Resumo
Neste artigo discuto a questâo do exilio no romance On Canaan's Side (2011), tecendo consideraçöes sobre o sujeito diaspórico desenvolvidas por Silviano Santiago (1978), Homi Bhabha (1995) e Edward Said (2003). O romance é uma autobiografia de uma personagem de ficçâo, cuja história pessoal se entrelaça a episódios traumáticos da história da Irlanda e dos Estados Unidos, pais em que a protagonista vive exilada desde a década de 1920. A meu ver, a prática historiográfica nomeada micro-história (Ginzburg; 2006) assemelha-se ao tipo de história que Sebastian Barry escolhe contar, bem como a escrita da história como um discurso sobre o ausente (Certeau; 2011), usada alegoricamente pelo autor no romance.
Palavras-chave: Literatura Irlandesa; Sebastian Barry; Exilio
Abstract
In this article, I discuss the issue of exile in the novel On Canaan's Side (2011), weaving considerations about the diasporic subject developed by Silviano Santiago (1978), Homi Bhabha (1995) and Edward Said (2003). The novel is an autobiography of a fictional character, whose personal history is intertwined with traumatic episodes of the history of Ireland and the United States, country in which the protagonist has been in exile since the 1920s. In my view, the historiographic practice named microhistory (GINZBURG; 2006) resembles the kind of history Sebastian Barry chooses to tell, as well as the writing of history as a discourse about the absent (CERTEAU; 2011), used allegorically by the author in the novel.
Keywords: Irish Literature; Sebastian Barry, Exile
Introduçâo
Sebastian Barry, poeta, dramaturgo e romancista irlandés, nasceu em 1955, em Dublin e graduou-se nas línguas inglesa e latina pela Trinity College Dublin. No final da década de 1970 e início de 1980 viveu fora da Irlanda dando aulas de inglés na França, Suiça, Inglaterra, Grécia e Itália. Em meados de 1980 retornou ao seu país e iniciou sua carreira de escritor. Desde entáo transita pelos géneros poesía, romance e drama. Uma característica da obra de Barry é o seu interesse por personagens liminares, "restos da história, homens e mulheres derrotados e rejeitados por sua época [...]. Eles sao inadaptados, anómalos, estrangeiros" (O'TOOLE, 1997, p. vii, traduçâo nossa). Segundo Liam Harte (2014), "sua afinidade particular é pelos individuos obscuros da história, que por conta de suas escolhas pessoais, obrigaçöes públicas, ou afiliaçöes políticas, foram excluidos da grande narrativa nacionalista irlandesa" (p. 198, traduçâo nossa) que excluía os irlandeses que nâo fossem nacionalistas e católicos.
O romance irlandés On Canaan's Side (2011) constrói uma autobiografia de uma personagem de ficçâo para refletir sobre a diáspora irlandesa, o exílio e mostrar como eventos históricos traumáticos moldam a subjetividade individual. Integralmente ambientada nos Estados Unidos, a obra reflete sobre a condiçâo do exílio a partir da história pessoal de uma senhora irlandesa de 89 anos, Lilly Bere, que decide acabar com a própria vida após a morte de seu neto único. Segundo Izarra (2018), os escritores de autobiografias [de sujeitos diaspóricos] "tendem a ser, de certo modo, etnograficamente orientados, já que eles dissecam modos e convençöes morais, e registram os processos de adaptaçâo, assimilaçâo e integraçâo dos imigrantes" (p. 316, traduçâo nossa). Consideramos que a escrita de Barry, no romance em questâo, apresenta um viés etnográfico ao narrar a experiéncia de exílio da personagem Lilly. Seguindo os elementos apontados por Izarra (2018) no modelo etnográfico, verificamos que o romance retrata a experiéncia da emigraçâo, com a travessia do Atlántico e a adaptaçâo a uma nova cultura; a adaptaçâo de Tadg alinhada a ideologia do Sonho Americano, o apego de Lily ao catolicismo como marca do pertencimento irlandés, e a identidade irlandesa-americana de Bill, que tem uma relaçâo de afeto pela Irlanda que nâo conhece fisicamente.
A narrativa do romance se desenvolve nos dezessete dias que separam o suicídio do neto - que nâo se recuperou emocionalmente de ter lutado na Guerra do Golfo - do suicídio da avó. Os capítulos sâo intitulados como os dias passados sem o rapaz: Primeiro dia sem Bill, Segundo dia sem Bill, e assim por diante, até o Décimo-sétimo dia sem Bill. Esses títulos tornam a auséncia do neto presente, embora esse personagem seja descrito de forma breve e pouco detalhada no discurso de Lilly. Essa auséncia, no entanto, é o que desencadeia a narrativa, posto que há um desejo da parte da narradora de retornar ao passado e relembrar, nâo só a existéncia do neto, mas a sua própria história de exilada.
Na abertura do romance o tom é estabelecido: "Bill se foi. Qual o som de um coraçâo de oitenta e nove anos se partindo? Nâo deve ser muito mais do que o si- lencio; certamente é um som quase imperceptível" (BARRY, 2011, p. 3, traduçâo nossa). O leitor se surpreende, engole em seco e antecipa a tristeza que experimentará na leitura. O que nâo se percebe de imediato é o poder de reflexáo que a obra suscitará durante e após a leitura. O coraçâo de Lilly se parte após muitas dores causadas pelos eventos traumáticos que experimentou.
A personagem compara aquele som a reaçâo que teve aos quatro anos de idade, quando em uma ida a missa em uma igreja em Dublin, com sua linda boneca de porcelana, viu-a cair de seus braços e espatifar-se no chao. Diz que sentiu o coraçâo partir-se da mesma maneira, e que aquela lembrança de quando era uma menina pequena passou a representar para ela o som de seu coraçâo se partindo. Ela se pergunta se "nâo seria um som como aquele que um coraçâo de oitenta e nove anos emitiría, a parte da dor - um som quase imperceptível" (idem, p. 4, traduçâo nossa). A lembrança infantil se mantém viva em sua memória e significa a materializaçâo de sua dor.
O romance também nos traz uma reflexâo sobre a morte. Para Lilly, a morte do neto é o fim do seu próprio caminho. A personagem procura descrever a dimensâo de sua dor:
Mas o sentimento em relaçâo a isso [a morte de Bill] é como uma paisagem submersa por uma inundaçâo, negra, e tudo, lareira e estábulo, animais e humanos, apavorados e ameaçados. É como se alguém, uma grande agencia, uma espécie de agencia central de inteligencia dos céus, soubesse bem o pequeno mecanismo de que sou feita e como [cada parte] é embalada e fixada, e tem o panfleto ou manual para me desfazer; e engrenagem por engrenagem, fio por fio, está fazendo isso, sem intençâo de me recompor e indiferente ao fato de que todos os meus pedaços estâo espalhados e perdidos. Estou tâo aterrorizada pelo pesar que nâo encontro consolaçâo em coisa alguma. Carrego em meu crânio uma espécie de esfera derretida ao invés de um cérebro, queimando em horror e miséria (idem, p. 4, traduçâo nossa).
Bill era, para ela, o último elo, tanto com a Irlanda, país que o neto admirava e do qual se orgulhava descender, quanto com a América, cujos ideais ele lutara para defender na guerra. A reaçâo da senhora a perda do objeto amado pode ser compreendida a luz do ensaio de Freud, de 1917, "Luto e Melancolia," que investiga a natureza dessas condiçöes psicológicas. Segundo Freud, "o luto, de modo geral, é a reaçâo a perda de um ente querido, a perda de alguma abstraçâo que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém" (FREUD, 2006, p. 103). Trata-se de uma tristeza profunda e desinteresse pelo mundo externo, como ilustrado na imagem de devastaçâo construída discursivamente por Lilly, mas nâo é uma condiçâo patológica, já que se espera que seja superado após certo lapso temporal.
A melancolia, por sua vez, traz consigo "a inibiçâo de toda e qualquer atividade, e uma diminuiçâo dos sentimentos de autoestima a ponto de encontrar expressâo em autorrecriminaçâo, culminando numa expectativa delirante de puniçâo" (FREUD, 2006, p. 104). Continua Freud: "no luto é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia é o próprio ego. [...] Esse quadro de delirio de inferioridade é completado por uma superaçâo do instinto que compele todo ser vivo a se apegar a vida" (idem, p. 107). A personagem Lilly parece sofrer de melancolia e perde o instinto de autopreservaçâo, encarando o suicidio como opçâo viável para nao ter de se confrontar com a falta do neto.
A afirmaçao de Freud, "a análise da melancolia mostra que o ego só pode se matar se puder tratar a si mesmo como um objeto" (idem, p. 111), reforça a tese do estado melancólico de Lilly, pela sugestao de sua autopercepçao como um objeto, ao fazer uso de palavras como mecanismo, engrenagens, fios, partes, cérebro como uma esfera derretida, na citaçao anterior.
A protagonista deixa a cidade natal, Dublin, nos turbulentos anos de 1920, e foge para os Estados Unidos que, como o titulo sugere, é a Canaa, ou a 'terra prometida' dos irlandeses, a fim de escapar de uma ameaça de morte decretada pela organizaçao paramilitar IRA (Exército Republicano Irlandés), dirigida a seu noivo e também a ela, pela sua ligaçao com o rapaz. Essa ameaça se explica pelo fato de Tadg, o noivo, ter lutado na Primeira Guerra Mundial como parte do exército británico, e, portanto, na visao daquela organizaçao, era um traidor dos ideais republicanos. Para agravar a situaçao do rapaz, ao retornar a Irlanda após o fim da guerra, nao conseguiu emprego, o que o fez se alistar na força de combate Black and Tans, da Polícia Real Irlandesa, força policial británica que lutou contra o IRA na guerra de independéncia irlandesa (1919-1921). Tadg participou, como membro dos Black and Tans, de uma emboscada que matou alguns rapazes do IRA. Essa ligaçao de Tadg com o estado británico e o seu envolvimento na morte de militantes do IRA fez com que ele e Lilly tivessem seus nomes incluidos numa lista dos que seriam mortos pela organizaçao paramilitar.
Lily nunca retornou a Irlanda e, ao escrever sobre o país a partir de sua memória, o faz como um discurso sobre o ausente. Embora os capítulos sejam intitulados a partir da auséncia do neto, é a história da Irlanda que está sendo contada; o passado morto da protagonista. A discussao aqui proposta sobre o exilio e a escrita da história irlandesa leva em conta o conceito de micro-história, já que focalizamos uma história individual, que acessa o passado por meio da memória e o processo da escrita como um discurso sobre o ausente, inspirando-nos na perspectiva do historiador Michel de Certeau sobre a escrita da história como "discurso sobre o passado, que tem como estatuto ser o discurso do morto" (2011, p.41). Certeau procede a sua análise da prática historiográfica:
O objeto que nele [discurso] circula nao é senao o ausente, enquanto o seu sentido é o de ser uma linguagem entre o narrador e seus leitores, quer dizer, entre presentes. A coisa comunicada opera a comunicaçao de um grupo consigo mesmo pelo remetimento ao terceiro ausente que é o seu passado. [...] No modo dessas conjugaçöes com o ausente, a história se torna o mito da linguagem. Ela torna manifesta a condiçao do discurso: uma morte. [...] É a relaçao de cada discurso com a morte que o torna possivel (idem).
O exilio no romance
A perspectiva de Certeau é pertinente para uma reflexâo sobre a forma e o conteúdo do romance, pois a relaçâo com a ausencia e a escrita da história pessoal de Lilly, que também é a história da Irlanda, é uma alegoria do discurso historiográfico concebido como uma escrita sobre mortos. O passado morto também opera no exilio, já que o exilio é um local no qual se tenta reconstruir um lugar perdido, a terra natal. Desde o inicio, a narradora faz digressöes que nos levam a conhecer a sua história, atravessada por traumas, perdas e muita dor em um pais estrangeiro, embora ela afirme que qualquer lugar pode ser um lar, quando diz: "Lugar algum é uma terra estranha. Cada um dos lugares é um lar para alguém, e, consequentemente, para todos nós" (BARRY, 2011, p. 58, traduçâo nossa).
Na citaçâo anterior, pressupöe-se o desenvolvimento, por parte do exilado, de um sentimento de pertencimento em relaçâo ao seu novo local de moradia. Lilly relata a relaçâo de seu noivo com a cidade em que viviam na América: "Tadg havia começado nâo apenas a gostar de Chicago. Ele havia começado a usar a palavra 'lar' nâo mais para referir-se a Cork ou a Irlanda" (idem, p. 72, traduçâo nossa). Seu comentário mostra a percepçâo que ela tem sobre a experiencia do noivo no exilio, no entanto, quando se trata de falar de si mesma, é a Irlanda que está sempre em foco, bem como a sua inadequaçâo ao novo pais: "Eu ansiava por estar em casa, fora desse caos americano, de volta ao caos irlandes que eu compreendia melhor, e onde nâo estaria tâo sozinha" (idem, p.164, traduçâo nossa). Embora a vida no exilio traga novas experiencias ao cotidiano e certo grau de assimilaçâo cultural, nâo se incorpora totalmente a nova realidade; a saudade permanece.
Nessa reflexâo sobre o exilio, Barry apresenta ao leitor outro exilado, um grego de nome Eugenides, dono de uma farmácia frequentada por Lilly, que mantinha produtos gregos em sua loja e ensinava um pouco do idioma a protagonista. Esse personagem sentia muita falta de seu pais, ouvia música grega e deu de presente a Bill, neto de Lilly, um exemplar de Homero, possivelmente a Iliada, traduzido para o ingles, quando o rapaz se alistou no exército estadunidense. Podemos perceber como o Sr. Eugenides procurava manter a tradiçâo de seu povo vivendo fora de seu pais. Lilly, ao contrário, trazia consigo apenas a Irlanda nostálgica de sua memória, de sua infancia e juventude e, materialmente, apenas um quadro de seu irmâo Willie, que havia lutado com Tadg na Primeira Guerra e morreu no conflito; no retrato pendurado na parede de casa, Willie trajava um uniforme de soldado. Bill admirava muito aquele retrato e, segundo a protagonista, a cada dia parecia-se mais, fisicamente, com o tio-avô. Esses foram os laços com as origens irlandesas que Lilly manteve por toda a vida no exilio.
Entre a identidade que deixou para trás e a nova, construida por força das circunstancias, Lilly sentia-se sem identidade própria, fragmentada. Em diversas passagens do romance ela evidencia essa situaçâo, como, por exemplo, quando se desespera com a morte de Tadg e diz nâo saber mais quem é, em uma América sem a presença dele. O rapaz é assassinado em um museu em Chicago, num passeio de domingo. A moça, com medo de ser morta também, pega um trem para Cleveland, abandonando a cidade. Depois de passar por muitas dificuldades e privaçöes, começa a trabalhar como cozinheira na casa de uma senhora de ascendencia irlandesa e, depois da morte desta, continua trabalhando para a filha dela, até se aposentar, quando ganha uma casa para viver, como recompensa pelos vinte anos de trabalho para a família.
Cabe destacar que, na reconfiguraçâo de sua identidade, após a desarticulaçâo inicial causada pela separaçâo, o exilado passa a viver em um entrelugar (SANTIAGO, 1978; BHABHA, 1995), um intersticio, um terceiro local de enunciaçâo, sua identidade torna-se híbrida, característica da identidade diaspórica. Ou seja, no caso de Lilly, ela nao é mais somente irlandesa e nem mais é esse o seu lugar de fala, nem tampouco é uma americana. Ela habita um espaço intersticial de embate entre as diferenças culturais, transita entre as duas culturas, e é a partir desse espaço discursivo que ela se relaciona com o mundo. Poderíamos dizer, tomando de empréstimo as palavras de Edward Said, que a pátria de Lilly é o que ela escreve, pois no exílio "seu único lar disponível agora, embora frágil e vulnerável, está na escrita" (SAID, 2003, p. 58), já que por meio da escrita, Lilly pode recriar suas raízes, uma realidade longínqua da Irlanda que guarda dentro de si. Said comenta o desconforto característico do entrelugar habitado pelo exilado em sua autobiografia, intitulada sugestivamente Fora de Lugar:
Ainda hoje me sinto longe de casa [...] estas memórias sao, em certo plano, a reencenaçao da experiencia da partida e da separaçao do momento em que sinto a pressao do tempo que se esvai. O fato de viver em Nova York com a sensaçao do provisório apesar de 37 anos de residencia aqui salienta mais a desorientaçao do que as vantagens que auferi (SAID, 2004, p. 105).
O entrelugar traz consigo a sensaçao do provisório, do incerto. Trata-se de uma posiçao que guarda os vestígios de um mundo interno perdido e de uma vida externa dissonante, regida por outros referenciais, o que implica sempre uma vida fora do lugar. Por ter deixado o seu país, o exilado ve-se a partir de outra perspectiva, do lado de fora, impossível de se alcançar quando se está enredado em seus referenciais espaciais, temporais, sociais e psicológicos moldados desde a primeira infancia. A própria forma do romance reforça essa ideia de um entrelugar, já que a narrativa de Lilly transita continuamente pelo presente e o passado, a Irlanda e os Estados Unidos, sem marcar o espaço de uma ou outra categoria.
A visao distanciada de si mesmo e de suas origens será fundada na memória do exilado, sabidamente subjetiva e notadamente influenciada pela sua experiencia dolorosa como indivíduo. "Sua tristeza essencial jamais poderá ser superada. As realizaçöes do exílio sao permanentemente minadas pela perda de algo deixado para trás para sempre" (SAID, 2003, p. 46). Essa experiencia torna-se uma marca do trauma do exílio forçado e reflete-se na solidao, na perda de identidade, na dor, no estranhamento, no sentimento de perda. Tal condiçao existencial fará o indivíduo experimentar sentimentos de nostalgia e/ou de negaçâo em relaçâo a diversos aspectos de seu país, como mecanismos de defesa para suportar a dor que atravessa.
Cabe aqui dizer que nem todo exilio é traumático, pois, se as circunstancias que levam a ele sâo de escolha do exilado e se pode voltar ao local de origem a qualquer momento, nâo se trata de experiencia traumática. No caso de Lilly, contudo, identificamos o trauma, pois além de ter sido forçada a emigrar, ela nâo poderia voltar a Irlanda, já que a ameaça de morte persistía. Barry ilustra com Lilly o que o critico Edward Said postula em seu livro Ensaios sobre o Exilio, quando diz que "o exilio é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar" (SAID, 2003, p. 46). Mesmo no exilio, a pátria nâo é arrancada de dentro do individuo. Ela se mantém lá, em suas lembranças, recriada, colorida com as tintas da memória. Nâo o pais real, solo e topografia, mas sim uma representaçâo humana construida a partir de um legado histórico, politico, mitológico; o retorno ao que é primevo e que faz parte da constituiçâo da identidade do sujeito. Essa dor do exilio e a sensaçâo de uma vida fora do lugar perpassam todo o romance, bem como os traumas e perdas que Lilly enfrenta ao longo de suas muitas décadas de vida.
Barry desvela os sentimentos contraditórios de se viver no exilio a partir da perspectiva da protagonista. Ela sabe estar, pelo menos a principio, a salvo da ameaça de morte, o que é uma forma de libertaçâo. Mas, significa também que está desarraigada, distante de seu pais, de seus familiares e amigos. Ela perde contato com a familia e, para ilustrar essa afirmaçâo, comenta que só soube da morte do pai sete anos após o fato, mesmo assim nâo sabe onde ele está enterrado. Para ela, os Estados Unidos da América é um lugar que, após os primeiros tempos em que vivia dominada pelo medo de ser morta, é seguro. Porém ela nâo esquece a Irlanda, a 'sua Irlanda' que ela "ama, apesar de tudo, e é tâo grata a América, por finalmente oferecer-lhe um refugio" (BARRY, 2011, p.191, traduçâo nossa). Sobre a Irlanda ela diz: "meu próprio pais que é estranho a mim" (idem, p. 245, traduçâo nossa), já que após décadas de vida nos Estados Unidos ela passa a nutrir um sentimento de estranheza pela terra natal. Ao deixar o pais nos anos de 1920, uma nova Irlanda surgia com a separaçâo do Reino Unido e a independencia politica no sul do pais. Aquele novo pais, Lilly nâo teve a chance de conhecer.
Em relaçâo aos Estados Unidos, Lilly aprecia a vastidâo, como se verifica em passagens do texto: "Eu quase ri ao lembrar Dublin com suas casas baixas, com os telhados curvados como chapéus reverenciando a chuva altiva" (idem, p.62, traduçâo nossa), diz ao chegar em Nova York, ou, tempos depois, em Cleveland, ao visitar o Luna Park com seu amigo e depois marido americano, o policial Joe Kinderman: "O generoso céu americano estende seus braços abertos sobre nós, as fábricas brilhantes e a selvageria das ruas dos homens" (idem, p.116, traduçâo nossa). Embora admire o local do exilio, ela exprime a importancia que atribui as suas origens, mesmo estando há tantos anos afastada delas. "Maud, Annie, Willie e meu pai nunca me deixam. Nâo houve um dia em que nâo bebessemos uma estranha xicara de chá juntos, em alguma sala de visitas peculiar no fundo de minha memória" (idem, p.251, traduçâo nossa).
A História e a escrita da História
Lilly é a filha caçula de Thomas Dunne, superintendente da Polícia Metropolitana de Dublin, posiçâo assumida após 30 anos de serviços prestados e a mais elevada que um católico, como ele, poderia alcançar. A moça havia passado a infancia no Castelo de Dublin, e sua família tinha bastante prestigio e excelente posiçâo financeira durante o império. Seu irmao, William Dunne, cuja história Barry desenvolve no romance A Long, Long Way (2005), se alista no exército británico e luta na Primeira Guerra Mundial. Se pensarmos que após 1916 os movimentos separatistas tomaram corpo na Irlanda e, que após a guerra de independencia irlandesa houve uma guerra civil (1922-1923), que culminou com a separaçao do Reino Unido e consequente criaçao do Free State (1922), podemos perceber o quanto o mundo feliz da infáncia de Lilly é modificado em poucos anos. Ser a favor da uniao e viver no sul, e nao nos seis condados da Irlanda do Norte, ainda ligados ao Reino Unido, significava ser marginalizado na própria pátria, e Barry mostra ao leitor as consequencias dessa condiçao na vida dos envolvidos, personificada, nesse caso, por Lilly e sua familia.
A protagonista perde seu irmao na guerra, a família é obrigada a deixar o castelo de Dublin e viver na casa de fazenda da familia em Wicklow, por conta da mudança de regime, e seu pai, que defendia o país, passa a ser inimigo da nova naçao e é forçado a se aposentar. "Meu pai era superintendente de polícia sob o antigo regime. Ele passou a ser o inimigo da nova Irlanda, ou o que seja a Irlanda agora, ainda que eu nao saiba bem o que é aquele país" (BARRY, 2011, p. 42, traduçao nossa). Além disso, Lilly fica noiva de Tadg Bere, rapaz de Cork, que lutara na guerra junto com Willie, seu irmao, e que ao voltar para a Irlanda também passara a ser visto com maus olhos, sob a nova ótica nacionalista. O envolvimento amoroso dos dois jovens é responsável pela mudança mais radical na vida de Lilly: deixar a Irlanda para nunca mais retornar, fisicamente, a ela.
Tadg, ao retornar ao país no final da guerra, nao consegue emprego e é visto com desconfiança pelos nacionalistas. Principalmente após o Levante de Páscoa de 1916, todos aqueles que apoiavam a uniao com a Inglaterra, até mesmo os soldados irlandeses tao admirados dois anos antes, quando partiram, passaram a ser vistos como verdadeiros inimigos da naçao irlandesa. Como outros de sua geraçao, mais por falta de oportunidades do que por qualquer ideologia, Tadg se associou a força policial británica Black and Tans, braço da Real Polícia Irlandesa (RIC) composta majoritariamente por veteranos de guerra, contratados em caráter temporário para auxiliar na manutençao da ordem estabelecida pelo império.
Para infelicidade do rapaz, ao participar de uma açao policial em que quatro rapazes membros do IRA sao mortos, Tadg tem sua vida ameaçada e nao lhe resta opçao a nao ser fugir da Irlanda. Lilly, por sua ligaçao com ele também corre sério risco de ser assassinada. O pai da moça, já aposentado, graças ao alto cargo que ocupara, tem conhecidos que lhe permitem acesso privilegiado a informaçao de que a filha e o noivo corriam perigo de vida e articula a fuga do casal para os Estados Unidos com identidades falsas, como se fossem irmaos, Tim e Grainne Cullen, para que construíssem uma nova vida na América, a salvo dos assassinos que os espreitavam.
Em On Canaan's Side, Barry retrata o dia-a-dia difícil dos imigrantes nos Estados Unidos, em postos de trabalho pouco rentáveis e desprovidos de prestígio, como ajudante de pedreiro e empregada doméstica. Além das dificuldades no exílio, Lilly sofrerá muitas perdas, como o assassinato do noivo em um museu em Chicago, o que a levou a deixar a cidade; o abandono pelo marido norte-americano, Joe Kinderman, quando estava grávida, fato ininteligível para ela, que só mais tarde descobre que o receio do marido era o de gerar um filho negro; o desequilíbrio mental irreversível de seu único filho Ed, que sofre de stress póstraumático desde a volta da Guerra do Vietna e o suicídio de seu neto, também único, Bill, criado por ela desde os dois anos de idade, que logo após ter voltado da Guerra do Golfo, nao resiste ao trauma de ter participado de uma carnificina.
Nao é por acaso que a história de Lilly Bere é permeada de fatos históricos que mudam o curso de sua existencia, tanto na Irlanda, com a Primeira Guerra, a Guerra de Independencia e a Guerra Civil, como nos Estados Unidos, com a Guerra do Golfo, a Segunda Guerra e a Guerra do Vietna. A mudança de regime na Irlanda, a participaçao americana nos conflitos e o movimento dos direitos civis sao elementos que compöem o pano de fundo do romance. Reforçamos aqui a ideia de que Barry, em sua obra, trata a história fazendo uso da ótica dos anónimos, a quem o escritor dá voz: "nossas historinhas sem importancia" (BARRY, 2011, p. 119, traduçao nossa), diz Lilly. Ou ainda: "Willie Dunne, um nome perdido na história mundial" (idem, p. 32, traduçao nossa), referindo-se ao irmao morto na Primeira Guerra, ou mesmo: "seu nome nao deve ser mencionado porque é um nome inútil com uma história inútil" (idem, p. 42, traduçao nossa), quando fala de seu pai.
Ao abordar os fatos históricos dessa maneira, Barry deslegitima as grandes narrativas históricas, calcadas em uma visao macroscópica dos acontecimentos e dos chamados 'grandes nomes, aquelas pessoas que tiveram influencia decisiva em tais fatos. O que se le na obra de Barry, ao contrário, sao histórias pessoais e familiares, historinhas sem importancia, como diz a sua protagonista, que revelam muito da complexidade da identidade irlandesa vista internamente ou do exílio, sob a perspectiva de pessoas comuns, que vivenciaram os momentos históricos que sao narrados a partir de um ponto de vista totalizante nas versöes históricas oficiais. É como se tivéssemos acesso, por meio da ficçao, aos bastidores daqueles momentos, imaginando de que forma tais acontecimentos repercutiram nas vidas das pessoas que nao estavam envolvidas diretamente nos conflitos, mas foram atingidas irremediavelmente por suas consequencias. Podemos aqui chamar atençao para o tipo de história que Barry escolhe narrar em seus livros. Sua ficçao se alinha, nesse sentido, ao conceito de micro-história.
O historiador Carlo Ginzburg explica que na micro-história o enfoque é microscópico nas vidas e ideias de pessoas comuns e em fatos cotidianos de um determinado período, a fim de "descrever por meio de uma intriga inventada e nomes imaginários, os costumes e o modo de viver das pessoas daquele tempo" (GINZ- BURG, 2006, p.83). Segundo essa concepçâo historiográfica, "somente nessa escala reduzida podem ser compreendidas, sem reduçöes deterministas, as relaçöes entre sistemas de crenças, de valores e de representaçöes, por um lado, e pertencimento social, por outro" (CHARTIER apud GINZBURG, 2006, pp 263-264).
Giovanni Levi em seu artigo "Sobre a micro-história" traz alguns esclarecimentos sobre essa prática historiográfica que parecem refletir a intençâo de Barry ao tratar da história irlandesa:
[A pesquisa na micro-história] tem sempre se centralizado na busca de uma descriçao mais realista do comportamento humano, empregando um modelo de açao e conflito do comportamento do homem no mundo, que reconhece sua - relativa - liberdade além, mas nao fora, das limitaçöes dos sistemas formativos prescritivos e opressivos. Assim, toda a açao social é vista como o resultado de uma constante negociaçao, manipulaçao, escolhas e decisöes do individuo, diante de uma realidade normativa que, embora difusa, nao obstante oferece possibilidades de interpretaçöes e liberdades pessoais. A questao é como definir as margens, por mais estreitas que possam ser, da liberdade garantida a um individuo pelas brechas e contradiçöes dos sistemas normativos que o governam. Em outras palavras, uma investigaçao da extensao e da natureza da vontade livre dentro da estrutura geral da sociedade humana. Neste tipo de investigaçao, o historiador nao está simplesmente preocupado com a interpretaçao dos significados, mas antes em definir as ambiguidades do mundo simbólico, a pluralidade das possiveis interpretaçöes desse mundo e a luta que ocorre em torno dos recursos simbólicos e também dos recursos materiais (LEVI, 1992, p. 135).
Acreditamos que a escolha de Barry por uma narrativa que sublinhe as hesitaçöes, escolhas e decisöes dos individuos e que, principalmente, nao esteja comprometida com interpretaçöes dos fatos, mas sim com a exposiçao da ambiguidade e pluralidade desses, seja acertada para uma melhor compreensao do pertencimento irlandés (Irishness) e o resgate da história pessoal de sua familia, que está entretecida na história da Irlanda.
Barry focaliza, principalmente, os irlandeses que experimentam a dificil realidade de viver a margem em seu próprio pais, ou mesmo serem obrigados a deixá -lo, como Lilly, já que a representaçao da Irlanda construida pelo autor apresenta ao público "o relacionamento tenso entre o sujeito e a naçao para aqueles marginalizados por seu género, posiçao social, condiçöes financeiras" (HARTE, 2018, p.9) e também a inadequaçao a posiçöes politicas e religiosas, que nao se alinhassem a narrativa oficial irlandesa, levando-se em consideraçao que o romance se passa no periodo que se seguiu ao Levante de Páscoa (1916) e as revoltas que culminaram na divisao do pais. Aqui nos referimos aqueles que foram vistos, naquele momento, como traidores da pátria, já que nao se encaixavam na narrativa oficial de uma Irlanda nacionalista, republicana e católica. A familia de Lilly, por exemplo, era católica e nao se opunha ao Estado Británico, ao contrário, seu pai exercia um alto cargo administrativo naquela estrutura, como superintendente da policía británica, e seu prestigio e reputaçao eram consideráveis antes de 1916.
Expor e buscar sentido na questao do Irishness examinando a marginalizaçâo imposta a cidadaos irlandeses, por conta de suas afiliaçöes, parecem ser o foco do poeta, dramaturgo e romancista. Na ótica do autor, ao contrario do que as narrativas históricas irlandesas oficiais do nacionalismo parecem querer fazer crer, as identidades individuais, muitas vezes, estiveram em conflito com a ideologia nacionalista. Nao sao emitidos juízos de valor, mas a pluralidade das afiliaçöes é exposta na narrativa. A protagonista de On Canaan's Side chama nossa atençao para essa pluralidade ao comentar sobre a parcialidade da história oficial, a dos vencedores, no caso irlandés os nacionalistas, cotejada com a sua própria percepçao dos fatos:
Sempre penso com meus botöes sobre o que li a respeito do período da guerra da independéncia, a captura dos rebeldes, sua prisao em algum lugar do castelo [de Dublin], receio que torturados, e me pergunto se esteve meu pai envolvido naquilo? [...] Nao sei o quanto aquelas histórias pesam contra os perdedores, no caso homens como o meu pai, leais aos reis e a falecida rainha [Victoria], mas tenho certeza de que houve mal e crueldade de ambos os lados (BARRY, 2011, p. 41, traduçao nossa).
A visao de Lilly é bastante ponderada. Ela comenta em outras passagens do livro sobre a admiraçao e o amor que sente pelo pai, mas diz nao querer dar desculpas ou negar os atos cruéis que ele possa ter cometido. No entanto, por reforçar a lealdade do policial ao império, a personagem parece querer chamar a atençao para o fato de que, devido a sua afiliaçao, ele estava do lado errado da história.
Por conta da intençao de suicidio, a protagonista, que comenta nao gostar e nem saber escrever, resolve fazé-lo para deixar um legado, registrar histórias que nao devem ser esquecidas. A sua própria história está tao estreitamente ligada a história da Irlanda que o seu testemunho servirá para uma melhor compreensao da opressao sofrida por muitos que estavam no lugar errado e na hora errada, como costumamos dizer no Brasil. Essa ideia nos remete ao comentario de Lilly sobre a sua patroa: "ela era uma americana de ascendéncia irlandesa que amava a Irlanda e a ideia de sua liberdade, para ela heroica e inspiradora" (idem, p. 42, traduçao nossa) e complementa: "como era de fato, tenho certeza, a menos que vocé estivesse do lado errado" (idem, p. 43, traduçao nossa).
A caçula de Thomas Dunne estava 'do lado errado' sem ter escolhido propriamente um lado. Nascera e se criara em uma família que por muitas geraçöes servira aos interesses do império e, essa lealdade era motivo de orgulho. Com a mudança de regime em seu país, famílias como a dela passaram a personificar a traiçao aos interesses nacionais, por conta de sua aliança com os opressores. É esse 'outro lado' da história irlandesa, o de uma familia irlandesa católica que acreditava e apoiava o império e defendía a 'sua velha Irlanda', que Barry explora no romance ao escrever a autobiografia ficcional de Lilly Bere. A narrativa de Lilly possibilita uma leitura em contraponto (SAID, 2003) a versao oficial da história, evidenciando a sua natureza de construto discursivo, que teve em vista a hegemonia, sobre memórias coletivas diversas, de uma memória histórica adequada a reproduçao do poder dominante.
Consideraçöes finais
Na narrativa ficcional de Barry, a morte do personagem Bill foi o que motivou o relato da avó, que, segundo ela mesma, nao gosta e nao sabe escrever. A necessidade de faze-lo no momento que separa duas mortes - a do neto da sua própria - parece querer manter viva a lembrança de Bill. Lilly traz Bill de volta a vida, a partir do momento em que o transforma em matéria prima da narrativa. E nao é dessa mesma maneira que a escrita da história traz o passado a tona? A escrita da história também luta contra o esquecimento. Observemos o que diz Certeau ao comentar sobre a narrativa que se faz dos personagens históricos: "a historiografia tem a estrutura de quadros que se articulam em uma trajetória. Ela representa mortos no decorrer de um itinerario narrativo" (1982, p. 103). Lilly evoca o passado ausente e cria sentidos para a sua própria história e, por extensao, a de seu país. Analogamente, podemos pensar no mecanismo empregado pela história para estabelecer relaçöes e produzir sentidos entre passado e presente, mortos e vivos:
A escrita representa o papel de um rito de sepultamento; ela exorciza a morte introduzindo-a no discurso. Por outro lado, tem uma funçao simbolizadora; permite a uma sociedade situar-se, dando-lhe, na linguagem, um passado, e abrindo assim um espaço próprio para o presente: "marcar" um passado, é dar um lugar a morte, mas também redistribuir o espaço das possibilidades, determinar negativamente aquilo que esta por fazer e, consequentemente, utilizar a narratividade, que enterra os mortos, como um meio de estabelecer um lugar para os vivos. A arrumaçao dos ausentes é o inverso de uma normatividade que visa o leitor vivo, e que instaura uma relaçao didática entre o remetente e o destinatário (CERTEAU, 1982, p. 12).
O historiador Marc Bloch também caracterizou a história, enquanto historiografia, como "uma ciencia dos homens no tempo, movida pela intençao de unir o estudo dos mortos ao dos vivos" (2001, p. 23). Trazer o passado de volta ao presente, reviver mortos, só é possível através da memória, como a personagem descreve ao comentar sobre o que se passa quando fixa seu olhar nas fotos de seu irmao Willie, seu marido americano Joe Kinderman, seu filho Ed e seu neto Bill, todos em seus uniformes de soldados ou de policial, no caso de Joe. "Nao que eu possa ve-los, propriamente, mas eles estao vividos e iluminados, como sempre estiveram, quando os vejo com olhos da mente" (BARRY, 2011, p. 122, traduçao nossa). Ou ainda ao relembrar seu noivo irlandes:
estou cansada, mas por alguns momentos estive apaixonada por Tadg Bere novamente. Que estranho, que estranho. Podemos ficar imunes ao tifo, ao tétano, a catapora, a difteria, mas nunca a memória. Nao há vacina contra ela (idem, p. 83).
O relato de Lilly faz parte da sua história pessoal, mas também da história irlandesa. A sua história, como muitas outras contemporáneas a ela, sao histórias de anónimos, que participaram ou testemunharam determinado momento histórico. Essa perspectiva se alinha a abordagem da micro-história, que faz uma microanálise do passado histórico por meio da observaçâo, em escala reduzida, de elementos culturais, económicos e sociais daquela época, como, por exemplo, a análise da vida de pessoas comuns. Portanto, nao só a morte do personagem Bill engendra um discurso pessoal em busca de sentido para aquela morte [de Bill] e para aquela vida [de Lilly], mas o próprio discurso do que está ausente é um relato, assim como os observados sob a perspectiva da micro-história, que como enfatizamos, se concentra nos pequenos fatos do cotidiano de pessoas que viveram os fatos históricos amplamente conhecidos.
Barry reforça sua escolha pelo método de análise microscópica empregado pela micro-história quando faz Lilly dizer: "gosto de histórias que as pessoas contam de boca, ou gob, como costumávamos dizer na Irlanda. Histórias improvisadas, engraçadas, nao as depressivas estórias da história" (BARRY, 2011, p. 9, traduçao nossa).
Os acontecimentos registrados na macro-história oficial irlandesa - a grande história das guerras e dos movimentos revolucionários que aparecem nos livros - sao vistos internamente, pelo lado de dentro, em On Canaan's Side, sob a perspectiva de uma personagem que nao aparece, certamente, nos livros de história, mas que viveu e teve sua vida afetada, modificada e até mesmo destruida por aqueles grandes eventos. No romance, as histórias pessoais, as dores, as vidas roubadas, sao, sem dúvida, como tantas outras vidas anónimas, parte constitutiva da história oficial, que Barry escrutina e induz a reflexao critica a respeito das supostas verdades históricas.
Essa postura se alinha a uma preocupaçao da historiografia, que como a memória, tem a consciencia da divida (RICOEUR; 2007) e da responsabilidade perante aqueles que, quando vivos, estiveram condenados ao silencio. Os mortos, sobretudo as vitimas do horror, merecem que se procure e se diga a verdade, com base nos documentos e provas encontradas. Para Ricoeur (2007), em sua obra A memória, a história e o esquecimento, a única maneira possivel de se questionar uma narrativa histórica, que tende a se fechar em torno de um sentido e de um significado da realidade, é obrigar a fase representativa ou da escrita historiográfica a articular-se com a fase documental e de compreensâo/explicaçâo. Qualquer obra histórica é alvo de atestaçao ou refutaçao e está sujeita a criticas e revisöes constantes. Por essa razao, as versöes oficiais estao sempre sendo revistas, e a literatura tem muito a contribuir para essa revisao.
Nesse sentido, Barry, ao dar voz a Lilly em On Canaan's Side, aponta para a necessidade de reflexao a respeito das nuances de significados tanto das narrativas nacionalistas oficiais da Irlanda quanto das afiliaçöes politicas e suas consequencias para aqueles que, como a protagonista, se encontram envolvidos irremediavelmente com elas, apenas por estarem do lado errado da história.
Recebido em: 26/05/2020
Aceito em: 22/07/2020
* Possui doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense e pós-doutorado em Estudos Irlandeses pela Universidade de Sao Paulo. Atualmente é vice-presidente da Associaçâo Brasileira de Estudos Irlandeses (ABEI) e faz parte da comissâo editorial do ABEI Journal. Desde 2010 é professora e pesquisadora de literaturas de lingua inglesa do Departamento de Letras e Comunicaçâo Social do Instituto de Ciencias Humanas e Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail: elisa.abrantes2012@ gmail.com. ORCID: 0000.0001-9751-9930.
Referencias
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Secundarias:
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© 2021. This work is published under https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ (the “License”). Notwithstanding the ProQuest Terms and Conditions, you may use this content in accordance with the terms of the License.
Abstract
In this article, I discuss the issue of exile in the novel On Canaan’s Side (2011), weaving considerations about the diasporic subject developed by Silviano Santiago (1978), Homi Bhabha (1995) and Edward Said (2003). The novel is an autobiography of a fictional character, whose personal history is intertwined with traumatic episodes of the history of Ireland and the United States, country in which the protagonist has been in exile since the 1920s. In my view, the historiographic practice named microhistory (GINZBURG; 2006) resembles the kind of history Sebastian Barry chooses to tell, as well as the writing of history as a discourse about the absent (CERTEAU; 2011), used allegorically by the author in the novel.
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1 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil