Resumo
Neste estudo, analisamos uma atividade desenvolvida com licenciandos em física de uma instituiçâo federal do estado de Säo Paulo. O principal objetivo da atividade foi investigar o discurso produzido por estes licenciandos ao se engajarem em um debate sobre as possíveis causas do aquecimento global após assistirem dois documentários de ciencias. O primeiro intitulado "Uma Verdade Inconveniente" e o segundo "A grande farsa do aquecimento global". Ambos utilizam uma textualizapäo persuasiva, como depoimentos de cientistas, gráficos, simulaçöes, imagens, etc. para argumentar em favor de 1) causas antropogénicas e 2) causas naturais do aquecimento global, respectivamente. As seguintes questöes orientaram nossa análise: as estrategias retóricas utilizadas nesses documentários contribuíram para o posicionamento desses licenciandos em relaçâo âs causas do aquecimento global? Se sim, de que maneira? Até que ponto atividades dessa natureza podem contribuir para o desenvolvimento da alfabetizaçâo em mídia científica na educaçâo básica? Utilizamos como apoio teórico-metodológico a Análise do Discurso francesa, principalmente por meio de trabalhos publicados no Brasil por Eni Orlandi, além de trabalhos académicos das áreas de divulgaçâo científica e documentários. A análise sugere que o estilo dos documentários, juntamente com aspectos históricos e contextuais, influenciaram o posicionamento final dos licenciandos em relaçâo âs causas do aquecimento global.
Palavras-Chave: Documentários de Ciéncias; Formaçâo Inicial de Professores; Aquecimento Global; Análise de Discurso; Divulgaçâo Científica.
Abstract
In this study, we analyze an activity carried out with pre-service physics teachers from a federal institution in the state of Säo Paulo. The activity's main goal was to investigate the discourse produced by these teachers when engaging in a debate about the possible causes of global warming after watching two science documentaries. The first is called An Inconvenient Truth and the second The Great Global Warming Swindle. Both of them use rhetorical and symbolic strategies, as scientist testimonials, graphics, simulations, images, etc. to argue in favor of 1) Anthropogenic causes and 2) Natural causes of global warming. The following questions guided our analysis: Did the rhetorical strategies used in these documentaries contribute to the positioning of these pre-service teachers in relation to the causes of global warming? If so, in which way? To which extent may this contribute to the development of scientific media literacy activities in teacher training? The analysis was carried out with the theoretical support of French Discourse Analysis, mainly by means of the works published in Brazil by Eni Orlandi, as well as the scholarly of Science Communication and Documentary. The analysis suggests that documentary style along with historical and contextual aspects might influence the final positioning of teachers in relation to the causes of global warming.
Keywords: Science Documentaries; Teacher Training; Global Warming; Discourse Analysis; Science Communication.
INTRODUÇÂO
Estudos na área de educaçâo em ciencias tem apontado para a importancia de investigarmos como os conteúdos científicos transmitidos pela mídia tem sido trabalhados na educaçâo formal (Hofstein & Rosenfeld, 1996; Jarman & Mcclune, 2007; Jarman & Mcclune, 2010; Mcclune & Jarman, 2012; Fallik, Rosenfeld & Eylon, 2013; Ramos & Silva, 2014; Reid & Norris, 2016). Entre os principais motivos enfatizados por estes trabalhos, está o fato de que para a maioria dos jovens, a última oportunidade de compreenderem como se dá os processos de construçâo do conhecimento científico, incluindo as formas pelas quais a mídia produz e circula este conhecimento, será na educaçâo formal. Independente de seguirem carreiras científicas ou nâo, estes jovens continuarâo a serem bombardeados por notícias relacionadas â ciencia e tecnología durante toda a sua vida através dos diversos géneros de mídia. A capacidade de escolher, entender, avaliar e responder de forma fundamentada a notícias científicas, nâo é uma habilidade simples, mas sim uma avaliaçâo crítica que repousa sobre um corpo substancial de conhecimentos sobre os contextos social, cultural, económico, político e histórico mais amplos nos quais o conteúdo midiático é produzido (Bazalgette, 1999; Livingstone, 2010; Reid, 2012; Reid & Norris, 2016).
No entanto, apesar de terem acontecido mudanças significativas na estrutura curricular, particularmente no Ensino Médio (EM), a forma pela qual os professores ministram suas aulas e avaliam seus alunos, tanto no contexto nacional quanto internacional, ainda é ressonante com propostas curriculares que datam dos anos 60 do século XX (Millar & Osborne, 1998).
Estudos realizados no contexto brasileiro sobre como os audiovisuais e Textos de Divulgaçâo Científica (TDC) sâo usados em sala de aula, evidenciaram que esta parceria se dá, em grande parte, de acordo com os seguintes objetivos: mostrar a importancia da ciencia e tecnologia na sociedade, motivar, ajudar os estudantes a visualizarem e entenderem conceitos/fenómenos científicos abstratos e conscientizaçâo (Santos & Arroio, 2009; Rezende, Pereira & Vairo, 2011; Guerra & Morais, 2013; Arroio & Giordan, 2006; Rezende, 2008; Ramos & Silva, 2014; Pereira & Almeida, 2017). Já no contexto internacional, Mcclune e Jarman (2012), Jarman e Mcclune (2010) e Kachan et al. (2006), chegaram a conclusöes semelhantes nos contextos do Reino Unido e Canada, respectivamente. Estes pesquisadores apontaram que em pesquisa realizada nestes países com professores secundários, a grande maioria dos professores participantes da pesquisa, ao usar notícias científicas em sala de aula, faz isso com a intençâo de sensibilizar os estudantes sobre a relevancia da ciencia no mundo atual ou para motivá-los a se interessarem sobre assuntos científicos. Os pesquisadores concluíram ainda que poucos professores conseguem problematizar como a ciencia é representada nos meios de comunicaçâo e elaborar discussöes e atividades sobre a natureza da ciencia utilizando a mídia.
Neste contexto de uso da mídia em sala de aula, os estudantes sâo direcionados a terem uma interpretaçâo única, apenas descritiva da narrativa midiática. Como apontado por Ramos e Silva (2014) este controle dos sentidos, pelo apagamento de suas condiçöes de produçâo, aparece desde a nossa formaçâo inicial como professores de ciencias. Assim, as estratégias de uso da mídia em sala de aula, assemelham-se a forma como os professores concebem o discurso da ciencia na escola acabam contribuindo para que os estudantes aceitem as conclusöes científicas como absolutas (e nâo passíveis de argumentaçöes) ao privilegiarem uma leitura única, o que Duschl (1990) chama de final form science (Almeida, 2004; Duschl, 1990). No entanto, a crescente importancia das questöes científicas em nossa vida cotidiana exige uma populaçâo que tenha conhecimento e compreensâo suficientes para acompanhar os debates científicos posicionando-se ativamente e nâo apenas aceitando-os como verdades inquestionáveis (Millar & Osborne, 1998).
Além disso, estes estudos identificaram ainda que grande parte do genero midiático utilizado pelos professores em suas aulas resume-se a mídia impressa, em sua maioria, textos de divulgaçâo científica. Sendo assim, sâo necessárias pesquisas que focam o uso de outros generos midiáticos além da mídia impressa na educaçâo formal (Reid & Norris, 2016). Há poucos estudos relatando como os professores de ciencias interpretam e compreendem a forma como as questöes controversas sâo representadas em documentários de ciencias e como isso pode ter o potencial de contribuir para suas práticas futuras como professores (Reid, 2012; Ramos & Silva, 2014; Pereira & Almeida, 2017).
Sendo assim, nosso objetivo neste trabalho é contribuir para a produçâo de conhecimentos relacionados ao uso de documentários de ciencias na formaçâo inicial de professores numa perspectiva crítica ao problematizarmos o modo como o assunto aquecimento global é representado nos dois documentários. Para isso, na atividade que propusemos com os futuros professores e nas questöes elaboradas durante a entrevista, nosso foco foi investigar como aspectos relacionados â textualizaçâo documental, ou seja, a narraçâo, entrevistas de cientistas, apresentaçâo de gráficos, simulaçöes, imagens, etc. dos documentários, contribuíram para a produçâo de significados destes futuros professores sobre o referente aquecimento global.
Os documentários de ciencias possuem um imaginario histórico-social de credibilidade e confiabilidade dos conteúdos que apresentam. A própria palavra documentário remonta â ideia de documento, contribuindo assim para a construçâo desse imaginario (Godmillow & Shapiro, 1997). Em sua origem, eles foram pensados de forma a educar, informar a sociedade, principalmente sobre os desenvolvimentos e a conquistas científicas (Nichols, 2002). Ao assistir a um documentário de ciencias, a audiencia nao se coloca em suspeita, posiciona-se passivamente e recebe as informaçöes de forma neutra e desinteressada. Nao há um julgamento consciente e fundamentado de que a narrativa apresentada é uma versâo institucionalmente criada e apresentada pelo diretor/narrador do aparato fílmico.
No entanto, podemos pensar o documentário de ciencias de um modo no qual ele pode contribuir para a produçâo de um engajamento público do cidadâo, uma possível alfabetizaçâo científica pela mídia, modo esse que, como descreveremos adiante neste trabalho, vai ao encontro da atividade que desenvolvemos com os futuros professores. Nossa abordagem tem como objetivo descortinar a pretensâo ingenua de pensarmos a linguagem da divulgaçâo científica como transmissora desinteressada e neutra da ciencia. No entanto, para que os professores tenham condiçöes de problematizarem a ciencia e o modo como ela se publiciza através da divulgaçâo científica é necessário que estes conheçam elementos da natureza da ciencia, além de aspectos de como o discurso da divulgaçâo científica garante a credibilidade da ciencia através de sua circulaçâo.
Ao descrever as possíveis leituras, sentimentos e açöes que podem ser estabelecidas entre a linguagem documental e o espectador, Godmillow e Shapiro (1997, p. 82-83) enfatizam que:
"... esses filmes exercem poder ao mudar a consciencia, por sua tentativa deliberada de alterar a relaçâo de seus espectadores com um assunto, recontextualizando-o no tempo, espaço e campo intelectual oferecidos pelo filme. Eu gostaria que eles [documentários] fizessem duas coisas: primeiro, reconheçam suas intençöes interpretativas (sua instrumentalidade), isto é, deixem de insistir em sua inocencia como pura descriçâo; e, segundo, colocar seus materiais e técnicas a serviço de ideias, e nâo a serviço de sentimentos ou identificaçöes que produzem apenas compaixäo". [traduçâo nossa]
Quando falamos no trabalho com documentários de ciencias na educaçâo formal, acreditamos que o principal ator e mediador na produçâo de significados é o professor. A mediaçâo do professor é fundamental na criaçâo de oportunidades para que os estudantes se engajem em um debate autentico sobre temáticas sociocientíficas controversas apresentadas por documentários. Ao pensarmos na realizaçâo da atividade desenvolvida nesse trabalho, nosso posicionamento teórico-metodológico procurou se distanciar de modelos de formaçâo de professores baseados na racionalidade técnica. Nesse modelo, é enfatizada a prescriçâo de técnicas e estratégias de ensino, quase sempre concebidas por 'especialistas' da educaçâo, que devem ser aplicadas no contexto da sala de aula pelo professor. Os materiais e prescriçöes curriculares a serem utilizadas/desenvolvidas em sala de aula, nâo levam em conta a participaçâo e colaboraçâo do professor em sua elaboraçâo. Como apontado por Almeida e Silva (1994, p. 97) se o professor for apenas:
"... instrumentalizado para realizar açöes mecánicas, ele vai se alienando das polémicas culturais e das controvérsias científicas e, tornando-se passivo diante das dificuldades, raramente ele irá se deter na análise de seu desempenho".
A postura teórico-metodológica adotada por nós no planejamento, elaboraçâo e desenvolvimento da atividade descrita nesse trabalho, aproxima-se de uma concepçâo de formaçâo na qual o professor é visto como um profissional autónomo, que tem a potencialidade de refletir e promover mudanças sobre sua prática, e consequentemente, na vida de seus estudantes.
Na atividade que realizamos com os futuros professores utilizamos dois documentários: Uma verdade inconveniente (UVI) (Guggenheim & Gore, 2006) e A grande farsa do aquecimento global (GFAG) (Durkin, 2007). Além de assistirem os documentários, os licenciandos responderam um questionário e participaram de um debate sobre as causas do aquecimento global como representadas pelos dois documentários. Após duas semanas da realizaçâo da atividade, realizamos uma entrevista semiestruturada com 4 licenciandos que participaram do debate. As duas questöes que nortearam nossa pesquisa foram: Como esses licenciandos produzem sentidos sobre o modo como os dois documentários de ciencias utilizados representam as causas do aquecimento global (causas antropogenicas & naturais)? 2) O que podemos aprender com esse episódio de ensino que pode contribuir para o desenvolvimento de atividades de alfabetizaçâo científica pela mídia na formaçâo inicial de professores?
CONSIDERAÇOES TEORICAS
A abordagem Análise de Discurso
Neste trabalho apoiamo-nos no referencial teórico-metodológico da Análise de Discurso (AD) na vertente iniciada na França nos anos 60 do século XX por Michel Pécheux (1938 - 1983) e em trabalhos académicos da área de divulgaçâo científica e documentários (Nichols, 1991; Godmillow & Shapiro, 1997; Nichols, 2002; Mellor, 2009; Nichols, 2016). Nossa abordagem é baseada em trabalhos de Eni Orlandi, cuja produçâo em AD no Brasil tem contribuido significativamente para a constituiçâo da pesquisa nessa área.
Em AD reconhecemos a impossibilidade de ter acesso a um sentido escondido no texto [audiovisual]. A produçâo dos sentidos sempre dependerá da materialidade do texto, de seu funcionamento, de sua historicidade, dos mecanismos do processo de significaçâo (Orlandi, 2012). Diferente de abordagens que buscam o que um texto quer dizer, como a Análise de Conteúdo (AC), por exemplo, a AD considera a nâo transparencia da linguagem, postulando que o sentido único do texto é uma ilusâo. O texto sempre será atravessado por outros sentidos oriundos da história, do social e, consequentemente, do inconsciente e da ideologia. Dessa forma, a AD vai ao encontro de nossa insatisfaçâo em relaçâo âs aulas tradicionais de ciencias, seja na escola básica ou na formaçâo de professores, onde se prioriza a busca de um sentido único, uma interpretaçâo única, pois a AD problematiza justamente esta abordagem em relaçâo â leitura sobre a ciencia realizada nas escolas.
A incompletude existente em todo processo de significaçâo é considerada na AD como qualidade do processo de interpretaçâo, sendo esta abertura um espaço aos processos de significaçâo. No entanto, esta abertura nâo se dá aleatoriamente, mas sim, é afetada pelos processos históricos e sociais que limitam os dizeres, e os fazem transitar entre a paráfrase e a polissemia (Orlandi, 2007). Os processos parafrásticos sâo aqueles nos quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. Produzem-se diferentes formulaçöes do mesmo dizer. Ao passo que na polissemia temos um processo de deslocamento, ruptura dos processos de significaçâo.
A produçâo da polissemia só se dá por meio de uma inter-relaçâo entre as condiçöes imediatas de produçâo dos dizeres e a memória discursiva. Cabe ao analista de discurso, procurar indícios de que as condiçöes de produçâo imediatas nâo decidem exclusivamente os dizeres, mas também as condiçöes sóciohistóricas, a incidencia da memória. Aquilo que significa numa determinada situaçâo de ensino, já é determinado pelo trabalho da memória, pelo saber discursivo, ou seja, aquilo que já fez sentido em nós (Orlandi, 2001). No que diz respeito â leitura de imagens em movimento, a memória discursiva funciona de maneira a produzir uma (Silva, 2006, p. 77):
"... leitura (interpretaçâo) de imagens que integra-se numa história que é maior do que nós, num processo do qual nâo somos a origem; uma imagem, ao ser lida, insere-se numa rede de imagens já vistas, já produzidas, que compoem a nossa cotidianidade, a nossa sensaçâo de realidade diante do mundo. A leitura (interpretaçâo) de imagens nâo depende apenas do contexto imediato da relaçâo entre leitor e imagem: para lé-la o leitor se envolve num processo de leitura (interpretaçâo) que já está iniciado".
No contexto de nosso trabalho, os significados produzidos pelos futuros professores na atividade que desenvolvemos sobre a temática do aquecimento global, constituem-se nâo apenas no espaço das condiçöes imediatas de produçâo, mas também, devido a condiçöes sócio-históricas. Dessa forma, quando eles sâo interpelados pelas imagens em movimento e pela narrativa produzida pelos documentários, tudo o que já se disse sobre aquecimento global, mudanças climáticas, através de notícias, filmes, na televisâo, na escola, nas redes sociais, fazem parte da memória discursiva destes professores e já produziram um imaginário muito antes de sua vida como licenciandos de um curso de física.
Documentários de Ciencias: uma análise crítica
Em linha com nosso apoio teórico a primeira concepçâo que procuramos desconstruir é a de documentário como linguagem transparente e objetiva da realidade. De modo geral, os documentários possuem um imaginário histórico-social de por serem um recorte fiel e confiável da realidade. Isso se deve em parte â sua origem histórica, associada â ideia de documento, captaçâo objetiva e direta da realidade, características essenciais da ciencia e do pensamento científico no final do século XIX. Bill Nichols (1991, p. 3) descreve o documentário:
"... como tendo parentesco com outros sistemas näo-ficcionais que servem como 'discursos de sobriedade', como a ciencia, economia, política e educaçâo. Como estes discursos, o documentário é frequentemente considerado pelo público como tendo uma relaçâo direta, imediata e transparente com o mundo real". [traduçâo nossa]
O posicionamento de um leitor de documentário é a de um espectador passivo que possui uma relaçâo inconsciente de confiabilidade, estando apto a receber as informaçöes científicas como verdades inquestionáveis. No caso de documentários de ciencias, esta confiança na qualidade das informaçöes científicas se dá, pois, de modo geral, o público recorre substancialmente â reputaçâo dos canais televisivos que transmitem os documentários. Ao ser transmitido por um canal televisivo como a BBC, por exemplo, um documentário já carrega em si credenciais de confiabilidade e veracidade (Bucchi, 2013).
Ao longo do tempo, o documentário de ciencias apropriou-se de certos elementos da metodologia científica no seu processo de produçâo. Entre eles, a apresentaçâo de 'dados' científicos, como gráficos, equaçöes, simulaçöes computacionais e imagens que intencionam a documentar o 'real' da forma mais objetiva possível. No entanto, como produçâo cinematográfica, o documentário também se apropriou de metodologias inerentes â cinematografia, como o uso de dramatizaçöes, efeitos especiais, animaçöes digitais, etc. O fato de usarmos um documentário em sala de aula com objetivos educacionais, por exemplo para ilustrar um conteúdo científico, é indício de que acreditamos que este recurso possui confiabilidade e credibilidade para transmitir o conteúdo que pretendemos ensinar. Além disso, o rótulo de produçâo nâoficcional contribui ainda para a concepçâo de que o que será apresentado serâo informaçöes factuais.
Quando se trata de questöes supostamente controversas, como é o caso da temática do aquecimento global, torna-se ainda mais difícil realizarmos uma análise da credibilidade e confiabilidade das informaçöes transmitidas usando um critério puramente científico e objetivo. No caso da cobertura de notícias sobre assuntos de natureza controversa, os jornalistas utilizam-se muitas vezes do conceito jornalístico de balance. A notícia deve apresentar de forma equilibrada e balanceada, pelo menos duas visöes antagónicas, dando voz aos principais interlocutores responsáveis por esse antagonismo.
No entanto, algumas questöes científicas da atualidade já apresentam uma visâo dominante dentro da comunidade científica, obtida ao longo de anos através de muitas evidencias. Neste caso, se os jornalistas optam por nâo apresentarem que já existe uma visâo consensual dentro da comunidade científica sobre o assunto discutido, eles podem acabar trazendo uma visâo deturpada sobre os processos e resultados da ciencia. De acordo com Mcbean e Hengeveld (2000) muitos jornalistas preferem se utilizar de controvérsias e dramatizaçöes provenientes da apresentaçâo de vozes dissentes, por exemplo de uma minoria de cientistas dissidentes, em vez de visöes uniformes consensuais, para atrair audiencia e a atençâo de leitores. Esta abordagem é muito utilizada na circulaçâo de notícias sobre o aquecimento global, pois, mesmo existindo um consenso dentro da comunidade científica sobre as suas causas (Oreskes & Conway, 2010; Washington & Cook, 2011), no ámbito jornalístico, a temática ainda é apresentada de forma controversa. Neste caso, o próprio uso da técnica de balance, ao apresentar um equilíbrio de opiniöes, pode contribuir para uma apresentaçâo parcial sobre o assunto (Boykoff & Boykoff, 2004; Boykoff, 2011).
Para corrigir isso, os autores defendem que os jornalistas precisam saber sobre a natureza da ciencia e tudo o que se relaciona a incertezas na empreitada cientifica. Apesar de as incertezas serem elementos constituintes e históricos do desenvolvimento científico, é necessário que os jornalistas possuam uma visâo crítica e ética quando apresentam e disseminam estas incertezas (Mcbean & Hengeveld, 2000; Boykoff & Boykoff, 2004; Boykoff, 2011). Livros como o de Oreskes e Conway (2010) e Washington e Cook (2011) discutem as estratégias utilizadas por movimentos que negam as evidencias científicas sobre as causas do aquecimento global produzidas pela comunidade cientifica. De acordo com os autores, esses grupos muitas vezes atuam por meio da produçâo e publicaçâo de trabalhos supostamente científicos em revistas desconhecidas pela área academica.
Tendo em vista nosso apoio teórico e posicionamento em relaçâo â formaçâo de professores, optamos por realizar uma análise humanística em vez de tecnocrática, de nossa atividade com os futuros professores. Essa abordagem vai ao encontro de recentes propostas que procuram analisar atividades de natureza controversa em sala de aula utilizando o audiovisual em termos de sua forma e estilo, correlacionando a uma preocupaçâo com a ética e a ideologia (Nichols, 2002; Meilor; 2009; Bucchi, 2013; Nielsen, 2013; Nichols, 2016; Mellor, 2018).
Uma análise tecnocrática, baseada no discurso de acurácia científica, quando utilizada como único conceito analítico de análise do texto científico-audiovisual, parece nao ser produtiva para chegarmos a conclusöes decisivas em relaçao â precisao científica dos fatos apresentados. Desse modo, procuramos compreender elementos que nos apontem falhas, ou a quebra, na relaçao indexical existente entre o real e a forma como o texto audiovisual o representa. O critério de indexabilidade refere-se â linha imaginária entre o objeto e a representaçao deste no campo audiovisual. Nesta perspectiva, o documentário pode usar de todos os recursos cinematográficos para atrair a atençao do espectador, no entanto, quando é quebrada esta linha de indexabilidade, rompe-se a confiabilidade e a credibilidade do referente. Como apontado por Mellor (2009, p. 153):
"Uma questäo fundamental é a honestidade do filme, nao em termos das motivaçöes do cineasta, mas em quäo aberto é o filme em suas reivindicaçöes retóricas. Em vez de reduzir um texto da mídia a uma lista de imprecisoes, precisamos nos concentrar na integridade do texto, tanto no sentido de considerar o texto como um todo, composto de muitos elementos retóricos individuais, quanto no sentido de avaliar sua honestidade e abertura".
Os documentários utilizados em nossa atividade apresentam uma retórica com objetivo de influenciar o espectador a uma tomada de posiçao em relaçao ao aquecimento global. O primeiro, intitulado Uma Verdade Inconveniente (UVI), foi produzido em 2006, apresentado e narrado pelo vice ex-presidente americano Al Gore. Nele, Al Gore opta por uma abordagem pessoal e afetiva, encenando a apresentaçao de uma palestra para uma plateia que assiste atentamente suas explicaçöes. O assunto da palestra é um resumo da história pessoal do narrador, ao mesmo tempo que explica em tom pedagógico e instrucional as causas e as possíveis consequéncias catastróficas do aquecimento global antropogénico num futuro próximo. Durante as explicaçöes Al Gore utiliza-se de gráficos, animaçöes, e entrevistas com cientistas. Em grande parte, as imagens mostradas sao as mesmas que circulam na grande mídia sobre as possíveis catástrofes que poderiam se acentuar devido ao aquecimento global antropogénico: ursos polares â deriva, calotas de gelo derretendo, furacöes, tempestades tropicais, etc.
O segundo, intitulado A Grande Farsa do Aquecimento Global (GFAG), foi produzido e dirigido por Martin Durkin em 2007 e transmitido pela primeira vez pelo Canal 4 da British Broadcasting Corporation (BBC). O documentário pode ser classificado, usando a tipologia de Nichols (1991), como um filme de entrevistas (expository documentary). Nesse tipo de documentário temos um narrador fora de campo - tipo voz de Deus, nesse caso o próprio Durkin -, revestido com extenso uso de entrevista de especialistas na área do assunto discutido. Entrevistados e narrador defendem que as causas do aquecimento global nao estao relacionadas a fatores humanos, como por exemplo, ao aumento da produçao de CO2, mas sim a causas eminentemente naturais. As principais causas do aquecimento global defendidas pelo documentário sao o ciclo solar e a produçao de CO2 pelos oceanos devido a evaporaçao. Além das entrevistas, o documentário apresenta uma série de gráficos, supostamente retirados de fontes como a NASA e o IPCC, como evidencia científica das ideias defendidas.
Optamos por uma análise centrada em questöes de honestidade e abertura dos elementos retóricos do texto audiovisual dos dois documentários. Desse modo, consideramos que a integridade do texto e sua relaçao com os discursos produzidos pelos licenciandos parecem ser o modo mais significativo para analisarmos como eles produzem sentido sobre as representaçöes de mudanças climáticas nos documentários utilizados. Ao analisarmos os discursos produzidos pelos licenciandos, enfatizamos trés pontos principais: 1) suas relaçöes com as condiçöes de produçao imediata, materializada aqui pelos documentários utilizados, o debate promovido e as entrevistas. 2) A influéncia das condiçöes de produçao históricas, ou seja, o imaginário constitutivo sobre documentários de ciéncias e mudanças climáticas que se expressam principalmente através de sua memória discursiva, e 3) a problemática de como julgar a credibilidade, confiabilidade e consequentemente a transparéncia dos discursos circulados pela divulgaçao científica.
CONDİÇÖES DE PRODUÇÂO
A atividade descrita neste trabalho foi desenvolvida com 10 estudantes de um curso de Licenciatura em Física do Instituto Federal de Sao Paulo no segundo semestre de 2017. Os estudantes cursavam o 6° semestre do curso e estavam matriculados na disciplina Práticas do Ensino de Física II. O autor deste trabalho foi professor da disciplina. Esta disciplina faz parte do núcleo obrigatório do curso e seu principal objetivo sao as articulaçoes entre os conhecimentos teóricos do campo da educaçao em ciencias e sua inserçao na pratica docente em sala de aula. Entre os conteúdos e estrategias desenvolvidas, estao aquelas que procuram estabelecer interlocuçoes entre a ciencia, em particular a física, com os seus aspectos sociais, históricos e ambientais.
A atividade foi realizada em duas aulas de uma hora e meia cada, separadas por um intervalo de uma semana. Na aula anterior ao início da atividade, solicitamos aos estudantes que assistissem em casa o documentário Uma verdade Inconveniente (UVI), pois, na semana seguinte, iríamos discutir a temática do aquecimento global em sala de aula.
No início desta aula explicamos aos estudantes que a atividade que iriam realizar fazia parte de uma pesquisa que estava sendo desenvolvida sobre o uso de documentados em sala de aula. A participaçao na atividade foi obrigatória, pois ela se constituiu como uma das avaliaçoes realizadas na disciplina, sendo assim, comporia a nota final dos estudantes. Porém, a participaçao na pesquisa foi facultativa, ou seja, só usamos as informaçoes coletadas dos estudantes que aceitaram participar da pesquisa. Para isso, foi entregue um termo de consentimento livre e esclarecido.
Em seguida discutimos sucintamente sobre o documentário que eles tinham assistido e entregamos um questionário com tres questoes. Na questao 1 perguntamos para os licenciandos se eles acreditavam que o clima estava mudando e quais eram, em sua opiniao, as principais causas dessa mudança. Na questao 2 perguntamos através de que meios, ou seja, jornais, artigos internet, documentários, etc., eles se informavam sobre temáticas relacionadas as mudanças climáticas. Porém, para realizar a atividade de júri simulado com os licenciandos e investigarmos o papel desempenhado pelos documentários na mudança de posicionamento deles, nos pautamos nas respostas dadas na questao 3 (Figura 1).
Após responderem a questao 3, assistimos o documentário A grande farsa do aquecimento global (GFAG). Ao final, discutimos brevemente as ideias apresentadas, e perguntamos se alguém gostaria de mudar a reposta da questao 3 (Figura 1). Dos 10 estudantes que assistiriam o documentário GFAG, 4 mudaram sua resposta em direçao ao número zero da escala apresentada na questao 3, ou seja, que o aquecimento global nao é devido a responsabilidade humana, mas sim, a causas naturais.
Em seguida explicamos que na aula da semana seguinte, realizaríamos um debate sobre a temática apresentada nos dois documentários. Para isso, baseado nas respostas dada a questao 3, dividimos os estudantes em tres grupos: Grupo A: aqueles que defendem que o aquecimento global é devido a açao humana (respostas entre 6 e 10, 4 licenciandos), Grupo B: aqueles que defendem que é devido a causas naturais (respostas entre 0 e 4, 3 licenciandos) e Grupo C: os que ficaram em cima do muro (resposta 5, 3 licenciandos). Pedimos aos grupos A e B para realizarem uma pesquisa mais detalhada sobre os documentários assistidos e aprofundassem sobre a temática do aquecimento global durante a semana que antecedeu o debate. Deixamos claro que essas informaçoes poderiam ser de qualquer natureza: política, económica, ética, científica, etc. Eles poderiam usar qualquer material: internet, livros, artigos, revistas científicas, vídeos, etc. Enfatizamos para os membros dos grupos A e B que procurassem informaçoes que contribuíssem para reafirmar o seu posicionamento e argumentaçao no dia do debate. Para o grupo C, nenhuma pesquisa adicional foi necessária, uma vez que, durante o debate, eles teriam o papel de um júri que decidiría o veredito final baseado nas argumentaçöes dos interlocutores do debate.
A aula seguinte começou com a divisâo dos grupos A, B e C, de acordo com a disposiçâo representada na Figura 2.
O grupo B apresentou, com a utilizaçâo do Power Point, uma síntese do que tinha pesquisado durante a semana. Sua apresentaçâo se pautou principalmente na transmissâo e reforço de informaçöes 'factuais' e imagens retiradas do documentário GFAG. Já o grupo A, optou por realizar sua apresentaçâo usando informaçöes retiradas de websites, e trazidas impressas para o debate. O grupo C (júri) assistiu ao debate e ocasionalmente realizava perguntas aos integrantes dos grupos A e B. Após o debate o veredito do júri foi em favor do aquecimento global devido a causas naturais.
Duas semanas após a atividade o pesquisador realizou uma entrevista semiestruturada com quatro licenciandos. As entrevistas duraram aproximadamente 20 min cada uma e foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra A seleçâo dos licenciandos para a entrevista foi baseada nas respostas ao questionário mencionado anteriormente. O principal objetivo das entrevistas foi identificar elementos do discurso produzido que nos auxiliassem a compreender a mudança, ou nâo, de posicionamento dos estudantes após assistirem os documentários e o veredito final do debate.
Procuramos identificar nesses discursos o papel desempenhado pelas condiçöes de produçâo sóciohistóricas, que se referem aqui principalmente aos imaginários que compöem aquilo que já foi dito sobre documentário, audiovisual, e a produçâo, circulaçâo e silenciamento do referente mudanças climáticas na mídia brasileira (Ramos & Silva, 2014). E as condiçöes imediatas referem-se principalmente ao papel desempenhado pelos dois documentários utilizados e ao modo como foi desenvolvido o debate.
ANALISE DO DISCURSO PRODUZIDO PELOS FUTUROS PROFESSORES
Neste item, selecionamos trechos dos discursos produzidos pelos licenciandos durante o debate e a entrevista. Nossa análise procurou estabelecer as influencias da narrativa documental na produçâo de sentidos pelos licenciandos durante o debate e a entrevista. Analisamos elementos da retórica de persuasâo, estilo, autoridade científica e estrategias da comunicaçâo científica que contribuíram para a defesa dos posicionamentos dos futuros professores em relaçâo as possíveis causas para o aquecimento global.
O debate se iniciou com a apresentaçâo do grupo B. O grupo defende que o aquecimento global é devido a fatores que nâo dependem da açâo humana. Em essencia, os argumentos utilizados pelos integrantes do grupo sâo retirados de trechos do documentário GFAG, o que caracterizamos como um processo de produçâo discursiva parafrástica. No trecho abaixo, o grupo B defende que o aparecimento de das manchas solares foi responsável pela queda de temperatura durante a idade média, período que é classificado no documentário como pequena era do gelo:
Grupo B: Onde vocě vě a menor emissäo de radiaçâo do Sol? Foi em torno da pequena idade do gelo. Foi lá que a Terra estava mais fria. Foi chamada a era do gelo no documentarlo. Ou seja, naquele período em que tinha menos manchas solares, é onde foi chamada a pequena idade do gelo. O período em que tivemos menos manchas solares foi entre 1500 e 1700!
Durante a entrevista o membro do grupo B (Enzoi) explica porque mudou de opiniáo sobre as causas do aquecimento global ao assistir o documentário GFAG:
"Professor: Voce se lembra deste questionário? Eu pedi para voce responder depois de assistir o documentário Uma verdade inconveniente. Na questäo 3, voce colocou o número 7, ou seja, voce concordou que o homem é o principal responsável pelo aquecimento global. Mas depois de assistir o documentário A grande farsa do aquecimento global, voce mudou ideia, e respondeu 1. Entäo, por que voce mudou de ideia?
Enzo: Bem, eu já tinha assistido o documentário do Al Gore. Eu sempre pensei que era açâo humana. Mas depois de assistir o segundo documentário, mudei de ideia principalmente porque ele apresenta muitas evidencias científicas de que o aquecimento global näo é devido a causas humanas. Há entrevistas com cientistas afirmando que o aquecimento global está relacionado a outras causas näo relacionadas a açâo humana, por exemplo, devido ao ciclo solar. Na verdade, näo percebi que o sol pudesse ter tanta influencia como o documentário apresenta.
Professor: Entäo, sua mudança de ideia se deve ao documentário?
Enzo: O segundo documentário me convenceu mais do que o primeiro. Porque havia cientistas, dados, é uma versäo que eu achei mais plausível. Isso me fez mudar de ideia. Outra coisa que me chamou a atençäo também foram as atividades solares. Elas säo cíclicas e do que eu e o Renato [outro membro do Grupo B] pesquisamos, o pico da atividade solar está acontecendo agora. Isso me convenceu também. Embora o segundo documentário seja mais chato, é muito mais científico. Dados säo apresentados, dados sobre dados. E sempre tem um comentário de algum político e cientista relacionado a área. Isso é o que me convenceu. Se eles estäo dizendo a verdade, eu näo sei, mas eles me convenceram mais do que o primeiro documentário".
Há muitos aspectos a serem analisados nesses dois trechos. Comecemos pela questäo do aquecimento devido ao ciclo solar. O grupo B defende que há uma relaçâo causal entre o aparecimento das manchas solares e o aquecimento/resfriamento global. Para isso, eles se baseiam no gráfico apresentado na Figura 3 e em depoimentos apresentados no documentário.
Em um trecho do documentário o narrador e diretor Martin Durkin, diz: "E o Sol, ao que parece, e näo o CO2, ou qualquer outra coisa, que está impulsionando as mudanças no clima". Após a apresentaçâo e explicagäo do gráfico acima pelo narrador, o Dr. Piers Corbyn, apresentado no documentário como Climate Forecaster, adiciona: "O sol está dirigindo as mudanças climáticas, o CO2 é irrelevante". No entanto, o gráfico apresenta uma série de problemas em sua representaçâo, além de ser desatualizado sob o ponto de vista científico, informaçâo que foi silenciada por Durkin (Jones et al., 2007; Bartlett, 2009; Boykoff, 2008). A linha que representa a temperatura começa em 1860 e vai até aproximadamente 1982, enquanto a que representa o comprimento do ciclo solar vai até 1975. De acordo com Bartlett (2009), a partir de 1975 a atividade solar (representativa do comprimento do ciclo solar), tem caído, enquanto que a temperatura no hemisfério norte tem aumentado. É a partir deste ano que dados científicos mais apurados, principalmente obtidos por medidas provenientes de satélites, mostram uma alteraçâo no comprimento do ciclo solar provocando uma queda na radiaçâo proveniente do sol, enquanto que a temperatura no hemisfério norte sofre um acréscimo (Jones et al., 2007). Laut (2003) e Damon e Laut (2004) mostraram que quando analisamos como o gráfico da figura 3 foi construído em sua versäo original (Christensen & Lassen, 1991), onde o diretor de GFAG o retirou, chegamos a conclusäo de que näo há relaçâo apreciável entre o comprimento do ciclo solar e a temperatura global entre os anos de 1700 a 1950, e que, a partir de 1950, näo há nenhum tipo de relaçâo. De acordo com Jones et al. (2007) estas análises säo prontamente aceitas na comunidade científica atualmente.
Quando o grupo B usa gráficos e testemunhos do documentário GFAG para defender seu posicionamento, sua memória discursiva está desempenhando um papel importante. A leitura de imagens - gráficos - feita pelos licenciandos näo é questionada, pois, segundo seus imaginários, uma vez que os gráficos e depoimentos foram retirados do documentário, eles possuem um valor epistemico de evidencia científica (certamente, esse questionamento deveria ter sido feito pelo grupo A).
Em outra parte do debate o grupo B defende que o comprimento do ciclo solar tem uma influencia na temperatura global muito mais preponderante que a produçäo de CO2 industrial.
"Grupo B: O CO2 representa apenas 3% do efeito de estufa. A emissäo causada pelo ser humano é de apenas 0,7% desses 3%, ou seja, é insignificante! E minúsculo. Entäo, gostaríamos de colocar uma outra pergunta para voces: como é possível explicar que entre 1947 e 1976, período de desenvolvimento industrial acelerado, após a Segunda Guerra Mundial, a temperatura do planeta diminuiu? Preste atençâo senhores, a temperatura do planeta diminuiu!"
A defesa dessa fala é respaldada pelo gráfico da Figura 4.a retirado do documentário GFAG.
O gráfico da Figura 4.a é mostrado no documentário como evidencia de que entre os anos de 1940 a 1980, momento em que a produçâo de CO2 industrial é considerada máxima, houve um decréscimo de temperatura. Novamente, o gráfico apresentado por Durkin possui uma série de deturpaçöes. Os produtores atribuem o gráfico a NASA sem, no entanto, mencionar a fonte ou o artigo do qual o gráfico foi retirado. De acordo com Jones et al. (2007) mediçöes da temperatura global realizadas pela NASA, e outras agencias meteorológicas, mostram uma queda ínfima da temperatura global entre 1940 e 1980. No entanto, esta queda é menos da metade do que a representada pelo gráfico mostrado no documentário. Quando o documentário foi ao ar pela segunda vez o gráfico é apresentado com o título modificado "World temperature - 110 Years". A atribuiçâo a NASA é agora omitida, o eixo x é apresentado varrendo os anos de 1880 a 1990, no entanto, a forma do gráfico näo é modificada (Jones et al., 2007). Na Figura 4.b mostramos uma cópia da última mediçâo de temperatura global realizada pela NASA e disponível no website colocado na figura. Apesar de mostrar uma queda na temperatura entre os anos de 1940 a 1980, está é menos da metade da representada no gráfico do documentário. Além disso, há consenso entre a comunidade científica de que essa queda ínfima na temperatura entre esses anos é atribuída â liberaçâo de aerossol pela indústria durante o período pósguerra e que foi diminuída a partir de 1970 (Jones et al., 2007; Boykoff, 2011).
Ao usar gráficos apresentados como resultados de pesquisas científicas e depoimentos de pesquisadores, Durkin estabelece uma relaçâo de confiança e de forte indexabilidade com a sua audiencia. Como apontado por Nichols (2002, p. 38), "Como audiencia, esperamos poder confiar na ligaçâo indexical entre o que vemos [representaçâo] e o que ocorreu antes da câmera [referente]...". Dessa forma, ao alterar e silenciar informaçöes relevantes sobre os gráficos mostrados, Durkin quebra essa relaçâo indexical, e consequentemente a confiança que supostamente foi estabelecida entre audiencia e a representaçâo do referente pelo documentário (Mellor, 2009). Do ponto de vista do ensino e da divulgaçâo da ciencia, esse efeito tem consequencias danosas, pois pode contribuir para diminuir a confiança do público na ciencia e em suas representaçöes através da divulgaçâo científica.
É interessante notarmos o final da fala do licenciando Enzo na passagem transcrita acima, ao dizer: "Embora o segundo documentário seja mais chato, é muito mais científico. Dados säo apresentados, dados sobre dados. E sempre tem um comentario de algum político e cientista relacionado a área. Foi o que me convenceu". Com dissemos no início, o documentário GFAG segue o modelo clássico de documentário científico, enquanto que o do Al Gore, é mais pessoal e subjetivo. Ao seguir um modelo de entrevistas (expository model) a estratégia retórica utilizada por Durkin em GFAG, procura estabelecer uma relaçâo objetiva entre o referente e sua representaçâo. Esta se dá através da apresentaçâo de exaustiva e ininterrupta apresentaçâo de provas e evidencias que ao serem testemunhadas pela audiencia pretendem ser conclusivas sobre as verdadeiras causas do aquecimento global. Além disso, a utilizaçâo de uma narraçâo fora de campo, Durkin nunca aparece pessoalmente no documentário, contribui para reafirmar um discurso de autoridade científica. Um dos efeitos da voz fora de campo é sua transcendencia, motivo pelo qual os documentaristas a chamam de voz de Deus e, portanto, incontestável, omnisciente e imparcial (Bonitzer, 1986).
Como apontado por Mellor (2018, p. 42):
"A lógica de tais filmes [expository model] é típicamente realizada com uma narraçâo fora da tela que orquestra varias entrevistas com especialistas com o objetivo de apresentar uma narrativa aparentemente divergente, mas que no final, culmina em um experimento definitivo que fornece provas conclusivas sobre a discussäo". [traduçâo nossa]
Por se assemelhar ao método de investigaçâo da ciencia, esse efeito de objetividade é extremamente eficaz na produçâo de uma audiencia que, ao comparar a GFAG com o documentário UVI, que possui uma narrativa pessoal e subjetiva, se sente agora pertencer ao grupo seleto de investigadores que conseguiram, através do método científico, descortinar uma verdade antes escondida.
Certamente a efetividade na transmissäo desse efeito de verdade em documentários que seguem um modelo de entrevistas, depende de fatores diversos, entre eles a formaçâo e a memória discursiva dos sujeitos da audiencia. A natureza institucional e histórica de um documentário de ciencias, possibilitou ao longo dos anos a construçâo de uma memória discursiva que inconscientemente [ideologicamente] confere uma posiçâo constitutiva para a sua audiencia: a de passividade e aceitaçâo. A ruptura paradigmática dessa memória envolve um trabalho árduo e extremamente importante na sociedade atual, entre outros atores, do professor de ciencias, em promover atividades de alfabetizaçâo científica pela mídia em aulas de ciencias (Reid & Norris, 2016). Com a universalizaçâo da informaçâo, através das redes sociais, consideramos fundamental o desenvolvimento de habilidades relacionadas â alfabetizaçâo científica crítica, principalmente na educaçâo formal, pois, como apontado por Cooper (2011, p. 233):
"Sem um conhecimento previo de como analisar criticamente e questionar informaçöes transmitidas pela mídia, os estudantes normalmente acreditam nas primeiras ou mais abundantes informaçöes que encontram, e ignoram questöes confutantes ou menos abundantes. Uma pessoa alfabetizada em mídia näo sabe apenas como ler e escrever, mas também como interpretar opinioes pessoais representadas pela mídia, identificar desinformagäo e propaganda, e como os meios de comunicagäo säo construidos".
Já finalizando o debate, o grupo B é questionado pelo júri se eles pesquisaram sobre o documentário GFAG:
"Júri: Vocě pesquisou alguma informaçâo sobre os documentários? Por exemplo, quem patrocinou? Quem dirigiu? Se houve algum interesse envolvido em sua produçâo?
Grupo B: Nós näo fizemos nenhuma pesquisa sobre os documentários.
Júri: Só para saber, porque voce está defendendo o assunto do documentário, mas näo fez uma pesquisa aprofundada sobre as informaçöes contidas neles".
Na aula anterior a realizaçâo do debate, pedimos aos licenciandos que pesquisassem sobre a temática do aquecimento global e sobre os documentários assistidos no intuito de que eles fundamentassem a defesa de seus posicionamentos durante o debate. No entanto, verificamos que somente o grupo B realizou uma pesquisa sistemática sobre a temática sem, no entanto, pesquisarem sobre os documentários, como percebemos na citaçâo acima. O grupo A, se limitou a apresentar posicionamentos contrários as causas naturais do aquecimento global citando informaçöes provenientes da internet e do documentário UVI, em grande parte, pesquisadas durante o debate. Por vezes, o grupo B se defendeu das argumentaçöes do grupo A, explicitando o fato de que eles nao realizaram uma pesquisa sobre a temática, citando apenas opiniöes de senso comum, como podemos notar no trecho abaixo:
"Grupo B: De uma boa olhada neste gráfico. Se voce olhar aqui, ele mostra a var^äo de concentraçäo de CO2 e temperatura, que é a curva de fundo, dos últimos 420.000 anos na estaçäo Vostok na Antártida. Se voce olhar para a curva superior, que é a concentraçäo de CO2 e a curva inferior, que é a temperatura, se voce seguir esse ciclo, verá que ela se repete. Observe atentamente o dióxido de carbono e a temperatura.
Grupo A: Qual é a base desse gráfico? Este gráfico é o mesmo apresentado no documentário The Great Global Warming Swindle.
Grupo B: Pessoas, o que estamos apresentando aqui säo dados científicos. Voces estäo apenas falando sua opiniäo. Dados científicos säo sérios, näo säo baseados em opinioes. Entäo, a menos que voce queira apresentar dados científicos, deixe-me continuar!".
Compreendemos nessa fala do grupo B a existencia de um imaginário e um modo de leitura de documentários que os associam a enunciaçao da verdade. A explicitaçao desse efeito é muito importante, pois este modo de ler o documentário contribui para afirmar sua legitimidade e consequentemente o modo como significamos o referente (Ramos & Silva, 2014). Sendo assim, ao optar por um modelo de entrevistas, com uso de entrevistas com especialistas, apresentaçao de gráficos e uma narraçao fora de campo (que contribui para a imparcialidade na relaçao sujeito e objeto), a retórica narrativa do documentário GFAG se assemelha a retórica científica, apresentando entao a prova concreta sobre as causas do aquecimento global.
A licencianda Sara foi a única que nao mudou sua opiniao após assistir os documentários. Sua resposta a questao 3 do questionário após assistir o documentário UVI foi 5, ou seja, ela ficou em cima do muro. E após assistir o documentário GFAG continuou com a mesma resposta. Neste caso, os documentários parecem nao ter tido efeito em seu posicionamento. Por ter ficado em cima do muro, ela fez parte do júri durante o debate. Durante a entrevista com a licencianda gostaríamos de compreender os fatores que tiveram possíveis influencias em seu posicionamento. A primeira questao que fizemos foi em relaçao a sua resposta ao questionário. Sua resposta foi a seguinte:
"Sara: Eu realmente acho que há um equilibrio entre as duas visoes. Depois de assistir ao primeiro documentário [UVI], pensei: "Uau, isso é responsabilidade humana". Mas uma pessoa que eu respeito muito sempre falou comigo que o aquecimento global näo é responsabilidade humana. Eu li algumas de suas publicaçoes dizendo que o aquecimento global é uma farsa. Ent&acaron;o, eu pensei: "Ou eu acredito nesse cara que eu näo sei quem ele é [Al Gore], ou eu acredito em quem eu admiro muito e eu sei que ele é um grande estudioso". Ent&acaron;o, fiquei com quem é um grande estudioso".
Essa passagem ilustra a complexidade inerente ao ato de comunicar a ciencia e o papel desempenhado pelas condiçöes sócio-históricas na produçâo de sentidos pelos individuos. No modelo mais tradicional de comunicaçâo da ciencia, conhecido como modelo de déficit, pressupöe-se que a escolha de determinado posicionamento em relaçâo a questöes científicas é devida a falta de conteúdo científico sobre a temática. Sendo assim, uma vez que o individuo tome conhecimento das definiçöes e conceitos científicos, por meio de uma comunicaçâo unidirecional, ele teria um critério confiável e seguro para escolher um posicionamento. No entanto, a passagem anterior é uma ilustraçâo dos problemas existentes nesse modelo, por exemplo, dar pouca atençâo a outros tipos de conhecimentos e valores que sâo relevantes na vida real dos individuos, tais como a confiança no julgamento proveniente de membros da familia, amigos ou religiosos (Sturgis & Allum, 2004). Como apontado por Bucchi (2013, p. 910):
"Uma liçâo da crise no modelo do déficit e de abordagens tradicionais da divulgaçâo da ciencia, é que a discussäo sobre a imparcialidade näo é um critério menos importante do que o reconhecimento das imprecisoes científicas, quando pretendemos avaliar o sucesso e as implicaçöes da divulgaçâo científica. Abordar a imparcialidade pode ser interpretado aqui como uma abertura a crítica e a reflexäo".
O modelo do déficit pressupöe, ou nos posiciona, como uma audiencia passiva diante de informaçöes científicas veiculadas por um documentário que segue um modelo de entrevistas clássico. Nesse caso, os critérios de objetividade e semelhanças com a metodologia científica, usadas pelo documentário GFAG, parecem nâo ter contribuído para o veredito final de Sara em relaçâo as causas do aquecimento global. Seria justo pensar que quanto mais preciso e rigoroso a informaçâo científica transmitida, maior as chances de tomarmos um posicionamento a favor do assunto tratado, modo que funcionou no caso do licenciando Enzo, mas nâo no caso de Sara. Ao conceber uma transmissâo de conhecimento unidirecional, o modelo do déficit pressupöe que a veiculaçâo de informaçöes científicamente sólidas pode mudar o comportamento do público e aumentar o apoio a novas medidas políticas (Hulme, 2009). No entanto, a fala da licencianda nos mostra que questöes contextuais, subjetivas e pessoais, funcionaram mais expressivamente em seu posicionamento sobre o aquecimento global, do que as supostas evidencias científicas apresentadas no documentário GFAG. Do mesmo modo, o apelo emocional e pessoal, aliado também a evidencias científicas apresentadas pelo documentário UVI, parecem nâo ter produzido efeito significativo em seu posicionamento.
Após o debate o veredito do júri foi em favor do aquecimento global devido a causas naturais. Essa decisâo parece nâo estar associada apenas aos documentários assistidos, mas também, a forma como foi conduzido o debate pelos interlocutores, como podemos notar na fala de dois integrantes do júri, Sara e Felipe, durante a entrevista:
"Sara: Meu veredicto foi a favor das ideias do segundo documentário [GFAG].
Professor: Por que? Quer dizer, uma vez que voce se estava em cima do muro, por que escolheu o veredito a favor das causas naturais?
Sara: Porque eles [grupo B] foram muito mais convincentes. Na minha opiniäo, näo foi um debate porque o grupo A näo estava preparado.
Professor: Embora voce estava em cima do muro inicialmente, depois do debate voce decidiu pelo segundo vídeo, näo estou falando do segundo vídeo, mas da ideia que ele transmitiu. Estou certo?
Felipe: Sim, voce está. Na minha opiniäo, o problema do debate foi que nenhum deles foram bem fundamentados. O que eu percebi é que os membros do grupo que defenderam a ideia do segundo vídeo [grupo B] vieram mais bem informados".
Embora os motivos que levaram os licenciandos ficarem em cima do muro se deve em parte aos documentários assistidos, notamos na fala acima, que o veredito em favor das causas naturais teve como principal influencia a forma como o debate foi conduzido. De acordo com os licenciandos, o grupo B estava mais preparado para o debate. A apresentaçâo de evidencias em favor das causas naturais, retiradas em grande parte do documentário GFAG, contribuiu para a tomada de posicionamento do júri. Acreditamos que se grupo A tivesse apresentado dados em favor das causas antropogenicas, ou assinalado algumas das incoerencias do documentário GFAG, como as que descrevemos nesse trabalho, possivelmente o veredito teria sido diferente. Certamente, o documentário UVI também possui uma série de inconsistencias no que diz respeito a precisao científica. No entanto, "ninguém acusou Al Gore de falsificar gráficos para provar (ou desmentir) uma teoria" (Manzo, 2017, p. 93). No caso do documentário GFAG, após sua primeira transmissao em 2007, houve uma série de reclamaçöes para o órgao regulador de telecomunicaçöes do Reino Unido, o Gabinete de Comunicaçöes (Ofcom), denunciando uma série de imprecisöes em relaçao ao texto e as imagens apresentadas no documentário. Uma das reclamaçöes do grupo apontou que a GFAG apresenta "falsificaçâo ou erros graves de representaçâo de gráficos e dados" em seu texto audiovisual (Ofcom, 2008, p. 7). Sendo assim, com relaçao aos critérios que utilizamos para analisar o documentário GFAG, baseado principalmente nos conceitos de indexabilidade, ética e honestidade do texto audiovisual, GFAG apresenta de longe mais incoerencias que UVI.
CONSIDERAÇÖES FINAIS
Neste trabalho analisamos o modo como futuros professores de física discutem a temática do aquecimento global após assistirem dois documentários. Nossa revisao bibliográfica apontou que grande parte das atividades, envolvendo o uso do audiovisual em aulas de ciencias, sao realizadas utilizando-o principalmente como ferramenta, e nao como objeto de estudo ou para fins educacionais. Neste contexto, os principais objetivos elencados pelos professores de ciencias quando utilizam documentários em sala de aula sao para visualizaçao, reforço de conteúdos científicos, motivaçao, e diversificaçao das aulas de ciencias. Identificamos entao, uma falta de trabalhos que investigassem como o professor de ciencia le documentários, produz significados levando em consideraçao os diferentes estilos de documentários usados e contextos sócio históricos dos atores participantes de nossa pesquisa. Tendo isso em vista, nossa atençao se voltou para a problemática de como os audiovisuais se textualizam, constroem suas verdades e circulam conteúdos científicos controversos.
A análise dos discursos produzidos pelos licenciandos nos deu indícios de quao complexo pode ser o ato de comunicar questöes científicas controversas, principalmente quando a acurácia científica parece nao ser o único fator a ser analisado para julgar a credibilidade das informaçöes. Nossa expectativa na atividade que realizamos, era de que os licenciandos também levantassem questöes críticas em relaçao ao modo como os dois documentários transmitiram conteúdos sobre o aquecimento global. Durante a semana que antecedeu a realizaçao do debate, pedimos aos futuros professores que pesquisassem sobre o conteúdo e sobre os documentários assistidos. No entanto, pela análise dos discursos produzidos durante o debate notamos que eles enfatizaram a apresentaçâo de evidencias a favor do aquecimento global devido a causas naturais (grupo B) sem, no entanto, problematizarem de que modo estas evidencias foram construídas pelo documentário GFAG (tarefa essa que caberia ao grupo A). Em atividades futuras podemos pedir para que o grupo B encontre imprecisöes no documentário UVI, enquanto que o grupo A faça o mesmo para o documentário GFAG. Nesse caso, poderíamos analisar quais imprecisöes identificadas pelos grupos se enquadrariam dentro de nosso critério de indexabilidade, ética e honestidade.
Consideramos que as atividades que desenvolvemos com os licenciandos sao apenas o ponto de partida na direçao das respostas as nossas questöes de estudo. Como dissemos anteriormente, acreditamos ser de importancia fundamental mais pesquisas sobre como professores de ciencias e estudantes constroem significados sobre as representaçöes de ciencias nos diversos generos midiáticos. Dada a sua importancia, a alfabetizaçao científica pela mídia, nao envolve apenas a capacidade de conhecer conceitos e teorías científicas, como defendido pelo modelo do déficit, mas também, correlacionar o conhecimento científico com o conhecimento sobre a mídia, no intuito de saber escolher, compreender, avaliar e responder as representaçöes de ciencia na mídia. Para isso, acreditamos serem necessárias mais atividades que utilizem a mídia cientifica, em particular os documentários de ciencias, nao apenas como ferramenta para ensinar conteúdos científicos, mas também, como objeto de estudo. Em se tratando de atividades com o objetivo de discutir questöes controversas utilizando o audiovisual, o julgamento da credibilidade e confiabilidade das informaçöes pode estar fundamentado por meio de questöes como: Há motivos para se pensar que o apresentador/narrador tem um interesse em apresentar um ponto de vista específico sobre a questao? Sao apresentadas evidencias em apoio as opiniöes oferecidas? Como sao produzidas essas evidencias? Há alguma suspeita de que o apresentador está omitindo, alterando informaçöes essenciais para a tomada de posicionamento? Há um consenso dentro da comunidade científica sobre o assunto discutido? Além de contribuírem para nos aprofundarmos sobre os conteúdos discutidos, questöes dessa natureza nos fazem refletir sobre papel da natureza da ciencia e dos discursos midiáticos na construçâo do conhecimento científico.
Acreditamos que além de contribuir para a formaçâo de um sujeito leitor de ciencias pela mídia, atividades da natureza que realizamos nesse trabalho, podem contribuir para a descentralizaçâo do papel do professor como produtor de sentidos em sala de aula. Para isso, sao necessários cursos específicos sobre mídia científica na formaçâo de professores de ciencias. O conhecimento de conceitos básicos da área da divulgaçao científica pode contribuir para que os professores de ciencias problematizem de forma coerente, junto a seus estudantes, a forma como os resultados das pesquisas científicas sao circulados nos diversos generos da mídia. Como formadores de professores e futuramente os próprios professores de ciencias, podemos contribuir para que os estudantes tenham habilidades que vâo além da simples aquisiçâo de conhecimentos científicos, como por exemplo a capacidade de interpretar e detectar erros e desonestidade como os apresentados pelo documentário GFAG. A capacidade de interpretar mensagens extraídas de dados científicos e detectar erros e possíveis desonestidades na forma como estes dados sao apresentados é uma habilidade essencial e valiosa nao apenas na ciencia, mas em uma ampla gama de outras profissöes e contextos (Millar e Osborne, 1998). No entanto, o pensamento crítico e a habilidade de avaliar informaçöes científicas, nâo tem se destacado em atividades realizadas em aulas de ciencias com o uso de documentários, ou da mídia em geral. Concordamos com Cooper (2011) ao salientar que quando a habilidade de pensar criticamente sobre a ciencia nao é ensinada de uma forma a levar em consideraçâo aspectos éticos e de honestidade, em vez contribuirmos para formaçao de cidadaos céticos saudáveis, podemos estar produzindo pensadores cínicos e pessimistas (Cooper, 2011).
Finalizamos salientando a importancia de pesquisas que analisem quais os tipos de avaliaçöes mais coerentes com os tipos de práticas realizadas neste trabalho. Como avaliar se realmente houve uma evoluçao em aspectos relacionadas a alfabetizaçao científica dos estudantes? Além disso, muitos sao os desafios enfrentados pelos professores de ciencias para sistematizar práticas de uso de mídias em salas de aula, como por exemplo, tempo para realizaçao das atividades num currículo já carregado, e infraestrutura disponível no ambiente escolar.
1 Todos os nomes utilizados säo ficticios.
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Recebido em: 02.05.2019
Aceito em: 07.06.2020
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© 2020. This work is published under https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/ (the “License”). Notwithstanding the ProQuest Terms and Conditions, you may use this content in accordance with the terms of the License.
Abstract
Neste estudo, analisamos uma atividade desenvolvida com licenciandos em física de uma instituiçâo federal do estado de Säo Paulo. O principal objetivo da atividade foi investigar o discurso produzido por estes licenciandos ao se engajarem em um debate sobre as possíveis causas do aquecimento global após assistirem dois documentários de ciencias. O primeiro intitulado "Uma Verdade Inconveniente" e o segundo "A grande farsa do aquecimento global". Ambos utilizam uma textualizapäo persuasiva, como depoimentos de cientistas, gráficos, simulaçöes, imagens, etc. para argumentar em favor de 1) causas antropogénicas e 2) causas naturais do aquecimento global, respectivamente. As seguintes questöes orientaram nossa análise: as estrategias retóricas utilizadas nesses documentários contribuíram para o posicionamento desses licenciandos em relaçâo âs causas do aquecimento global? Se sim, de que maneira? Até que ponto atividades dessa natureza podem contribuir para o desenvolvimento da alfabetizaçâo em mídia científica na educaçâo básica? Utilizamos como apoio teórico-metodológico a Análise do Discurso francesa, principalmente por meio de trabalhos publicados no Brasil por Eni Orlandi, além de trabalhos académicos das áreas de divulgaçâo científica e documentários. A análise sugere que o estilo dos documentários, juntamente com aspectos históricos e contextuais, influenciaram o posicionamento final dos licenciandos em relaçâo âs causas do aquecimento global.





