da açao direta de agentes governamentais ou de sua omissao (CNV, 2014, Vl.2, Tex.5, p. 205).
Já quanto à violência perpetrada contra a populaçao negra e marginalizada do país, nao podemos deixar de realizar uma associaçao das torturas e maus tratos infligidos aos escravos em locais como o Pelourinho; a utilizaçao do pau-de-arara como método de tortura infligido aos opositores políticos da ditadura; e a cena atual de um jovem negro e pobre, suspeito de praticar roubos, amarrado por populares a um poste na cidade do Rio de Janeiro8.
Por fim, conclui-se que práticas autoritárias se encontram profundamente enraizadas na sociedade brasileira também no ámbito dos discursos que ecoam na vida cotidiana, o que Pinheiro (1997) convencionou chamar de "autoritarismo socialmente implantado", que se manifesta no "microdespotismo" da vida diária "na forma de racismo, sexismo, elitismo e outras hierarquias socialmente entrincheiradas" (p. 47). Infere-se, nesse sentido, que a democratizaçao política nao atacou as raízes dessas formas sociais de violência e autoritarismo; ao mesmo tempo em que nao modificou substancialmente as práticas repressivas das instituiçoes do Estado, como as policiais. Seguindo a linha de análise de Guillermo O'Donnell (1987), o Brasil passou por sua "primeira transiçao" - saiu de um regime autoritário para um governo eleito -, mas ainda nao concluiu sua "segunda transiçao", relacionada à institucionalizaçâo das práticas democráticas em todos os níveis sociais e estatais. A persistência de um "entulho autoritário", refletido nas práticas sociais, nos discursos políticos e nas instituiçoes estatais, resta obstacularizando a consolidaçao de um verdadeiro estado democrático.
III- CNV e as graves violaçôes de direitos humanos em tempos democráticos
Assim como sustenta a psicanalista Maria Rita Kehl (2010): "Quando uma sociedade nao consegue elaborar os efeitos de um trauma e opta por tentar apagar a memoria do evento traumático, esse simulacro de recalque coletivo tende a produzir repetiçoes sinistras" (p. 126). Nesse sentido, para Kehl, a convicçao de que a tortura é um ato tolerável teria ficado recalcada desde os tempos de "pseudoanistia" e, por conseguinte, produziria sintomas sociais de violencia nos dias de hoje. Se a sociedade aceita, com relativa tranquilidade, que exista tortura e impunidade aos torturadores, isso está relacionado ao fato de que o discurso da tortura como mal necessário ainda encontra eco em ampla parcela da opiniao pública brasileira (p.131).
De acordo com uma das conclusoes centrais do relatório final da CNV, publicado em dezembro de 2014, embora as graves violaçoes de direitos humanos nao sejam perpetradas em um contexto de repressao política, como o da ditadura militar, as práticas de detençoes ilegais e arbitrárias, tortura, execuçoes, desaparecimentos forçados e ocultaçao de cadáveres ainda sao cotidianas na realidade brasileira atual. Assim como destaca a própria comissao da verdade quanto à atuaçao dos órgaos de segurança pública, as múltiplas denúncias de tortura culminaram com a aprovaçao recente da lei n° 12.847/2013 (que instituiu o chamado "Sistema Nacional de Prevençao e Combate à Tortura"), dedicada a medidas de prevençao e combate a esse crime.
Por conseguinte, o relatório da CNV nao reabre feridas do passado pois, na realidade, tais feridas nunca foram cicatrizadas. O tema das graves violaçoes de direitos humanos é vivo e presente se considerarmos que o futuro da prática de tortura no Brasil relaciona-se intimamente com o entendimento coletivo sobre as violaçoes ocorridas durante a ditadura militar. Nesse sentido, ao ser apropriado pela sociedade civil, o relatório produzido pela CNV poderá trazer ao centro do debate público o tema da violencia social e estatal, de forma que se problematize politicamente a repetiçao de práticas e reproduçao de posturas repressivas ainda impregnadas na sociedade e nas instituiçoes estatais democráticas.
Assim como preconiza Hayner (2001), uma comissao nacional tem como objetivo lançar luz sobre um passado histórico marcado por um "silêncio doloroso" e promover um entendimento e um conhecimento mais acurados sobre os fatos pretéritos. Ao oferecer centralidade à memória das vítimas, as comissoes da verdade resgatam as barbáries do passado, ora olvidadas e negadas. Conforme entende Reyes Mate, herdeiro da tradiçao benjaminiana, "o silencio e o esquecimento sao os meios pelos quais a violencia se reproduz e perpetua nas pessoas, na sociedade e nas estruturas" (MATE, 2011, p.2).
Conclusäo
No entendimento da CNV, as condiçoes de perpetuaçào da violência nos dias atuais relacionam-se à ausência de denúncias adequadas e à impunidade legada aos autores das violaçoes cometidas no passado. Conforme já aduzido, o caráter conciliatório da transiçao e a prevalência de uma concepçào amnétsca de anistia propiciaram a prevalência do entendimento de que era necessário virar a página em prol da reconciliaçâo nacional e da consolidaçao democrática. Em um primeiro momento pôs-transiçào, os opositores políticos nao tiveram sua alteridade de vítima reconhecida: tornaram-se anistiados por crimes políticos no ámbito de um conflito interno contra as forças estatais, igualmente anistiados.
A leitura realizada por seu relatório final contrapoe-se a uma concepçao progressista da história, que poderia vislumbrar a transiçao à democracia como, necessariamente, um processo de aperfeiçoamento e atingimento da liberdade e da paz social. Na realidade, a conclusäo da CNV sobre a perpetuaçao de graves violaçoes em um contexto democrático verifica que a barbárie dos tempos militares nao é apenas um ponto fora da curva na história do país.
Assim como os agentes estatais, pertencentes ao aparelho repressivo delitivo instituído em 1964, perpetraram impunimente graves violaçoes de direitos humanos contra os considerados inimigos do regime; os agentes de hoje, pertencentes aos órgaos de segurança do Estado, continuam cometendo graves violaçoes de direitos humanos, em uma escala de mortes ainda mais elevada do que na ditadura. Amparados ainda pela lógica de segurança do inimigo interno, tais agentes têm se utilizado de subterfúgios como, por exemplo, a figura do auto de resistência (recentemente abolida dos boletins de ocorrência e dos inquéritos policiais) e a Justiça Militar para que restem impunes pela violência direcionada aos setores "descartáveis" e marginalizados da populaçao brasileira.
Tal conclusäo demonstra ainda que, como Benjamin já defendia, a estado de exceçao permanente é a história de opressäo de classe. Para os oprimidos, sejam os oponentes políticos do regime militar ou os jovens negros moradores de áreas marginalizadas socialmente e pelo Poder Público, o estado de exceçao é a regra.
Diante de tais consideraçoes, o próprio teórico germánico nos alerta que a luta contra a opressào deve se inspirar tanto nas vítimas do passado quanto nas esperanças depositadas nas geraçoes futuras, sem olvidar a solidariedade com as vítimas do presente. Logo, a luta daquelas maes que perderam seus filhos para a brutalidade policial deve buscar inspiraçao na luta das vítimas do regime militar e de suas familias. Trata-se de uma luta comum, a luta contra a opressao, a luta daqueles cujos corpos foram espezinhados pelo cortejo triunfal dos opressores.
Assim, a luta dos oprimidos e atingidos pela brutalidade do regime militar perpassa os marcos temporais da transiçao à democracia, considerando-se que o esquecimento é uma das vias de reproduçao e perpetuaçao da violencia no ámbito social, político e nas instituiçoes democráticas. Desse modo, a releitura e a invocaçao dos acontecimentos do período militar, sob a ótica do testemunho das vítimas, torna-se um recurso político importante na batalha hermenéutica pela significaçao do passado.
Por meio da efetivaçao do direito à memória e à verdade, o relatório final da CNV tornase uma importante ferramenta na luta contra a barbárie do passado e do tempo presente, abrindo às futuras geraçoes a possibilidade de aprender com as experiéncias do tempo pretérito. Conforme a ideia do agir anamnético, inspirada em Adorno, os pensamentos e açoes devem ser orientados de modo que a barbárie do passado (na obra de Adorno, Auschwitz) nao se repita (MATE, 2005, p. 160).
Por fim, as novas geraçoes devem aceitar a responsabilidade de fazer justiça às vítimas do passado para que se possa abrir caminhos à redençao, à salvaçao e à reconciliaçao (FILHO, 2008, p. 142). Na concepçào de política messiânica de Benjamin, "somente na busca de uma memória plena que a humanidade poderá se redimir" (FILHO, 2008, p. 143).
CATALDO DE SOUZA TILIO DOS SANTOS, Amanda. O RELATÓRIO FINAL DA CNV E A POTENCIALIDADE POLÍTICA DA MEMÓRIA DOS "VENCIDOS". Lex Humana, v. 8, n. 2, fev. 2017. ISSN 2175-0947. Disponível em: http://seer.ucp.br/seer/index.php?journal=LexHumana&page=article&op=view&path%5B%5D=1264 . Acesso em: 28 Fev. 2017.
* Artigo recebido em 01/12/2016 e aprovado para publicaçao pelo Conselho Editorial em 23/12/2016.
1 Disponível em:<http://oglobo.globo.com/pais/mat/2008/03/08/ibope_26_admitem_tortura_pesquisa _mostra_preconceito_de_raca_orientacao_sexual-426148416.asp>. Acesso em: 15 jul. 2016.
2 Uma resoluçao do Conselho Superior de Policia e do Conselho Nacional dos Chefes da Policia Civil publicada em 4 de janeiro de 2016, no Diário Oficial da Uniao aboliu o uso dos termos "auto de resistencia" e "resistencia seguida de morte" nos boletins de ocorrência e inquéritos policiais.
3 "O Brasil é o país com o maior número de homicidios no mundo: 56 mil pessoas foram mortas em 2012" (ANISTIA INTERNACIONAL, 2015).
4 Conforme dispunha o Decreto-lei n° 667, de 2 de julho de 1969.
5 De acordo com o Decreto-lei n° 2.010 de 12 de janeiro de 1983.
6 Artigo III da Convençao Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas (1994).
7 Em sua obra, Priscilla Hayner (2011) trata da violencia direcionada aos povos indígenas durante a ditadura de Alberto Fujimori (1990-2000).
8 O caso citado ocorreu no bairro do Flamengo, Rio de Janeiro, em fevereiro de 2014. Reportagem disponível em: < http: / / www1.folha.uol.com.br/cotidiano /2014/02/ 1407239-adolescente-e-agredido-a pauladas-e-acorrentado-nu-a-poste-na-zona-sul-do-rio.shtml>. Acesso em 15 jul. 2016.
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AMANDA CATALDODE SOUZA TILIO DOS SANTOS**
PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DEJANEIRO, BRASIL
** Mestranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional na Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]. Curriculo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0767251825037568
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Copyright Catholic University of Petropolis 2016
Abstract
This article's main objective is to analyze the fourth conclusion issued by the National Truth Commission (CNV) in its final report, published in December 2014. It is about the recognition of the persistence of serious human rights violations in the democratic period. The CNV emphasizes that this perpetuation derives from the non-treatment of violations committed in the dictatorial context. Recurring to the theoretical framework of the German philosopher Walter Benjamin, more precisely his theses gathered in the oeuvre "On the concept of history", this article will propose a reflection on the political potentiality of the memory of the vanquished in the struggle against the current violence and oppression.
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