Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar alguns dos principais modelos de interpretaçâo histórica da tradiçâo republicana. Partindo de um conceito heurístico de tradiçâo que busca compreender como as ideias se transmitem e se modificam de geraçâo para geraçâo, focamos nossa análise em tres critérios distintos utilizados para interpretar o republicanismo: I) o critério genealógico, centrado principalmente nas origens da tradiçâo e nos valores decorrentes desse caráter fundacional; 2) o nacional, que busca enfatizar os dilemas e os contextos distintos do republicanismo em cada naçâo; 3) e o socioconflitual, cujo foco se concentra na dimensâo sociológica da tradiçâo, dividindo o republicanismo em dois eixos principais, o aristocrático e o democrático.
Palavras-chave: Republicanismo. Tradiçâo. Genealógico. Nacional. Socioconflitual.
Abstract
The purpose of this article is to present some of the main models of historical interpretation of the republican tradition. Starting from a heuristic concept of tradition that seeks to understand how ideas are transmitted and modified from generation to generation, we focus our analysis on three distinct criteria mobilized to interpret republicanism: 1) the historical-genetic criterion, which deals mainly with the origins of the tradition and with the values resulting from this foundational character; 2) the national, which seeks to emphasize the dilemmas and different contexts of republicanism in each nation; 3) and the socio-conflictual, which focuses on the sociological dimension of the tradition, dividing republicanism into two main axes, the aristocratic and the democratic.
Keywords: Republicanism. Tradition. Historical-genetic. National. Socio-conflictual.
1Introduçao
A partir de meados do século XX, o republicanismo despontou no meio académico como uma corrente emergente e em continua ascensáo no campo da teoria política. Recuperado inicialmente por autores como Hannah Arendt, Hans Baron, J. G. A. Pocock e Alasdair MacIntyre, influenciados por uma visâo aristotélica das virtudes civicas, o republicanismo foi aos poucos reestruturando o debate teórico contemporáneo e revisando a compreensáo histórica das ideias políticas. O foco dessa primeira onda de retomada do republicanismo estava nos ideais de vida ativa, virtude cívica e açâo comunitaria, esgrimidos em oposiçâo ao liberalismo atomista, que passou a dominar o debate político ocidental no pós-Segunda Guerra (SILVA, 2015a).
A partir dos anos 1980, um segundo grupo de autores, capitaneados principalmente por Philip Pettit e Quentin Skinner, realizou uma revisâo histórica e teórica na própria tradiçâo republicana (SILVA, 2008). Esse grupo minimizou - ou até abandonou - alguns dos principais conceitos até entáo caros a tradiçâo, como a concepçâo mais enfática e exigente do ideal da vida ativa e sua associaçâo com a ideia de liberdade positiva, ao mesmo tempo em que trouxe outros ideais para o epicentro do republicanismo, mormente o ideal da liberdade como nâo dominaçâo. A partir de entâo, o debate se tornou mais denso e difuso e o interesse no republicanismo manifestou-se tanto na forma de um programa de pesquisas na história das ideias e na teoria política normativa (PETTIT; LOVETT, 2009), como na forma de uma filosofia pública (PETTIT; MARTÍ, 2010). Seu impacto tem sido especialmente sentido no meio académico. Conforme observou Nadia Urbinati (2012, p. 607), uma crítica moderada do neorrepublicanismo, "[...] a teoria republicana neorromana da liberdade como nâo-dominaçâo adquiriu um status de liderança na ciéncia política e redesenhou a geografia dos estudos políticos".
A diversidade interna do neorrepublicanismo deve-se nâo apenas a distintas adaptaçoes do ideario republicano clássico para o mundo contemporáneo, mas também a novas interpretaçoes acerca do cánone da tradiçâo. Partindo do reconhecimento dessa diversidade interna ao movimento neorrepublicano, este artigo pretende apresentar diferentes critérios usualmente mobilizados para interpretar o republicanismo: o critério genealógico, centrado na disputa sobre o lócus do momento fundacional do ideário republicano, conforme se considere sua origem em Atenas ou Roma; o critério nacional, que busca interpretar a tradiçâo a partir de subdivisóes territoriais identificadas com a cultura política de um país ou regiâo; e, por fim, o critério socioconflitual, conforme se considere a natureza aristocrática ou popular da tradiçâo. Essas diferentes vias interpretativas e formas de classificaçâo nâo sâo mutuamente excludentes, podendo mesmo ser combinadas em narrativas coerentes sobre aspectos específicos da tradiçâo. A título de exemplo, recorrendo-se simultaneamente ao criterio genealógico e ao criterio socioconflitual, é perfeitamente possível defender que a fórmula da constituiçâo mista baseada na dispersâo de poderes entre ordens ou setores sociais é típica das repúblicas antigas e renascentistas, sendo consideravelmente mais rara na época moderna. Tradiçoes tâo complexas e plurais como o republicanismo permitem ao historiador uma ampla variedade de criterios epistemicos, o que leva a uma considerável fluidez do próprio conceito de tradiçâo. Assim, antes de entrar na discussâo das diferentes taxonomías do republicanismo, faz-se necessária uma discussâo mais detida sobre o conceito de tradiçâo.
2Sobre o conceito de tradiçâo
Em seu significado mais rotineiro, tradiçâo remete diretamente a ideia de continuidade. Esse é o uso comum do termo no pensamento conservador, como pode ser visto nos elogios de Edmund Burke a constituiçâo inglesa, uma "constituiçâo prescritiva", ele afirma, cuja autoridade é "que tenha existido desde um tempo desconhecido" (BURKE, 1999, p. 20). A continuidade é certamente um elemento fundamental do conceito de tradiçâo, mas insuficiente para a análise histórica. Levada as últimas consequencias, uma açâo tradicional, nesses termos, seria uma açâo repetida indefinidamente com o passar dos anos, mesmo que realizada por diferentes agentes. Com isso, conformar-se-ia aquilo que Pocock (2009, p. 191) denominou "sociedades sem tempo", ou seja, um mundo em que cada agente é, no que diz respeito a açâo, uma reencarnaçâo completa de seu predecessor. Sob tal definiçâo, poderíamos afirmar que tradiçoes nada mais sâo do que mitos de perenidade.
O filósofo da história Mark Bevir (2000) desenvolve um conceito heurístico de tradiçâo, que é de grande utilidade para nossa discussâo sobre as formas de classificaçâo da tradiçâo republicana. Argumenta Bevir que, em seu período de socializaçâo, o indivíduo inevitavelmente entra em contato com múltiplas tradiçoes nas mais variadas esferas sociais: há tradiçâo nas familias, nas escolas, nas igrejas, nos veículos de mídia, entre tantas outras instituiçoes e práticas. Nascemos e crescemos em um mundo em que outras pessoas já expressaram suas crenças, e elas inevitavelmente nos influenciam. A continuidade das tradiçoes surge justamente da reproduçao das crenças com as quais os indivíduos se confrontam ao longo da vida. Mas, em Bevir, além da continuidade, as tradiçoes sao igualmente definidas pela sua adaptabilidade a novos contextos. É nesse ponto que entra a importancia da agencia. A relaçao de transmissao e apreensao das crenças de determinada tradiçao é apresentada com o uso da metáfora da relaçao de um mestre com seu pupilo. Tratando-se de história das ideias, a relaçao do herdeiro com as crenças que lhe sao transmitidas é relativamente seletiva. Ao expressar suas crenças, o pupilo pode estar realizando dois atos: o de manutençao e o de mudança. Ou, o que provavelmente acontecerá, um ato simultaneo de conservaçao e ruptura. Isso é possível porque as tradiçoes sao multifacetadas, e um agente pode aceitar, modificar ou rejeitar cada uma de suas partes. Como aponta o autor: "[...] as pessoas usualmente desejam melhorar sua herança fazendo-a mais coerente, mais precisa, mais relevante para as questoes contemporáneas" (BEVIR, 2000, p. 39). As tradiçoes se modificam quando transmitidas de uma pessoa para outra.
Apesar de nao exigir que o pupilo reproduza integralmente a rede de crenças da tradiçao que herdou, Bevir salienta que o aprendiz deve compartilhar ideias com o professor, de quem provavelmente sofreu uma influencia formativa. As tradiçoes nao sao entes externos aos seus próprios agentes, nem mesmo ao historiador. Elas sao, na verdade, construçoes teóricas, construtos heurísticos mobilizados para compreender os significados de relíquias do passado através de sucessivas conexoes temporais e conceituais derivadas da influencia de um agente sobre outro. As conexoes conceituais dotam de coerencia crenças expressas em momentos distintos da tradiçao, ao passo que as conexoes temporais revelam o processo efetivo de transmissao das crenças ao longo do tempo e os meios materiais pelos quais o pupilo recebe e incorpora as crenças do mestre. Isso significa que, apesar de serem construçoes dos historiadores, as tradiçoes nao sao descomedidamente subjetivas. Elas devem ser construídas com demonstraçoes factuais de crenças que realmente existiram, e com a devida compreensao de como foram transmitidas e adaptadas as novas realidades. Nesse sentido, a tradiçâo é o primeiro passo para uma compreensâo diacronica das ideias políticas. Como aponta Bevir (2000, p. 37), "[...] a tradiçâo é inevitável como um ponto de começo, nâo como um destino final".
3A tradiçâo republicana
Philip Pettit (1997, 2012), autor de uma das mais célebres tentativas de adaptaçâo do republicanismo clássico ao mundo contemporáneo, ao ser indagado em uma entrevista sobre o significado de republicanismo respondeu nos seguintes termos: "primeiramente eu diria que é uma tradiçâo histórica" cuja origem "mais óbvia é a Roma clássica" (EDMONDS; WARBURTON, 2012). Pettit nâo foi o primeiro a buscar uma atualizaçâo da tradiçâo republicana clássica. Autores Como Arendt, Taylor, MacIntyre, Sandel e outros, de algum modo, já impuseram a si tal desafio. Mas a raiz da distinçâo entre as diversas tentativas de modernizar o republicanismo surge, inicialmente, da maneira com que os próprios filósofos e historiadores contemporáneos interpretam a tradiçâo.
Interpretaçâo e atualizaçâo sâo dois atos distintos que podem ser realizados de maneira independente. Como aponta Bevir (2000), essa é a distinçâo que marca a diferença entre o historiador, cujo principal objetivo é interpretar corretamente as relíquias do passado, e o pupilo, que se dedica primeiramente a atualizaçâo das ideias da tradiçâo - ainda que possa existir uma combinaçâo de ambos, sintetizados em uma teoria política embasada historicamente, como defende Green (2012, 2015). Dessa maneira, criam-se diversos critérios para se olhar o passado, cada um deles focalizado em diferentes conceitos e contextos históricos. Por sua antiguidade, o republicanismo tem sido objeto de múltiplos ressurgimentos em sucessivas eras. Ademais, dada a complexidade de seus ideais, ele tem sido objeto de conflitos de interpretaçoes, o que vem estimulando frutíferos debates em diferentes campos do conhecimento nas ciencias humanas e sociais: da história das ideias a filosofia moral, do direito constitucional a justiça trabalhista e criminal, das relaçoes internacionais a economia política, da teoria política a sociologia das organizaçoes. Dentre a variedade de critérios possíveis para a classificaçâo da tradiçâo republicana, destacaremos tres que consideramos mais recorrentes na literatura recente: o critério genealógico, o critério nacional e o critério socioconflitual.
4O critério genealógico
Centrada principalmente nos períodos históricos em que as redes de crenças republicanas se manifestaram pela primeira vez de maneira relevante, a classificaçao conforme a genese tende a opor os defensores do legado ateniense e os defensores do legado romano. As diferenças entre as duas vertentes, no entanto, nao se limitam a questóes geográficas. A escolha pela origem romana ou ateniense representa também um posicionamento acerca dos axiomas básicos da tradiçao.
Embora haja um consenso em atribuir o nascimento do republicanismo a Antiguidade, o local e o tempo exato sao motivos de disputas hermenéuticas. De um lado, localiza-se a genese da tradiçao no mundo grego, em especial no zoon politikon aristotélico (POCOCK, 1975); de outro lado, a república romana assume o epicentro do debate, nao apenas pela origem etimológica latina do termo res publica, mas também pela criaçao das instituiç0es basilares do regime republicano e pela maturaçao de um pensamento moral e político na fase tardia da república romana3. Foi essa divisao interpretativa que rendeu ao republicanismo contemporáneo dois adjetivos compostos: neoateniense e neorromano.
Os intérpretes que atribuem a fundaçao do republicanismo ao pensamento político de Aristóteles o fazem principalmente a partir do conceito de vita activa - o modo de vida típico do zoon politikon. Em Política, Aristóteles define a vida na polis grega como oposta a associaçao centrada na casa. Essa divisao deu ao cidadao aquilo que Werner Jaeger definiu como "segunda existencia", pertencente a esfera pública, que se realiza na açao (praxis') e no discurso (lexis'), denotando que "[...] na vida do cidadao, há uma distinçao rigorosa entre o que lhe é próprio e o que é comum" (JAEGER, 1995, p. 144). Segundo a vertente neoateniense, é na segunda existencia que os seres humanos realizam sua liberdade, em uma atividade pública interposta pelo debate de múltiplas perspectivas discursivas. A oraçao fúnebre de Péricles, narrada por Tucídides, é uma ótima representaçao dos ideais atenienses - ou de como os atenienses gostavam de conceber a si mesmos.
Pois olhamos o homem alheio âs atividades públicas nao como alguém que cuida apenas de seus próprios interesses, mas como um inútil; nós, cidadaos atenienses, decidimos as questÐes públicas por nós mesmos [...] na crença de que nao é o debate que é empecilho â açao, e sim o fato de nao se estar esclarecido pelo debate antes de chegar a hora da açao. (TUCÍDIDES, 2001, p. 111).
A interpretaçao que atribui o nascimento do republicanismo ao mundo romano, por outro lado, tem como principal pilar o conceito de liberdade como nao dominaçao. Livre é aquele que näo é dominado por outra pessoa, que nao está sob o poder arbitrario de outrem. Essa concepçao de liberdade estaria presente no mundo romano, em especial no seu corpus jurídico, o Digesto, como apresentam Pettit (1997) e Skinner (1999), mas ela nao passaria alheia aos pensadores da república tardia e do começo do principado romano. Chaim Wirszubski (1950), referencia no assunto para os autores supracitados, reconstruiu o conceito de liberdade tributário do pensamento romano - sobretudo a partir das obras de Cicero, Tito Lívio, Salústio e Tácito. "Libertas", ele afirma, "[...] denota primeiramente o status de 'liber', i.e. a pessoa que nao é escrava, e compreende tanto a negaçao das limitaçoes impostas pela escravidao quanto a afirmaçao das vantagens derivadas da liberdade" (WIRSZUBSKI, 1950, p. 1). Nesses termos, para utilizar a definiçao de Kapust (2004), a liberdade é uma espécie de escudo jurídico mobilizado pelo povo para conter o poder arbitrario dos cónsules e dos decenviros romanos. Os neorrepublicanos, para ilustrar o conceito, costumam utilizar a metáfora do senhor benevolente que deixa seu escravo agir como desejar, sem interferir em sua vida. Segundo a concepçao mais usual de liberdade negativa, apresentada por Isaiah Berlin (2002), nao há como reconhecer impedimento a liberdade do escravo até o momento em que alguma interferencia efetiva limite ou suprima suas escolhas. O ponto central da teoria neorromana está em estabelecer um conceito em que, mesmo agindo sem a interferencia do senhor, esse escravo nunca tenha sido um homem livre, pois a mera possibilidade de interferencia arbitrária seria o suficiente para aniquilar sua liberdade. Para Cícero, a liberdade nao está em obedecer a um senhor justo, mas em nao possuir nenhum senhor: "[...] para os povos, a diferença é entre servir um senhor afável e servir um severo - mas nao deixam de estar na servidáo" (CICERO, 2008, p. 105).
O conceito de liberdade como nao dominaçao é indispensável; porém, nao é suficiente para o estabelecimento dos contornos mais precisos da tradiçao republicana. Para os neorromanos, a liberdade é um ideal que requer uma espécie de materializaçao institucional. Para Pettit (2013), a dimensao institucional da liberdade consiste na articulaçao de dois complexos acervos de instituiçoes e práticas: a constituiçao mista e a cidadania contestatória. Embora a constituiçao mista seja, conceitualmente, uma invençao grega, presente na filosofia de Platao e de Aristóteles, ela foi constantemente mobilizada para descrever a república romana, primeiramente por Políbio e depois por Cicero, como uma mistura de monarquía (consulado), aristocracia (senado) e democracia (tribunato da plebe), na qual cada uma das ordens buscava contrabalancear o poder da outra. É com base nessa tríade, solidificada apenas no mundo romano, que Pettit atribui a genese da tradiçao republicana ao mundo latino. A constituiçao mista responde pelo anseio de proteger a liberdade evitando a concentraçao excessiva de poder em determinado lócus, favorecendo mecanismos de distribuiçao do poder. Já a existencia de uma cidadania contestatória responde pelo quantum de virtude cívica indispensável ao bom funcionamento da república e a proteçao da liberdade. O poder de contestaçao dos cidadaos contra as ameaças ou o efetivo exercício do poder arbitrário proveniente de outros cidadaos ou do próprio Estado encontrava expressao nas prerrogativas de veto dos tribunos romanos e nas sucessivas revoltas populares plebeias.
A distinçao entre um republicanismo de origens atenienses e outro de origem romana alimenta a disputa sobre o significado da atualizaçao da tradiçao no contexto do alvorecer da Modernidade. As tradiçoes se formam a partir de transmissóes e adaptaçoes de suas redes de crenças a um novo contexto. Assim, a tradiçao republicana transcende seu contexto de origem na Antiguidade (grega ou romana) para reaparecer no contexto do Renascimento italiano. Os achados historiográficos de Hans Baron (1966) e J. G. A. Pocock (1975) buscaram demonstrar como os humanistas cívicos da península itálica, ao entrarem em contato com Aristóteles, absorveram e adaptaram os ideais de vita activa. Baron (1966, p. 91), baseando-se primordialmente em autores como Bruni, Guicciardini, Salutati e Maquiavel, chegou a afirmar que, sem "os valores de vita activa et politica dos cidadâos gregos e romanos", o humanismo cívico italiano poderia "nunca existir".
Em Fundaçöes do Pensamento Político Moderno, publicado em 1979, Quentin Skinner, contestando as teses de Baron e Pocock, passou a deslocar a enfase na influencia dos gregos para a influencia dos historiadores e moralistas romanos na configuraçâo do humanismo cívico. Posteriormente, ele evidenciou de maneira mais clara como autores de uma ideologia pré-humanista, os dictatores, já apresentavam um ideario político republicano "pelo menos uma geraçâo antes da disponibilidade dos textos aristotélicos", ideario que mantiveram virtualmente inalterado em períodos posteriores. Os classicos romanos eram os principais referenciais teóricos dos dictatores, em especial o livro De Officiis, de Cícero. Foi diretamente dessa origem, segundo Skinner, que o republicanismo de Maquiavel, Guicciardini e seus contemporáneos descendeu nos séculos seguintes. "A teoria política da Renascença", conclui o autor, possui "um débito muito mais profundo com Roma do que com a Grécia" (SKINNER, 2003, p. 92).
Quer seja sua origem grega ou romana, em muitos aspectos o republicanismo renascentista reproduziu e adaptou valores típicos da Antiguidade: o patriotismo, a liberdade, o militarismo, a preocupaçâo com o facciosismo, e o apego pela ordem, pela virtude, pela vida ativa e pela constituiçâo mista. E ainda que haja uma referencia clara as glórias do mundo pagâo, o cristianismo, em sua doutrina moral católica, tornou-se uma importante rede de crenças que se uniu de maneira particular e seletiva aos valores do humanismo - como pode ser visto na influencia de Agostinho em pensadores como Petrarca. Já no ámbito institucional, a maior inovaçâo do republicanismo renascentista é também a mais aristocratizante: o governo stretto. Definido como uma mistura constitucional que negava ao povo sua parte na clássica tríade romana, esse modelo, apontado pelos seus ideólogos como o mais ordeiro, era comumente atribuído as repúblicas de Veneza e Esparta, e teve em Guicciardini seu mais notável defensor (POCOCK, 1975).
Mas o republicanismo moderno possui mais rupturas com a tradiçâo classica do que suas manifestaçoes renascentistas, ainda que importantes continuidades assegurem a existencia da tradiçâo. John Pocock estende sua história dos valores da vida ativa para o mundo anglófono. Mesmo na era do Leviatá, a noçao inglesa de cidadania nao poderia surgir simplesmente do conceito de racionalidade que marcaría o período moderno. "Razáo e experiencia sozinhos", afirma Pocock (1975, p. 335), "nunca poderiam prover bases para caracterizar os individuos como cidadáos". Isso somente poderia acontecer com o renascimento das antigas noçoes políticas de virtus e zoon politikon, os alicerces da "ideologia da vita activa", cuja "natureza era governar, agir e tomar decisóes" (POCOCK, 1975, p. 335). Os republicanos ingleses do século XVII, em especial James Harrington, eram herdeiros dessa tradiçâo que, no século seguinte, viria a atravessar o oceano e levar o "momento maquiaveliano" aos Estados Unidos da América - em proximidade interpretativa com as análises de historiadores como Bernard Bailyn (1967) e Gordon Wood (1969) sobre a revoluçao americana e a fundaçao dos Estados Unidos.
O republicanismo ingles introduziu na rede de crenças da tradiçâo algumas ideias tipicamente modernas e até entáo estranhas a formulaçao clássica, como: contrato social, direito natural e representaçao (ZUCKERT, 1994). As principais transformaç0es do ideário republicano nesse período ocorreram em suas vias institucionais, coetáneas das referidas inovaç0es conceituais. A constituiçâo mista, que assumia feiç0es societais e corporativas na Antiguidade e na Renascença, foi adaptada e interpretada como expressáo de uma divisáo funcional de poderes. Além disso, o recém-inaugurado conceito de representaçao modificou a relaçao entre o povo e as elites políticas nos regimes republicanos.
Contemporánea a expansáo da tradiçâo para a América, uma nova versáo continental do republicanismo começou a se desenvolver por meio da poderosa imaginaçâo teórica de Rousseau (1989). Enquanto nos Estados Unidos, principalmente com os Federalist Papers, os elementos herdados foram adaptados a uma nova realidade social que se impunha mediante a ascensáo das sociedades comerciais - assumindo a linguagem dos interesses -, com o filósofo genebrino, que claramente se via como um neorromano, a ancestral retórica da virtude foi reafirmada em face dos emergentes desafios do mundo moderno e comercial. Com essa tensáo, Rousseau optou por se agarrar aos antigos valores do republicanismo, ao mesmo tempo em que adaptava a sua herança através de um rearranjo inovador que incorporasse direitos fundamentais a rede de crença da tradiçâo. A igualdade, que aos poucos se tornou um valor mais periférico para algumas vertentes, também assumiu centralidade na teoria de Rousseau, tornando-se nâo um antónimo da liberdade, mas condiçâo indispensável para a sua realizaçâo. O republicanismo continental de Rousseau é até mesmo mais fiel aos valores do patriotismo, da virtude cívica e da igualdade do que as outras ramificaçoes da tradiçâo, mas em suas adaptaçoes também se desfez de algumas engrenagens importantes. O resultado foi um tipo particular de republicanismo, do qual trataremos a seguir.
5O critério nacional
Para além de uma análise centrada nas épocas em que as diversas vertentes do republicanismo vieram a se manifestar, dando ensejo a distinçâo entre os republicanismos antigo, renascentista e moderno, as vinculaçoes territoriais e culturais da tradiçâo tem também servido de contexto para firmar taxonomías de caráter nacional. Assim, é comum referencias aos republicanismos italiano, holandés, ingles, francés, americano etc. Esse critério nâo diminui, evidentemente, a importancia do critério com base no contexto histórico no qual as ideias foram articuladas. As vertentes nacionais do republicanismo nâo estâo imunes a interferencia externa e normalmente sâo influenciadas pelas suas versóes extranacionais predecessoras. As interpretaç0es que mobilizam critérios nacionais nâo buscam reivindicar sua completa independencia ou autossuficiéncia em relaçâo a tradiçâo, mas demonstrar como, por razóes específicas de determinadas regióes, algumas vertentes do republicanismo acabaram desenvolvendo caminhos inexplorados pelos seus antecessores e por contemporáneos de outras nacionalidades. Sem perder o sentido de continuidade necessário ao conceito de tradiçâo, esses agentes adaptaram as crenças republicanas para a realidade local, tornando possível a criaçâo de classificaç0es tipicamente nacionais da tradiçâo.
No entanto, esse critério só faz sentido a partir da Modernidade. Antes disso, o republicanismo foi um fenómeno relativamente raro. Seu universo de crenças nâo se expandiu de maneira significativa a outros territórios além de algumas cidades gregas e de Roma. Nâo há distinçâo relevante entre as classificaçoes histórico-genéticas e nacionais durante a Antiguidade. É na era das revoluçoes modernas que as diferenciaçoes nacionais começaram a aparecer, com o surgimento de tantos republicanismos quantas foram as circunstancias em que os valores modernos confrontaram-se com a ordem aristocrática. Nos casos em que nao havia uma ordem aristocrática interna a combater, a articulaçao do discurso republicano voltava-se a combater o poder arbitrário metropolitano e patrocinar movimentos de emancipaçao nacional, como ocorreu na segunda metade do século XVIII nos Estados Unidos e em tantos outros países das Américas.
Se há uma clara linha de continuidade entre os republicanismos italiano, ingles e americano, para os quais os modelos da Antiguidade sao fontes de inspiraçao e mesmo de imitaçao, essa continuidade se torna mais problemática no contexto da experiencia francesa. Até Montesquieu, apesar de suas particularidades, o republicanismo francés guardava muitas aproximaçoes com outras subdivisóes modernas: a divisao dos poderes e o caráter central da virtude na fundaçao de uma boa república sao dois pontos bem ilustrativos na obra do Barao. "Todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites" (MONTESQUIEU, 2005, p. 166). Apenas o poder é capaz de impor limites ao poder. Assim, Montesquieu se propôs a reinterpretar os ordenamentos políticos nao mais se baseando na clássica tipologia aristotélica das formas de governo, mas em como o poder executivo, o legislativo e o que denominou "poder de julgar" se distribuiam nas diferentes instituiç0es políticas de cada naçao. A liberdade residia no equilibrio dessa tripartiçao - na capacidade de limitar o poder.
Posteriormente, no entanto, é possivel observar a influencia do absolutismo nas formulaç0es republicanas. O pensamento político de Rousseau, inegavelmente devedor do léxico das virtudes, abandona o clássico conceito de constituiçao mista e o ideal da dispersao de poder em benefício de uma visao do poder soberano como uma vontade una, indivisível e intransferível. É evidente o débito de Rousseau para com pensadores absolutistas como Bodin e Hobbes (PETTIT, 2013). Nao obstante a importante diferença de situar no povo, e nao no monarca, o sujeito da soberania, Rousseau compartilha com seus antecessores absolutistas um profundo desprezo pela tradiçao da constituiçao mista. As proposiç0es de divisao e mistura constitucional sao comparadas a um homem constituido por partes de varios corpos de outros homens, "um dos quais tivesse olhos, outro braços, outro pés, e nada mais": prestidigitaçao, "passes de mágica", afirma Rousseau (1989, p. 35), que buscam dar vida a um "ser fantástico" na forma de um corpo mal remendado. Essa construçao unitaria do corpo político foi a mais destacada ruptura do republicanismo francés com a tradiçâo romana, manifestando-se fortemente em formulaçoes revolucionarias posteriores. O jacobinismo e seu principal porta-voz, Robespierre, sao herdeiros radicalizadores dessa visâo da política. Perturbando o idilio rousseauniano com a retórica do terror, que se uniu de maneira incomum com o vocabulário das virtudes, o anseio da indivisibilidade do corpo social chegou ao limite da eliminaçâo de qualquer pluralidade4. Como aponta Bignotto (2013, p. 175), "[...] muitas das ideias que sao até hoje consideradas heranças do republicanismo francés nâo encontram correspondentes em outros países e guardam as marcas da particularidade da história de sua pátria de origem". O republicanismo, um tanto paradoxalmente, abraçou a influéncia do absolutismo, uma herança advinda da própria ordem que tentou derrubar. É na consideraçâo de particularidades dessa natureza que o critério nacional de classificaçâo da tradiçâo republicana exerce todo seu potencial elucidativo.
A matriz francesa foi utilizada para ilustrar as particularidades nacionais em uma tradiçâo tâo longeva, mas o exame das vicissitudes da tradiçâo republicana em outros países poderia ser igualmente esclarecedor. A força de Calvino no republicanismo holandés do século XVI (VAN GELDEREN, 1992), a posterior tentativa - entâo inédita -, no mesmo país, de transpor o ideario republicano as emergentes sociedades comerciais (WESTSTEIJN, 2012), bem como o republicanismo antimonárquico da nobreza da Polónia (GRZESKOWIAK-KRWAWICZ, 2002) e até mesmo sua nao desprezível influéncia no Iluminismo Escocés (GEUNA, 2002), sao apenas alguns dos possíveis exemplos de como as peculiaridades locais podem transformar as crenças de uma tradiçâo.
6O critério socioconflitual
Vale concluir essa breve discussáo sobre a tradiçâo republicana e suas diferentes apropriaçoes chamando a atençâo para uma derradeira estrategia de classificaçâo, esta derivada da dupla inovaçâo introduzida por Maquiavel no ámbito da tradiçâo. Por um lado, o pensador florentino elabora a tese de que o conflito social, longe de produzir a ruina das cidades, consiste na "causa primeira" da grandeza e da liberdade das repúblicas. Entre a virtude ciceroniana da concordia e a realidade tumultuosa da república romana, Maquiavel opta pela segunda. Por outro lado, abandonando o acento aristocrático do modelo da constituiçâo mista preferido por seus antecessores e contemporáneos, ele se inclina a uma mistura constitucional que atribui ao povo a guarda da liberdade, inaugurando o modelo que se denominou em trabalho recente de "constituiçâo mista plebeia" (ARAUJO, 2013). Faz-se importante ressaltar que a interpretaçâo utilizada por historiadores contemporáneos distinguindo dois modelos institucionais republicanos, um aristocrático e o outro plebeu, é uma invençâo atribuida a Maquiavel, o que lhe confere o titulo de inaugurador do critério socioconflitual. Conforme demonstra Gabriele Pedulla (2017), a contraposiçâo - e até mesmo incompatibilidade - entre o paradigma romano e o veneziano nâo existia antes dos escritos do florentino, sendo mais uma das ideias que a tradiçâo republicana deve aos Discorsi. Sobretudo nesta obra sobre a república romana, Pedulla (2018) observa a inovadora contribuiçâo de Maquiavel, que marca a origem da teoria politica do "conflitualismo politico". Mas nâo deve escapar aos intérpretes do florentino o fato de que a tese da inevitabilidade da divisâo sociopolítica entre os grandes e o povo atravessa toda a sua obra. Ela é anterior, como se le no capitulo IX de O Príncipe, a propria definiçâo da forma política das cidades. Quer se trate de uma ordem republicana, de uma ordem monárquica ou mesmo da completa ausencia de ordem, como numa situaçâo de licenciosidade ou anarquia, a divisâo social antecede logicamente a forma de governo. É na ordem republicana, contudo, que Maquiavel vislumbra a possibilidade de efeitos benéficos ao bom governo e a liberdade derivados do conflito.
Há dois critérios com posiçoes antitéticas nas interpretaçoes socioconflituais. O primeiro, como supramencionado, é a composiçâo sociológica da constituiçâo da república. Inclui-se nessa disputa o papel desempenhado pela plebe na dispersáo de poder, podendo se estender gradativamente da ausencia total do componente popular até a sua presença como força protagonista dos humores e dos negócios da cidade. Outro componente fundamental da interpretaçâo diz respeito a natureza do conflito e a suas consequencias - boas ou nefastas - para a grandeza da república, dividindo a tradiçâo entre os partidarios intransigentes da concórdia e aqueles que enxergavam beneficios no conflito institucionalmente canalizado.
O mais conhecido representante clássico do lado aristocrático da balança foi Marco Túlio Cicero. A constituiçâo mista defendida pelo romano era inteiramente vinculada a ideia de concórdia. Utilizando a República de seus antepassados como modelo - ou como ele acreditava que ela havia sido -, Cicero desenvolveu uma constituiçâo mista cujas ordens sociais devem desempenhar, de forma totalmente harmoniosa, os papéis previamente estabelecidos. A imagem criada, claramente platónica, afirma que "tal como tocar lira e flauta", nos negócios politicos deve-se entrecruzar "as ordens sociais mais altas com as mais baixas e as médias". Dessa maneira, "[...] uma cidade canta a uma só voz, com o consenso dos mais diferentes elementos" (CICERO, 2008, p. 158). Essa característica da concordia ordinum ciceroniana carrega consigo certo pendor aristocrático, pois em tal divisâo harmoniosa a aristocracia ficaria responsável por parte preponderante do bolo: isso se refletiria, por exemplo, no protagonismo concedido ao senado, apresentado como órgáo responsável pelo consilium da República (LAUREANO, 2020), ou na defesa entusiástica dos comitia centuriata, um sistema censitário de sufrágio (LINTOTT, 1999). No entanto, o apelo pela ordem em sua obra também possui uma motivaçâo contextual. Ainda que o passado glorioso da República Romana tenha sido marcado por conflitos militares e politicos, o mundo em que Cicero vivia era dominado por um facciosismo deletério, responsável, em sua interpretaçâo, por levar a República a ruina. Uma das intençoes de De Re Pvblica era devolver a pátria romana ao seu passado grandioso. A concórdia, que sozinha seria incapaz de resolver todos os problemas, certamente fazia parte da soluçâo ciceroniana.
Mas ainda que os intérpretes do critério socioconflitual constantemente apresentem Cicero como representante da vertente aristocrática da tradiçao, ele nunca defendeu a exclusáo da plebe dos negócios da cidade ou favoreceu o fechamento da cidadania. Na verdade, em De Legibus chega a reforçar a necessidade do tribunato da plebe (CÍCERO, 1999). O governo stretto, como ficou posteriormente conhecido, é uma invençao renascentista. A posiçao ciceroniana em prol da concórdia foi quase universal entre os humanistas cívicos, estimulados pelo lema pax et concordia (SKINNER, 2003). A defesa do governo stretto, cujo principal articulador seria Francesco Guicciardini, foi fortemente pautada nas instituiçoes venezianas. A Serenissima possuía uma constituiçao mista que até contava com um Grande Conselho, mas cujo acesso havia sido encerrado há muito tempo, tornando a cidadania "um atributo hereditário" e limitando-a "a um número fixo de familias" (ARAUJO, 2013, p. 67). Dessa maneira, mesmo o mais amplo Conselho da República de Veneza acabava sendo composto por uma aristocracia fechada.
Maquiavel era um critico do governo stretto. Tentando retirar da nobreza florentina o temor que ela tinha do povo, ele buscou demonstrar como o conflito ordinário entre os diferentes humores da cidade, canalizado por vias institucionais, teria levado Roma a grandeza e a liberdade. Para Maquiavel os tumultos gerados pela desuniáo entre a plebe e os grandi, tristemente regados a sangue em Florença, sua terra natal, costumavam ser uma frutífera fonte de criaçâo de leis em sua Roma ideal. A diferença residia nos meios institucionais que o povo romano tinha para canalizar e dar vazao a sua indignaçao, acusando e julgando publicamente os poderosos insolentes sem a necessidade de violencia física. Para tanto, foi preciso que o povo tivesse participaçao no governo e a guarda da liberdade da cidade. Apesar - ou talvez por causa! - da notável originalidade do republicanismo de Maquiavel, o posicionamento do florentino nao pode ser lido como o mais representativo do republicanismo renascentista. Entre seus contemporáneos e antecessores predominava uma profunda desconfiança da participaçao popular, especialmente da participaçao da plebe e do popolo minuto, além de um evidente ceticismo acerca da capacidade de julgamento dos nao nobres (ignobili). O autor compreendia esse vezo oligárquico, agravado pela desigualdade material derivada do enriquecimento desmedido de determinadas famílias florentinas, como a fonte principal da instabilidade e da corrupçao em Florença (SILVA, 2020). Seja como for, a influencia de Maquiavel estava fadada a crescer a medida que a Modernidade se aprofundava na era da democratizaçâo.
Hoje, a disputa normativa pelo significado do conceito emergente de "democracia republicana" é, ao mesmo tempo, uma disputa pelo significado histórico do republicanismo do mestre florentino (SILVA, 2015b). A crítica de John McCormick a Skinner e Pocock, para citar um exemplo, é fundada no critério interpretativo socioconflitual. Embora a ruptura de Maquiavel em relaçâo aos seus antecessores nao seja completamente negligenciada pela Escola de Cambridge, McCormick argumenta que o caráter popular-conflitual do autor florentino foi sucessivamente minimizado. A tradiçâo destacada por esses intérpretes estaria mais próxima do republicanismo aristocrático de Cicero e Guicciardini, além de alheia ao populismo democrático e ao caráter socioeconómico da crítica dirigida por Maquiavel aos seus contemporáneos. Por essa razâo - e nao sem ironia -, McCormick afirma que o livro de Pocock seria mais fiel ao seu conteúdo se fosse intitulado "the guicciardinian moment" (MCCORMICK, 2011, p. 10). O núcleo do ensinamento republicano de Maquiavel estaria nao apenas no reconhecimento da inevitabilidade do conflito entre o povo e os grandes mas, sobretudo, na valorizaçâo das instituiçoes de expressâo dos umori do povo, a exemplo dos tribunos da plebe romana.
A distinçâo entre duas faces da tradiçâo republicana - uma popular, outra aristocrática - tornou-se mais relevante a partir da segunda metade do século XX, quando a democracia, definida como o governo sob controle popular, assumiu o status de um "valor universal". Vale dizer, a legitimidade da tradiçâo republicana passou a depender de seu sucesso em incorporar as demandas democráticas da contemporaneidade. E é esse imperativo de democratizaçâo que explica, em grande medida, o renovado interesse no republicanismo de Maquiavel, indubitavelmente o pensador mais inclinado a defesa do acento democrático e popular das repúblicas em toda a história da tradiçâo republicana.
7Consideraçöes finais
Neste artigo procuramos apresentar sucintamente alguns dos principais modelos de interpretaçâo da tradiçâo de pensamento político republicano. Partimos de um conceito heurístico de tradiçâo como redes de crenças que se transmitem de uma geraçâo a outra por meio de conexóes temporais e conceituais. Diferentemente dos enquadramentos conservadores do conceito, que compreendem as tradiçoes como entidades fixas, postulamos a visáo das tradiçoes como redes de crenças que se transformam ao longo do tempo, tanto em funçao das injunçoes dos contextos históricos nos quais sao ativadas quanto, sobretudo, devido as inovaçoes introduzidas pelo trabalho de interpretaçao das geraçoes futuras de adeptos.
Sem prejuízo de outros possíveis modelos de classificaçao da longa e complexa tradiçao republicana, apresentamos as linhas gerais daqueles que consideramos os tres principais modelos: o genealógico, o nacional e o socioconflitual. O primeiro modelo observou-se nas disputas sobre o momento fundacional da tradiçao, quer enfatizando a contribuiçao das cidades gregas, quer preferindo a república romana. O segundo destacou os problemas e dilemas específicos de cada contexto nacional em que os princípios e valores do republicanismo foram postos em prática, o que justifica referirmo-nos a republicanismos grego, romano, italiano, ingles, holandés, francés, americano etc. O terceiro, derivado de recepçoes contemporáneas da contribuiçao original de Maquiavel, compreende a tradiçao republicana dividida entre dois eixos principais, o aristocrático e o democrático. Embora ao eixo aristocrático esteja filiada a maior parte da tradiçao republicana clássica - e ainda que esse eixo estruture boa parte do republicanismo contemporáneo - nao há como ignorar que a viabilidade do neorrepublicanismo, como programa de pesquisas ou como filosofia pública, passa pela recepçao criativa e pela reativaçao da herança republicana-democrática legada por Maquiavel.
Um desiderato possível de nossa identificaçao dessas diferentes taxonomías da tradiçao republicana seria alguma tentativa de síntese entre elas. Nao foi este, porém, nosso objetivo. Devido a complexidade e a heterogeneidade do republicanismo, tal síntese resultaria, na melhor das hipóteses, em mais uma estratégia de classificaçao, pronta para ser contestada por sua própria parcialidade. Tampouco ocorreu-nos a pretensao de reduzir a pluralidade das vertentes do republicanismo a denominadores comuns representados por ideais e conceitos unanimemente aceitos por todas as vertentes. Tal tipo de síntese, se possível, resultaria em um esquema conceitual extremamente restritivo, uma vez que a maior parte dos conceitos centrais em uma vertente sao considerados periféricos ou mesmo inaceitáveis a outras. Em alguns casos, as desavenças tém enraizamentos teóricos profundos. Como conciliar, por exemplo, o conceito de constituiçâo mista e o ideal da dispersáo de poder, táo caro a tradiçâo atlântico-italiana do republicanismo, com o ideal de uma soberanía popular assentada em uma vontade geral que nâo admite divisóes, como se ve na tradiçâo republicana inaugurada por Rousseau? Nâo se trata de negar a existencia de importantes afinidades entre pensadores republicanos de diferentes filia&ecedil;óes, mas de optar pelo procedimento, mais histórico e menos puramente conceitual, de "abrir a caixa preta" das grandes tradi&ecedil;óes de pensamento, revelando a diversidade interna, bem como a natureza temporal, contingente e contestada dessas tradi&ecedil;óes.
Direito autoral e licença de uso: Este artigo está licenciado sob uma Licença Creative Commons. Com essa licença voce pode compartilhar, adaptar, para qualquer fim, desde que atribua a autoria da obra, forneça um link para a licença, e indicar se foram feitas alteraçöes.
3 Inclui-se, nessa interpretaçao, além de historiadores e moralistas romanos como Salústio, Tito Lívio e Cicero, o historiador grego Políbio. Apesar de sua origem, o autor viveu em Roma e produziu suas obras específicamente sobre o mundo romano.
4 Com isso, nao se pretende afirmar que essa tenha sido a intençao original de Rousseau, ou a consequéncia natural de suas ideias. Buscamos apenas apontar as implicaçöes políticas e institucionais do conceito de soberanía da vertente francesa do republicanismo inspirada em Rousseau.
Referencias
ARAUJO, C. R. R. de. A forma da república: da constituiçâo mista ao Estado. Sâo Paulo: Martins Fontes, 2013.
BARON, H. The crisis of the early Italian Renaissance: civic humanism and republic liberty in an age of classicism and tyranny. New Jersey: Princeton University Press, 1966.
BAILYN, B. The ideological origins ofthe American Revolution. Cambridge: Harvard University Press, 1967.
BERLIN, I. Dois conceitos de liberdade. In: HARDY, H.; HAUSHEER, R. (org.). Isaiah Berlin: estudos sobre a humanidade. Traduçâo de Rosaura Eichenberg. Sâo Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 226-272.
BEVIR, M. On tradition. Humanitas, v. XIII, n. 2, p. 28-53, 2000.
BEVIR, M. A lógica da história das ideias. Traduçâo de Gilson Cesar Cardoso de Souza. Bauru: EDUSC, 2008.
BIGNOTTO, N. Matrizes do republicanismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
BURKE, E. Miscellaneous writings. Indianapolis: Liberty Found, 1999.
CICERO, M. T. Tratado da República. Traduçâo de Francisco de Oliveira. Sâo Paulo: Círculo de Leitores, 2008.
CICERO, M. T. On the commonwealth and on the laws. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
EDMONDS, D; WARBURTON, N. Philip Pettit on republicanism. Philosophy Bites (podcast). Disponível em: http://philosophybites.com/2012/04/philip-pettit-on-republicanism.html. Acesso em: 4 jun. 2018.
GREEN, J. E. On the difference between a pupil and a historian of ideas. Journal of the Philosophy of History, v. 6, n. 1, p. 84-110, 2012.
GREEN, J. E. Political theory as both philosophy and history: a defense against methodological militancy. Annual Review of Political Science, v. 18, p. 425-441, 2015.
GRZESKOWIAK-KRWAWICZ, A. Anti-monarchism in Polish republicanism in the Seventeenth and Eighteenth centuries. In: VAN GELD EREN, Martin; SKINNER, Quentin (ed.). Republicanism: a shared European heritage. v. 1: Republicanism and constitutionalism in early modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p. 43-59.
GEUNA, M. Republicanism and Commercial Society in the Scottish Enlightenment: The Case of Adam Ferguson. In: VAN GELDEREN, Martin; SKINNER, Quentin (ed.). Republicanism: a shared European heritage. v. 1: Republicanism and constitutionalism in early modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p. 177-196.
JAEGER, W. Paidéia: a formaçâo do homem grego. Traduçâo de Arthur Parreira. Sâo Paulo: Martins Fontes, 1995.
KAPUST, D. Skinner, Pettit and Livy: the conflict of the orders and the ambiguity of republican liberty. History of Political Thought, v. 25, n. 3, p. 378- 401, 2004.
LAUREANO, R. A definiçâo de res publica em Cicero: legitimidade, uso da força e constituiçâo mista no conceito que fundou uma tradiçâo. Revista Brasileira de Ciencia Política, n. 33, 2020. Disponivel em: https://www.scielo.br/j/rbcpol/a/JqfWTT6YmqRVDrqTCkjLz7p/?lang=pt. Acesso em: 10 jan. 2021.
LINTOTT, A. The constitution of the Roman Republic. Oxford: Claredon Press, 1999.
MCCORMICK, J. P Machiavellian democracy. New York: Cambridge University Press, 2011.
MONTESQUIEU. O espirito das leis. Traduçâo de Cristina Murachco. Sâo Paulo: Martins Fontes, 2005.
PEDULLA, G. Machiavelli and the critics of Rome: rereading Discourses I.4. In: JOHNSTON, D.; URBINATI, N.; VERGARA, C. (ed.). Machiavelli on liberty and conflict. Chicago: The University of Chicago Press, 2017. p. 87-112.
PEDULLA, G. Machiavelli in Tumult: The Discourses on Livy and the origins of political conflictualism. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.
PETTIT, P. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford University Press, 1997.
PETTIT, P On the people's terms: a republican theory and model of democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
PETTIT, P Two republican traditions. In: NIEDERBERGER, Andreas; SCHINK, Philipp (ed.). Republican democracy: liberty, law and politics. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2013, p. 169-204.
PETTIT, P.; LOVETT, F. Neorepublicanism: a normative and institutional research program. Annual Review of Political Science, v. 12, p. 11-29, 2009.
PETTIT, P; MARTÍ, J. L. A political philosophy in public life: civic republicanism in Zapateros Spain. Princeton: Princeton University Press, 2010.
POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and Atlantic republican tradition. Princeton: Princeton University Press, 1975.
POCOCK, J. G. A. Time, institutions and action: an essay on traditions and their understanding. In: POCOCK, J. G. A. Political thought and history: essays on method and theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 187-216.
SILVA, R. Liberdade e lei no neo-republicanismo de Skinner e Pettit. Lua Nova, n. 74, p.151-194, 2008.
SILVA, R. Visoes da liberdade: republicanismo e liberalismo no debate teórico contemporáneo. Lua Nova, n. 94, p. 181-215, 2015a.
SILVA, R. Non-domination and political institutions: the contested concept of republican democracy. Brazilian Political Science Review, v. 9, p. 3-38, 2015b.
SILVA, R. Desigualdade e corrupçâo no republicanismo de Maquiavel. Dados, v. 63, n. 3, p. 1-37, 2020.
SKINNER, Q. Liberdade antes do liberalismo. Traduçâo de Raul Fiker. Sâo Paulo: Editora Unesp, 1999.
SKINNER, Q. As fundaçoes do pensamento político moderno. Traduçâo de Renato Janine Riberiro e Laura Teixeira Motta. Sâo Paulo: Companhia das Letras, 2003.
ROUSSEAU, J-J. O contrato social: principios do direito político. Traduçâo de Antonio de Pádua Danesi. Sâo Paulo: Martins Fontes, 1989.
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Traduçâo de Mário da Gama Kury. Brasilia: Editora UnB, 2001.
URBINATI, N. Competing for liberty: the republican critique of democracy. American Political Science Review, v. 106, n. 3, p. 607-621, 2012.
VAN GELDEREN, M. The political thought of the Dutch revolt. 1555-1590. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.
WESTSTEIJN, A. Commercial republicanism in the Dutch golden age: the political thought of Johan & Pieter de La Court. Leiden: Brill, 2012.
WIRSZUBSKI, C. Libertas as a political idea at Rome during the late republic and the early principate. Cambridge: Cambridge University Press, 1950.
WOOD, G. S. The creation of the American republic, 1776-1787. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1969.
ZUCKERT, M. Natural Rights and The New Republicanism. Princeton: Princeton University Press, 1994.
Recebido em 18/01/2021
Aprovado em 09/03/2021
You have requested "on-the-fly" machine translation of selected content from our databases. This functionality is provided solely for your convenience and is in no way intended to replace human translation. Show full disclaimer
Neither ProQuest nor its licensors make any representations or warranties with respect to the translations. The translations are automatically generated "AS IS" and "AS AVAILABLE" and are not retained in our systems. PROQUEST AND ITS LICENSORS SPECIFICALLY DISCLAIM ANY AND ALL EXPRESS OR IMPLIED WARRANTIES, INCLUDING WITHOUT LIMITATION, ANY WARRANTIES FOR AVAILABILITY, ACCURACY, TIMELINESS, COMPLETENESS, NON-INFRINGMENT, MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR A PARTICULAR PURPOSE. Your use of the translations is subject to all use restrictions contained in your Electronic Products License Agreement and by using the translation functionality you agree to forgo any and all claims against ProQuest or its licensors for your use of the translation functionality and any output derived there from. Hide full disclaimer
© 2021. This work is published under https://creativecommons.org/licenses/by/4.0 (the “License”). Notwithstanding the ProQuest Terms and Conditions, you may use this content in accordance with the terms of the License.
Abstract
O objetivo deste artigo é apresentar alguns dos principais modelos de interpretaçâo histórica da tradiçâo republicana. Partindo de um conceito heurístico de tradiçâo que busca compreender como as ideias se transmitem e se modificam de geraçâo para geraçâo, focamos nossa análise em tres critérios distintos utilizados para interpretar o republicanismo: I) o critério genealógico, centrado principalmente nas origens da tradiçâo e nos valores decorrentes desse caráter fundacional; 2) o nacional, que busca enfatizar os dilemas e os contextos distintos do republicanismo em cada naçâo; 3) e o socioconflitual, cujo foco se concentra na dimensâo sociológica da tradiçâo, dividindo o republicanismo em dois eixos principais, o aristocrático e o democrático.