Resumo
O presente artigo tem co mo objetivo apresentar a discussao acerca da figura do ciborgue dentro da literatura afrofuturista, a partir dos romances do escritor Fabio Kabral. Em O Ca^ador Cibernetico da Rua Treze e Cientista Guerreira do Facdo Furioso, o ciborgue se materializa na figura dos protagonistas Joao Arole e Jamila Olabamji, representando a ideia de fragmentaqao do sujeito. Desta forma, abordaremos as formas de ressignificaqao do sujeito a partir da religiosidade e do enfrentamento da logica capitalista, esta que busca, no contexto das narrativas, corroer a identidade e subjetividade do sujeito.
Palavras-chave: Afrofuturismo; Ciborgue; Subjetividade; Fabio Kabral
Abstract
This article aims to present the discussion about the figure of the cyborg within Afrofuturist literature, based on the narrative of the writer Fabio Kabral. In O Cacador Cibernetico da Rua Treze and A Cientista Guerreira do Facdo Furioso, the cyborg materializes in the figure of the protagonists Joao Arole and Jamila Olabamji, representing the idea of fragmentation of the subject. In this way, we will address the forms of re-signification of the subject based on religiosity and the confrontation of capitalist logic.
Keywords: Afrofuturism; Cyborg; Subjectivity; Fabio Kabral
Introdu^ao
O afrofuturismo e um movimento literario, estetico, artlstico e cultural que nasce do encontro entre tecnologia e ficcao especulativa - as quais se enlrelacam com a historia do povo africano antes e depois da diaspora - podendo se envere-dar pela ficcao cientifica, fantasia, horror, realismo magico, mitologia, ciberpunk, entre outros. Este movimento propoe redirecionar nosso olhar para a historia numa perspectiva afrocentrica, em que mulheres e homens negros sao protagonistas de suas narrativas, expressoes, manifeslacdes.
O termo afrofuturismo surge a partir de uma entrevista do critico cultural Mark Dery, em seu ensaio "Black to the future" (1994) - apesar de o movimento afrofuturista existir antes mesmo de receber esta terminologia - com pensadores negros americanos, como o escritor de ficcao cientifica Samuel Delany, o critico cultural Greg Tate e a professora de Estudos Africanos Tricia Rose. Nesta conversa, houve o questionamento sobre a escassez de escritores afro-americanos no campo da ficcao cientifica, afinal, esse genero literario permite o encontro com o desconhecido, (a escravidao fez com que os negros africanos fossem arrancados de sua terra e levados a terras estranhas, que ate entao lhes eram desconhecidos) algo que parecia ser interessante para tratar as questoes que envolviam as experiencias de escritores afro-americanos.
A literatura afrofuturista utilizara algumas categorias proprias da ficcao cientifica, mas sob a perspectiva do protagonismo negro, como estranhamento, tecnologia, utopia, distopia, viagens no tempo, temporalidade, mente humana. Contudo, abordaremos somente a ideia de estranhamento, pois ela esta inserida nos romances O Cacador Cibernetico da Rua Treze (2017) e A Cientista Guerreira do Facao Furioso (2019) do escritor Fabio Kabral, obras que sao objetos de reflexao deste artigo. Podemos entender como estranhamento o distanciamento do homem com uma realidade concreta; e na ficcao, do personagem com a realidade ficcional. O estranhamento, entao, e a tensao entre o conhecido e o desconhecido. No afrofuturismo este estranhamento, que se manifesta atraves de figures como alienigenas, zumbis, robos, ciborgues nos permite refletir sobre o estranhamento do sujeito negro com a realidade e a sociedade em que esta inserido.
O rapto dos povos africanos para um mundo em que seriam escravizados e desumanizados traz em seu bojo esta ideia do estranhamento: o homem, que ate entao era livre, depara-se com em uma nova condican. Dentro desta otica, temos o reforco deste estranhamento, pois esse homem agora escravizado e obrigado a ser rebatizado, e forcado a adquirir uma nova identidade, tern sua cultura atravessada, seus lacos familiares desfeitos, ou seja, tudo o que o conectava a condicao de liberdade que outrora tivera se dilui neste novo mundo. Assim, podemos dizer que temos uma polencializacao do estranhamento, isto e, um duplo estranhamento, pois este homem escravizado se torna estranho ao ser retirado de sua terra e novamente estranho ao ser levado a adotar nova forma de ser existir.
Essas formas de estranhamento aparecerao na literatura afrofuturista. Fabio Kabral abarca esta ideia de estranhamento mostrando seu impacto na vida dos individuos negros, o que ocasionara na fragmenlacao do sujeito. Porem, o autor revela que e posslvel romper com esta logica por meio do contato com a religiosidade e com uma ancestralidade africana.
Nas obras O Cacador Cibernetico da Rua Treze e A Cientista Guerreira do Facao Furioso, Fabio Kabral utiliza a figura do ciborgue para criticar que uma sociedade pautada por valores eurocentricos fragmenta a subjetividade e identidade do individuo negro, tornando-se necessario a conexao com tecnologias ancestrais para reconstruir essas formas de ser e de existir.
A escritora americana Octavia Butler, na obra Despertar (2018), contempla a no^ao de estranhamento a partir da figure do homem em contato com o alienigena. Nesta narrativa, a Terra foi devastada apos uma guerra nuclear ficando a beira da extin^ao. Os poucos humanos que restaram foram abduzidos pelos aliens e passaram a viver em sua nave, porem, os humanos estao em hiberna^ao por quase 250 anos, quando a personagem Lillith lyapo, mulher negra, que e a primeira a ser despertada pelos alienigenas, tern como missao despertar os outros humanos. Eles precisam aprender a conviver com os aliens enquanto a Terra esta sendo reconstruida por essas figures, que tern inten^oes para alem de ajudar os humanos. Esta rela^ao entre os alienigenas e os humanos causa este estranhamento. Os primeiros detem toda tecnologia e conhecimento, o segundo precisa entender que o mundo em que viviam antes nao existe mais. Enquanto os aliens precisam dos humanos para criar novas especies, os humanos precisam dos aliens para sobrevier. Mas para que sobrevier em um mundo totalmente desconhecido? Qual a vantagem de retornar para uma Terra totalmente desconhecida? E porque uma mulher negra foi escolhida para despertar todos os outros individuos? Estas sao premissas que servem para nortear esta ideia de estranhamento presente na narrativa de Butler.
Novamente no livro O Cacador Cibernetico da Rua Treze, Kabral inicia mostrando que as naves alienigenas arrancaram os povos do Mundo Original levando-os para o Mundo Novo, contudo os alienigenas foram derrotados. Logo, ele mostra este estranhamento a partir da saida forcada do povo africano de seu continente para outras terras.
Se olharmos para a escritora Lu Ai-Zaila1, esta no^ao de estranhamento, especificamente no conto Ode a Laudelina, sera levada para o campo da rela^ao da mulher negra com o seu corpo, suscitando a discussao sobre como o corpo desta mulher e visto em contraposi^ao com a forma como ela ve e passa a ressignificar este corpo.
Desta forma, o presente artigo tern como objetivo apresentar a discussao acerca da figure do ciborgue dentro da literatura afrofuturista, a partir dos romances do escritor Fabio Kabral. Em O Cacador Cibernetico da Rua Treze e Cientista Guerreira do Facao Furioso o ciborgue se materializa na figure dos protagonistas Joao Arole e Jamila Olabamji, representando a ideia de fragmenlacao do sujeito. Desta forma, abordaremos as formas de ressignificacao do sujeito a partir da religiosidade e do enfrentamento da logica capitalista, esta que busca, no contexto das narrativas, corroer a identidade e subjetividade do sujeito.
O universo ficcional de Fabio Kabral
A obra O Cafador Cibernetico da Rua Treze conta a saga de Joao Arole em busca de remissao pelos atos assassinos que cometera ainda quando fazia parte do Esquadrao das Corpora^oes Ibualama. O livro seguinte A Cientista Guerreira do Facao Furioso da continuidade a saga de Arole, mas tendo como protagonismo a figura de Jamile, uma menina que, no primeiro livro, ainda nao sabe lidar com seus poderes, mas que agora passa pelo processo de aprendizagem sobre como dominar seus poderes para poder combater a vilania do personagem Pedro Olawuwo.
No decorrer da narrativa O Cacador Cibernetico da Rua Treze, ficamos sabendo sobre os fantasmas que assombram Arole, sua historia inter cala eventos do passado (por meio de flashbacks) com a^oes no presente, no qual acompanhamos a luta do protagonista por redencao. Ademais, somos apresentados as siluacdes que levaram Arole a integrar o grupo de agentes assassinos a service das Corporacoes, porem, percebemos que muitas mortes acabam sendo de pessoas como ele proprio, que tinham poderes, mas nao conseguia controlar, o que faz com que Arole se rebele contra a Corporate. Ainda crianca, nosso heroi e tirado de seus pais pela Corporate Ibualama, devido aos seus poderes sobrenaturais, o jovem heroi tern a habilidade de se teleportar, de ouvir a longas distancias, sendo por isso, considerado um emi-eji, "minoria dominante que possui dons especiais de sangue dos espiritos" (KABRAL, 2017, p. 9).
Ao longo da historia vemos Joao Arole sendo assombrado por pesadelos em decorrencia das mortes que causara, por cumprimento de seus deveres enquanto assassino. Arole traz em seu corpo a figura de um guerreiro, seus bravos e pernas sao tornados por tatuagens, que foram feitas para fortalecer seus poderes; seu brace > esquerdo e de metal reluzente, que pode se transformar em uma lan^a; no lugar da orelha direita, ele tern um botao auditive; metade do seu rosto e de metal e seu olho direito e um monoculo azul, tecnologia espiritual de ponta. Assim, temos em Arole a figura de um ciborgue.
Na tentativa de se redimir dos seus erros do passado e se libertar desses pesadelos que o atormentam, Arole se transforma em cacador de espiritos malignos. Paralelo a isso, uma serie de assassinates de pessoas famosas tern tirado a tranquilidade dos habitantes de Ketu-Tres, o que fara com que Arole inicie uma investigacao sobre essa siluacao. Ficamos sabendo que esses assassinates sao de responsabilidade de um antigo colega de Arole, Jorge Osongbo, que tenta chamar sua alencao para um confronto final, haja vista que Arole matara seu companheiro.
A historia se passa na cidade de Ketu-Tres, a cidade das Alturas, as vesperas da comemoracao da Liberlacao Aurea, ou seja, do aniversario de Fundacao do Mundo Novo. Esta festividade era a celebracao do triunfo dos povos melaninados sobre os alienigenas, estes que capturaram os povos do Continente levando-os para Ketu-Tres para serem escravizados. Os habitantes do Mundo Novo, os alienigenas, sequestraram os povos melaninados de seu mundo original, contudo os malaninados se rebelaram contra os alienigenas tomando-lhes o poder e cons- truindo um mundo baseado em sua propria cultura e sistema. Essa nova forma de governo pertence as Corporacoes Ibualana que e chefiada pelo conselho das 13 sacerdotisas-empresarias com poderes sobrenaturais. A mais velha sacerdotisa era "Baba Osoosi, a lider do conselho das treze Ceo ancias; chefe e mae de todas as pessoas da Cidade" (KABRAL, 2017, p. 10).
A partir desta breve apresenlacao do romance O Cacador Cibernetico da Rua Treze, podemos afirmar que o afrofuturismo visa revistar o passado recriando novas narrativas, uma vez que os discursos sobre a colonizacao venderam a ideia de que os africanos aceitaram sua condicao de escravo. Fabio Kabral nos mostra que os africanos e seus descentes lutaram por sua liberdade alcancando-a. Desse modo, e necessario conhecer, compreender e se apropriar da Historia para poder comecar a construir nossa identidade; a partir do conhecimento desse passado, e precise transformar o presente que foi criado para, e nao pelo, o sujeito negro e que ainda esta pautado em perspectivas desiguais; projetar um future pautado na nossa otica, crencas, culturas, ou seja, um future afrocentrado. Segundo o proprio Fabio Kabral (2018, np.) "afrofuturismo e esse movimento de recriar o passado, transformar o presente e projetar um novo future atraves da nossa propria otica".
A narrativa de Kabral traz algumas abordagens interessantes sobre a utilizacao de alguns dos elementos da ficcao cientifica associando-os a no^ao de identidade negra, come a figura do alienigena; o transcurso do tempo e o ciborgue. Nossa abordagem sera feita sobre este ultimo.
O ciborgue e a incompletude do sujeito
Ao passearmos pelas historias de Fabio Kabral, dois personagens merecem a nossa a ten can por demonstrarem uma incompletude que sera importante para o transcorrer da narrativa: Joao Arole, heroi de O Cacador Cibernetico da Rua Treze e Jamila Olabamji, heroina de A Cientista Guerreira do Facao Furioso. O que une esses personagens e a busca pela superacao de seus traumas ou uma tentativa de aprender a conviver com eles, os quais foram causados, de alguma forma, pela inlervencao da Corporacao Ibualama e pela falta de entendimento de saberem quern sao. E isso que esses personagens procuram: conhecer a si mesmos e mudar o rumo de suas vidas.
Ambos os protagonistas apresentam caracteristicas de ciborgues. No caso de Joao Arole, em que ele e metade homem, metade maquina; e no caso de Jamila Olabamiji, ficamos sabendo mais proximo do final da historia que ela e o experimento 68, criada em laboratorio. Ate entao, na narrativa sabiamos apenas que os poderes dela foram dados por deuses, o que a diferenciava de Joao Arole, que tinha nascido com poderes. O poder de Jamila e dada por ogum como heranca, o que lhe atribuira humanidade e que acarretara na formacao de sua subjetividade. Com estes corpos ciborgues e com os poderes que lhes sao atribuidos, ambos os protagonistas serao incumbidos de proteger a popula^ao de Ketu Ires dos espiritos maus, bem como dos feitos das Corporacoes Ibualama.
Donna Haraway (2009) no seu ensaio Manifesto ciborgue: ciencia, tecnologia e feminismo-socialista no final do seculo XX traz uma abordagem do ciborgue a partir de uma perspectiva feminista, questionando esta condicao em que a muIher foi exposta e os mecanismos politicos e sociais utilizados para se desvenciIhar de uma abordagem do feminine a partir da premissa patriarcal.
Nesse sentido, se um ciborgue e uma criacao possivel, dentro do universe ficcional, entao novas fundees relacionadas as mulheres tambem podem ser desenvolvidas, come o papel politico, per exemplo. A autora afirma que "o ciborgue e nossa antologia" (HARAWAY, 2009, p. 37), ou seja, uma sintese de nossa existencia. Assim, a partir da compreensao sobre quern e esta maquina, podemos compreender quern nos semes, sobre a nossa existencia enquanto individuos e enquanto sujeitos politicos que estao entrelacados nestas redes de conexoes globais, que sofrem influencias em suas praticas cotidianas e que tambem influenciam.
Um ciborgue e um organismo cibernetico, um hibrido de maquina e organismo, uma criatura de realidade social e tambem uma criatura de fic^ao. Realidade social significa relates sociais vividas, significa nossa construcao politica mais importante, significa uma fic^ao capaz de mudar o mundo. Os movimentos internacionais de mulheres tern construldo aquilo que se pode chamar de "experiencia das mulheres". Essa experiencia e tanto uma fic^ao quanto um fato do tipo mais crucial, mais politico. A libertacao depende da const rucao da consciencia da opressao, depende de sua imaginativa apreensao e, portanto, da consciencia e da apreensao da possibilidade. O ciborgue e uma materia de fic^ao e tambem de experiencia vivida - uma experiencia que muda aquilo que conta como experiencia feminina no final do seculo XX. Trata-se de uma luta de vida e morte, mas a fronteira entre a fic^ao cientifica e a realidade social e uma ilusao otica. (HARAWAY, 2009, p. 36)
Os ciborgues representam este ser que esta em constante Lransformacao e que tern suas "identidades permanentemente parciais e posi^oes contraditorias" (HARAWAY, 2009, p. 46). No caso do feminismo, o ciborgue simboliza esta potente mudanca - que se deu por meio de lutas e enfrentamentos ao modelo patriarcal, colonialista e imperialista que tern imperado ate a modernidade ou pos-modernidade - que tern permitido as conquistas e direitos por meio das proposi^oes feministas, que estao em constantes embates, pois se houver descanso por parte das mulheres, em especial das mulheres negras e indigenas, essas conquistas vao se esvaindo. Igualmente, Donna Haraway traz a luz a discussao da ideia de como a sociedade construiu e entende como sendo naturais os papeis sociais atribuidos as mulheres e quando isso acontece, a mensagem que se esta passando e que "e assim que o mundo e, nao podemos muda-lo" (KUNZRU, 2009, p. 25). Nisso reside a importancia do que o ciborgue representaria, pois se o ciborgue e algo que pode ser construldo, novos papeis feminines tambem poderao ser.
Hari Kunzru (2009, p. 25) em seu artigo Voce e um ciborgue: um encontro com Donna Haraway reafirma esta naturaliza^ao de uma condicao feminina que atenda a uma demanda patriarcal. A autora diz que durante um longo tern- po foi estabelecida a ideia de que as mulheres eram frageis, eram mais emocionais do que racionais, eram incapazes de elaborar pensamentos abstratos, estavam condicionadas a maternidade ao inves do estudo das ciencias, fisica, tecnologias, engenharias, matematica (areas do conhecimento majoritariamente masculinas). Desta forma, a ideia era que "se todas essas coisas sao naturais significa que elas nao podem ser mudadas. Fim da historia. Volta a cozinha. Proibido ir adiante" (2009, p. 25).
Da mesma forma que Donna Haraway aborda o ciborgue sob a perspectiva politica da categoria mulher, mostrando que nao ha identidades permanentes desses sujeitos, Fabio Kabral contemplara o ciborgue sob a otica da cao do sujeito levantando questionamentos sobre a compreensao da constru^ao subjetiva do individuo. Esse enfoque e relevante e importante, pois corrobora o debate sobre o papel do negro na sociedade e a formacao de sua identidade.
Assim, os ciborgues de Fabio Kabral buscam entender quern sao enquanto individuos que nao se reconhecem nos seus pares, mas que ao descobrirem seus verdadeiros "eus" passam pelo processo de se aceitarem da forma fragmentada que estao sendo construidas suas identidades. Isso nos permite refletir e aceitar que existem varias formas de construir identidades negras.
As Iransformacoes pelas quais a sociedade tern passado sejam no aspecto cultural, social e economica afetam o conhecimento que o individuo tern sobre si (a forma como os individuos passam a se enxergar), seja em relacao as questoes de genero, de raca ou de sexualidade. Ate entao, tinhamos ideias fixas de quern eramos, ou do que gostariamos de ser, porem com essas mudancas sociais, essas ideias incorrem de se transformarem em algo mutavel. Desse modo, enquanto sujeitos pos-modernos ha um questionamento sobre a unicidade e estabilidade da identidade do sujeito fortalecendo a logica de que a formacao da subjetividade se da a partir de varias identidades "algumas vezes contraditorias e nao resolvidas" (HALL, 2006, p. 12). Stuart Hall (2006) advoga que a teoria social lancou o questionamento de que as velhas identidades, que por um longo tempo regularam o mundo social, estao em declinio e isso tern feito com que novas identidades tenham surgido, as quais tern trazido consigo a nocao de um sujeito fragmentado, sobrepondo-se a ideia de unicidade de uma identidade e de um sujeito. "Esse conjunto de mudancas produzira um deslocamento ou descenlracao do sujeito, ou seja, essa perda de um sentido de si". (HALL, 2006, p. 9). Assim, essa dissocia^ao do individuo em relacao a si mesmo, do seu espa^o cultural e social culminara em uma "crise de identidade". (HALL, 2006, p. 11)
Deste modo, podemos dizer que a identidade de um individuo nao e algo nato, que nasce com ele e o acompanha em sua trajetoria de vida, mas algo que esta sempre acontecendo, "ela permanece sempre incompleta, esta sempre em processo, sempre sendo formada". (HALL, 2006, p.38). Por isso, Stuart Hall propoe a ideia de identifica^ao, isto e, esse processo da formacao da identidade como algo constante.
A identidade surge nao tanto da plenitude da identidade que ja esta dentro de nos como individuos, mas de umafalta de inteireza que e "preenchida" a partir de nosso exterior, pelas formas atraves das quais nos imaginamos ser vistos por outros. Psicanaliticamente, nos continuamos buscando a "identidade" e construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude (HALL, 2006, p. 39)
A construqao da identidade e um processo constante e complexo que cada individuo percorre ao longo da vida, faz com que busquemos compreender quern somos, atraves de mecanismos materials e simbolicos, nao apenas isso como tambem nos leva a procurar, a querer nos identificarmos com aquilo que os outros projetaram sobre nos.
Tendo, inicialmente, adotado uma identidade a partir do exterior do eu, continuamos a nos identificar com aquilo que queremos ser, mas aquilo que queremos ser esta separado do eu, de forma que o eu esta permanentemente dividido no seu proprio interior. (WOODWARD, 2000, p. 51)
E importante compreendermos que subjetividade e identidade nao podem ser vistos como sinonimos. Deste modo, a subjetividade esta associada a compreensao sobre quern nos somos, enquanto individuos que pensam, que tern emoqoes, crenqas, ideologias, valores etc. Alem disso, e na relacao do sujeito com o outro, nos processes (sejam sociais, historicos, linguisticos, psicologicos) que fazem com que o sujeito olhe ou se relacione consigo mesmo dentro de uma realidade que a subjetividade e construida, a qual se manifesta dentro de um contexto social, que tern na cultura, na linguagem e no discurso elementos importantes da conslrucao da nossa identidade.
Para o sujeito, a identidade nao e estatica e nem unica, uma vez que o individuo pode assumir varias identidades de acordo com o ambiente em que esta inserido, com o memento pelo qual esteja passando, com algumas demandas, e assim por diante.
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente e uma fantasia. Ao inves disso, a medida em que os sistemas de significaqao e representaqao cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possiveis, com cada uma das quais, poderiamos nos identificar - ao menos temporariamente. (HALL, 2009, p.13).
Assim, podemos dizer que o sujeito nao e um ser isolado da sociedade e da historia, mas um ser social que se apropria dos sistemas simbolicos e de representaqoes e ao mesmo tempo impacta essas mesmas representaqoes e simbolos. Contudo, e necessario destacar que as instituiqoes, que os nossos sistemas politico e economico, percebendo isto, tentam criar mecanismos de controle dessa subjetividade. Jodelet (2009) afirma que
A subjetividade permanece hoje massivamente controlada por dispositivos de poder e de saber que colocam as inovaqoes tecnicas, cientificas e artisticas a serviqo das figuras mais retrogradas da sociabilidade. E, no entanto, outras modalidades de producao subjetiva - as processuais e singularizantes - sao concebiveis. (JODELET, 2009, p. 686)
Tanto as personagens Jamila Olabamji quanto Joao Arole precisam superar suas agonias, sao sujeitos incompletos que buscam aflorar ou ate mesmo construir suas subjetividades, que se encontram em discordancia com suas identidades, enquanto individuos negros, empoderados, com poderes para proteger as pessoas da cidade de Ketu Ires, herois que lutam contra uma Corporaqao que se utiliza da instituiqao para ampliar seus poderes.
As personagens Jamila Olabamji e Joao Arole enfrentam desafios internos e externos em sua jornada para se tornarem herois completes e autenticos na cidade de Ketu Ires. Ambos lutam contra uma poderosa Corporaqao que abusa de sua influencia para obter mais poder, enquanto buscam alinhar suas identidades como individuos negros empoderados. Jamila e Joao sao seres incompletos, em constante busca pelo seu verdadeiro eu. Eles desejam nao apenas aflorar, mas tambem construir suas subjetividades, que muitas vezes estao em conflito com as expectativas impostas pela sociedade. Como protetores da cidade, eles tern a responsabilidade de usar seus poderes para combater a injuslica e proteger os cidadaos. Consequentemente sao individuos que tern uma relevancia para a cidade, mas estao a procura de conhecer a si mesmo em profundidade. E esta falta de conexao com suas subjetividades advem das intervenqoes das Corporaqoes Ibualama, que de alguma forma interviram na forma de ser e existir desses individuos.
Para Joao Arole era necessario enfrentar um inimigo que cresceu e conviveu com ele dentro das Corporacoes. Enfrentar este inimigo e as Corporacoes era constatar no que o pequeno Arole se transformou, mas que ao perceber as reais inlencoes dessa instituiqao, ja adulto, resolve se transformar em outro individuo disposto a ajudar jovens que foram submetidos ao mesmo tratamento que ele, ou seja, Joao Arole precisa ser diferente do que as Corporacoes Ibualama tinham planejado, projetado que ele fosse. Desse modo, se sabemos que nossa subjetividade tambem e construida na relacao com o outro, dependendo do que nos transformamos sera necessario recusar aquilo que somos.
Ja Jamila Olabamji encontraria conexao com o seu eu a partir do momento que se conectasse com seus ancestrais por intermedio da religiosidade. Segundo Kathryn Woodward
O conceito de subjetividade permite uma exploraqao dos sentimentos que estao envolvidos no processo de producao da identidade e do investimento pessoal que fazemos em posiqoes especificas de identidade. Ele nos permite explicar as razoes pelas quais nos nos apegamos a identidades particulars. A subjetividade inclui as dimensoes inconscientes do eu, o que implica a existencia de contradiqoes (WOODWARD, 2000, p. 44)
Historicamente, a concepcao de sujeito foi materializada na figura do homem branco, eurocentrado, racional e que foi alcado como modelo universal de sociedade, conduta, moral e etica. E que por ter essas caracteristicas, detinha uma capacidade inerente para governar e dominar. Claro que, especialmente mulheres e homens negros, mulheres e homens natives, nao foram elevadas a categoria de sujeito.
Desse modo, podemos dizer que e impossivel pensar a existencia de um sujeito e consequentemente sua subjetividade fora da cultura, da religiosidade, da historia, da linguagem e tambem das relates de poder. Esses olhares sao importantes no processo de ruptura com os padroes de sujeito que ate entao foram universalizados.
E, entretanto, na teoria cultural que analisa as radicals transforma^oes culturais pelas quais passamos que podemos ver o desenvolvimento de um pensamento que nos faz questionar radicalmente as concep^oes dominantes sobre a subjetividade humana. Ironicamente, sao os processes que estao transformando, de forma radical, o corpo humano que nos obrigam a repensar a "alma" humana. (TADEU, 2009, p. 10).
Podemos dizer que a subjetividade, a consliluicao de nocoes de sujeitos (que dependendo do seu lugar social, suas influencias culturais farao com que sejam individuos diferentes, mesmo tendo o mesmo referencial historico, como por exemplo, a Africa) parte da espiritualidade e do corpo, do voltar ao passado para reconstituir quern somos. Por isso, a cosmologia africana constitui a narrativa das obras de Fabio Kabral, por ser um dos instrumentos de formacao de uma possiblidade de ser homem e mulher negra em um mundo onde as narrativas sobre os individuos negros buscaram silenciar a nossa existencia.
A reconstruct) da subjetividade a partir do enfrentamento da logica capitalista
Joao Arole ainda era um menino quando foi retirado de sua familia para servir as Corporates Ibualama como agente assassino: um jovem com implantes ciberneticos, brace > e corpo esquerdo de metal reluzente maleavel, metade direita do rosto tambem de metal, o olho direito era um monoculo azul de safira, no lugar da orelha do lado direito havia um botao auditive, corpo feito de sistema cibernetico, incorporado na mao havia uma lanca de metal de um metro e meio de comprimento com penas azuis e ponta de cristal translucido. Alem disso, tinha o poder de teleporte e precisao dos antigos cacadores espirituais.
Jose e Marina Arole, ao perceberem os poderes do pequeno Joao, buscaram uma forma de proteger seu filho da Corporacao, essa organizacao retirava dos pais seus filhos ainda criancas para servirem aos interesses da insliluicao, que tinha como intuito eliminar monstros e pessoas corruptas.
Uma das tentativas de proteger Joao foi comprar escudos mentais para evitar que os agentes das Corporates lessem os pensamentos de Jose e Marina, para que nao identificassem a existencia de uma crianca com superpoderes como Joao. Diz o pai: "Gastei uma fortuna com esses escudos mentais portateis, pra nao invadirem nossa cabeca e descobrirem nosso filho" (KABRAL, 2017, p. 53). Os guardas da Corporate tinham um dispositive que alem de conseguir ler os pensamentos dos cidadaos, conseguiam identificar seus sentimentos.
Joao Arole cerrou o punho com tanta forca que quase rasgou a propria mao.
O discurso terminou. Todos se levantaram, retornaram para seus afazeres. Foi entao que Arole sentiu um arrepio; se virou; viu uma oficial uniformizada, de azul e amarelo, diante de si; ela disse:
- Com licen^a. Acabamos de registrar no senhor uma concentra^ao de sentimentos hostis; sera que faria a gentileza de nos acompanhar? Diminua seus escudos mentais para que seja feita uma leitura mais precisa.
Joao Arole nao disse nada. Outros dois guardas apareceram; eram do Akosile Oju, empresa de seguranca que funcionava como os "olhos do publico" de Ketu Tres.
- Senhor - disse um dos guardas -, por gentileza, pedimos que abaixe seus escudos mentais. (KABRAL, 2017, p 10)
Outra forma de proteger Joao Arole era deixar a crianca aos cuidados dos Isote, um grupo revolucionario contrario as Corporacdes. Mais uma vez, o pai de Arole apresenta uma solucao, em uma conversa com Marina afirma:
- Eu sei um lugar. Sabe o Ricardo?
- Ah, nao. Voce esta falando dos Isote? Eles sao um bando de vagabundos! Nao vou deixar o meu filho com essa gente metida a revolucionaria...
- Mariana. Voce prefere que nosso filho seja criado pelas Corpora^oes para ser um espiao, um assassino, ou coisa pior? (KABRAL, 2017, p.54)
Entretanto, Jose e Marina Arole nao conseguem proteger o pequeno Joao, que acaba sendo capturado quando seu pai e preso pela Corporate:
O pequeno Joao Arole estava sentado com a mae no sofa da sala. Marina o abracava. Assistiam a televisao;
- ...acaba de ser preso o operador de maquinas Jose Arole, 48 anos, acusado de roubo, fraude de documentos, sabotagem de equipamentos e participa^ao no grupo criminoso revolucionario que se intitula Isote. Jose Arole foi condenado a reeducacao total: trabalhara por toda a vida para... (KABRAL, 2017, p. 59)
O pai de Arole era um revolucionario que lutava contra a Corporacao, sendo cacado e preso pela mesma quando Arole ainda era crianca. Nesta passagem, apos a prisao do pai, membros da Corporacao aparecem na casa de Marina para levarem a crianca.
- Vamos, garoto.
A mulher de terno branco pegou no brace do pequeno Joao Arole e o conduziu para fora de sua propria casa. Marina sua mae, estava em pe na porta, enquanto outras pessoas de terno estavam revirando sen lar; quando terminaram, se olharam sem dizer nada, pelo menos nao com a boca. Marina observava tudo com olheiras de ressaca fria. Uma a uma, aquelas pessoas de branco e oculos espelhados foram saindo, deixando tudo bagunqado; passaram pela Marina sem nem olhar; mas uma das mulheres parou e disse:
- Senhora Marina Arole. Estamos levando seu filho, Joao Arole, 8 anos, para estudar, em tempo integral, no Institute Pa Oluko para j ovens Superdotados, conforme manda a t radicao constitucional das Corporaqoes Ibualama. Devido a natureza extraordinaria dos estudos a serem aplicados, e tambem as transgressoes cometidas por seu marido, Jose Arole, a senhora nao tera permissao para visitar seu filho. Mas tera direito a uma ligaqao por mes.
Marina foi passando por aqueles estranhos; chegou ate o filho, se agachou, olhou bem nos olhos; disse:
- Joao. Meu filho. Seja o homem que eu e seu pai criamos para que fosse. Seja forte. (KABRAL, 2017, p. 62)
A vida de Joao Arole se configure a partir dessas experiencias traumaticas pelas quais passou ainda na infancia: a prisao do pai, uma vida longe de sua mae e os treinamentos para se transformar em assassino. Atormentado por pesadelos todas as noites, Arole buscava compensar as mortes que causou, quando ainda estava sobre o jugo da Corporacao Ibualama, protegendo a populacao de Ketu Tres dos espiritos destruidores (conhecidos como ajoguns) "antes que os ancestrais cobrem seu derradeiro preco" (KABRAL, 2017, p. 6)
Os pesadelos eram constantes e sao eles que nos mostram a infancia e os traumas vividos por Arole, esses flashbacks nos levam ao passado do protagonista nos ajudando a entender os fatos que suscitaram nele traumas com os quais ele tera que aprender a conviver. "Ontem, Joao Arole sonhava se tornar astronauta; hoje, acordou aos gritos de mais uma noite de pesadelo. Sentado em seu colchao flutuante, Arole era so suor. Foi assim ontem, foi assim anteontem. De cara fechada, resmungando muito, Arole tremia" (KABRAL, 2017, p.8).
Em outra passagem de O Cacador Cibernetico da Rua Treze, vemos o personagem Joao Arole distante de sua realidade, procurando sentido para as coisas.
No alto de uma arvore alta, tao alta quanto as maiores torres da Cidade, nalgum lugar do Setor 8, Joao Arole estava acocorado, como se fosse um animal, em silencio. Ficou ali parado quase a madrugada inteira.
Ja era quase de manha quando Joao Arole apareceu no seu apartamento, tirou a roupa, tirou o colar de contas, se ajoelhou, realizou uma prece; terminou, se jogou na cama. Olhava pro teto. Nada aconteceu. Piscou o monoculo, as luzes se apagaram. Arole continuou olhando pro teto, sem fechar os olhos por horas. (KABRAL, 2017, p. 17).
Nisso temos um conflito, pois Joao Arole matava pessoas, "aberracoes" parecidas com ele, alem de tambem matar criancas, pois segundo a Corporaqao Ibualama, elas se transformariam em monstros e isso traria problemas para a populaqao de Ketu Ires.
- 1'aca, Arole! - exigiu Osongbo
- E Arole nao se mexia. Em pe em cima da cama, olhava pra crianca que dormia...ate o garoto abrir os olhos.
Foi entao que Jorge Osongbo apareceu em cima de Arole e lhe deu um soco na cara; Arole foi parar no chao do quarto. Nina gritou sem voz; Jorge Osongbo enfiou sua lanqa no olho esquerdo da crianca, o sangue jorrou farto; Joao Arole ficou ali olhando a crianca com uma lanca trespassada no cranio.
- Eu nao sabia... - disse Nina Onise - Eduardo Igbo, 9 anos, suprimido com sucesso. Eu nao sabia...so 9 aos...O que nos fizem... (KABRAL, 2017, p. 60)
A partir desse episodic Joao Arole decide que nao quer mais ser assassino, salvando Rafal Igbo, irmao do menino que morreu.
- Acho que estamos com problemas de comunicaqao aqui... - disse Jorge Osongbo para seus colegas. - A missao era bem simples: eliminar a anomalia. Nada mais, nada menos. Duas anomalias, na verdade, ja que o irmao provavelmente tambem se tornara uma ameaqa. Voces entendem, nao? Nossa tarefa e eliminar ameaqas, certo?
- Uma crianca e uma ameaqa?! - Nina esbravejou.
- E. - disse Osongbo (KABRAL, 2017, pp. 63-64)
A medida que Joao Arole mergulha nesse processo de conscientizaqao critica, refletindo e questionando em que tipo de pessoa se transformara sob a intervencao da Corporacao Ibualama, ele decide abandonar a Instituiqao.
Ainda sentados de frente um para o outro, Joao Arole disse:
- Sangue demais em nossas maos, realmente...E e por isso que estou fora. Seguindo a minha vida.
[...] - Joao, nossos antigos patroes mentiram para nos! - Nina fez uma expressao de odio -, tiramos a vida daquelas pessoas todas... e nao adiantou e nada. Nada! (KABRAL, 2017, p. 82)
Nestas passagens contidas na obra O Cacador Cibernetico da Rua Treze femes a subjetividade do personagem Joao Arole sendo forjada pela Corporaqao Ibualama. Isso nos permite inferir que o sistema capitalista, representado pela insliluicao, busca modificar o carater, a subjetividade, a identidade dos individuos, neste caso especificamente do sujeito negro, representado pelo personagem principal. Nesta logica o capital vislumbra o assujeitamento dos sujeitos.
Em uma passagem do livro A Cientista Guerreira do Facao Furioso, percebemos a enfase neste mecanismo de dominacao quando a personagem Jamila Olabamji descobre as reais inlencdes da Corporacao.
- As empresas de seguranca nao existem para garantir o bem-estar da populaqao - disse Joana com calma. - As empresas existem para eliminar ameaqas aos interesses das Corporaqoes...
- E que interesses seriam esses? - perguntei.
- Nos ja falamos disso com voce.
- Que perversao e essa? E os nossos valores tradicionais? A Mae Presidente Ibualama sabe da existencia desse orgao pavoroso? Como os ancestrais permitem uma coisa dessas?
Estou quase chorando, lendo esses arquivos, quase aos prantos.
Entao e isso que fazem com os emi eje "selvagens".. E assim que chamam os emi eje que nascem ao acaso, fora das linhagens nobres...Selvagens... entao, somos animals, e isso?
Para a elite de Ketu Tres, nos nao passamos de bichos, e isso? Pior que tern mais aqui, nao consigo parar de ver ...outros "programas de incentive" para determinadas categorias da populaqao...Bateria de testes ...na populaqao do Setor 4? Setores 3,2,1? Absurdo! O pessoal do suburbio e descartavel, e isso? (KABRAL, 2019, pp. 129-130)
Diante disso, podemos afirmar que esta relacao entre a Corporacao Ibualama e Joao Arole ecoa no que Richard Sennet (2015) traz em seu ensaio Como o novo capitalismo ataca o cardter pessoal, ao nos mostrar como o capitalismo utiliza-se de mecanismos corporativos para corroer o carater2 do individuo. Dessa forma, o sujeito deixa de ser quern ele e para se transformar no que o capital quer. Joao Arole foi moldado para ser o que a Instituiqao queria que ele fosse treinando-o para exercer a luncao de assassino.
O que o atormentava Joao Arole e que acabou culminado na fragmentacao da sua subjetividade era a consciencia de que precisou tirar a vida de outras pessoas, parecidas com ele, em prol do esquadrao secreto da supressao das Corporaqoes. Nesta luncao de assassino, Arole e sua equipe matavam os cidadaos corruptos como tambem aqueles que poderiam se transformar em monstros e trazer, no future, caos para a cidade de Ketu Tres. Apesar de toda tecnologia, a Corporacao nao conseguia garantir que no future, as criancas, per exemplo, se transformariam em monstros, ainda assim, era dada ordem para que elas fossem eliminadas. Constantemente, o personagem e tornado per pensamentos que o acusavam: "Voce acha que salva vidas. Voce passou mais da metade da sua vida eliminando vidas" (KABRAL, 2017, p. 46). Em uma conversa com sua companheira de equipe, Arole traz novamente estes questionamentos.
- Nina...
- Agora nao! To ocupada aqui!
- Quantas ...£... Quantas pessoas nos ja...
- Quantas...?
- Cara... - Nina pausou jogo -, olha, eram coisas...nao eram pessoas. Anomalias, aberraqoes, criminosos e corruptos engravatados...ameaqas! Nao eram pessoas, eram monstros! Somos cacadorcs de monstros e anomalias! E o nosso dever!!!
- Quantas pessoas nos... [...]
- Mais de cem seres humanos [...] (KABRAL, 2017, pp. 56-57)
Outrossim, apesar de nas obras de Fabio Kabral haver um empoderamento do povo negro, uma vez que se tern uma identidade negra bem estruturada, uma sociedade em que os individuos negros estao no centre da discussao e das tomadas de decisoes, ainda assim, figura o capitalismo com a tentativa de desmembrar a identidade da subjetividade do sujeito negro, com fins de intensificar seus mecanismos de exploracao.
Mediante isso, e fundamental trazer a reflexao da discussao de classe social a partir de sua intersec^ao com raca. Se entendemos que as praticas sociais produzem nossas subjetividades, sendo essas praticas moldadas, elaboradas e impactadas pelo capitalismo (ou seja, o capitalismo organiza a sociedade, consequentemente a sociedade produz subjetividades), concluimos que o capitalismo projeta nossas subjetividades para atender as suas proprias demandas. Assim, o capitalismo provoca as crises que marcam a essencia de quern somos.
Igualmente, se entendemos que o racismo tambem e estruturado por uma logica politica e economica, vamos chegar a conclusao de que ele se enraiza dentro de uma logica capitalista de producao, a qual se apropria de demandas raciais para perpetuar sua forma de exploracao se utilizando, desta vez, das vozes negras. A Corporate Ibualama, apesar de ser composta por individuos negros, impunha sobre as pessoas um jugo de sofrimento e morte pelo receio de se rebelarem contra os interesses da Insliluicao.
No final do capitulo do livro O Cacador Cibernetico da Rua Treze, quando Joao Arole abandona a Corporacao Ibualama, ha uma demonslracao de que, apesar de o sistema capitalista se reorganizar para atender novas demandas que ele mesmo produz na sociedade, ha formas de causar fissures neste sistema, o que acontecera a partir da consciencia critica, esta que e trazida por Molefi Kete Asante (2009) como um dos principles norteadores da afrocentricidade. No fragmento abaixo, vemos as Iransformacoes que ocorrem com o personagem Joao Arole, o qual passa a ter sua subjetividade restaurada a partir do enfrentamento a este modelo de Insliluicao.
Joao Arole saiu gotejando do banho. Os dreads recem cortados jaziam no chao do banheiro. Chegou ao espelho. Olhou pro seu rosto, cuja metade direita nao era mais titanio reluzente - era pele sintetica, escarificada com circuitos discretos, so dava para ver se chegasse bem perto. Olhou pro novo botao auditivo, que ocupava o lugar onde deveria estar sua orelha, agora no formato real de uma orelha. Olhou para o seu olho direito, que nao era mais um monoculo azul, com palpebra e tudo. Olhou para seu novo rosto, novamente inteiro. Um bonito rosto.
Olhou para seus traces naturais. Seus labios grosses. Nariz redondo. Pele marrom, escura. Olhou para seus traces de homem descendente do Mundo Original, descendente dos grandes espiritos ancestrais que governam o universo. Sorriu. Olhou para os seus cabelos, agora curtinhos. Cabelos crespos, enroladinhos. Que cresciam para cima daqui por diante. Para formal' uma coroa natural. Cabelos crespinhos. Bonitos e cheirosos.
Fechou os olhos, respirou fundo. Apertou seu novo botao auditivo, ou seja, sua nova orelha. Ligou.
A pessoa do outro lado da linha atendeu a liga^ae. Arole falou:
- Ola. Oi, senhora minha mae. Como esta? Primeiramente, perdoe a minha ausencia, o men descaso. Vou explicar tudo pra senhora. Hoje. Agora. Antes de tudo, quero comunicar que, nesta manha de hoje, eu me inscrevi pra compor a reserva do programa Astronauta Azul...
Ontem, Joao Arole sofria com pesadelos; hoje, voltava a sonhar rumo as estrelas. (KABRAL, 2017, pp. 127-128)
Nisto podemos dialogar com que Clovis Moura (1968) explica como sendo a rebeldia do trabalho, em que as revoltas encabecadas pelos africanos e seus descendentes nao eram apenas "revoltas pontuais", mas indicavam uma probabilidade da instauraqao de um projeto politico diferente3 do que estava vigente no Brasil da epoca. Assim, enfrentar o capitalismo coorporativo, como Joao Arole fez, seria uma possibilidade de elaborar novos projetos politicos sem o jugo que o capital proporciona aos sujeitos, o que muitas vezes nos leva a corromper quern de fato somos.
A reconstru^ao da subjetividade a partir da cosmologia africana
Outra personagem que tambem precisa aprender a lidar com experiencias traumaticas e a jovem Jamila Olawuwo, que no livro O cacador Cibernetico da Rua Treze e a causadora da grande destruiqao da cidade, mas que em A Cientista Guerreira do Facao Furioso esta em processo de saber quern e, uma vez que sempre teve a sensaqao de nao pertencer aquele universe onde estava inserida. Diferentemente de Arole, Jamila nao e retirada de sua familia, porem ainda crianca sua mae morre, ficando ela sob a responsabilidade de seu pai. Contudo, no decorrer da narrativa ficamos sabendo que a historia contada sobre Jamila e uma invencao.
A personagem tambem precisa enfrentar algumas questoes que afetam sua vida, como saber lidar com seus poderes, que se manifestavam estrondosamente quando a menina fica sob a pressao de forte estresse, de buscar respostas para suas inquielacoes, assim como saber lidar com o olhar dos outros.
Jamila Olabamiji passou a acreditar que de fato seria um monstro porque era dessa forma que fora vista pelos colegas de classe. Essa posiqao de se enxergar a partir da perspectiva do outro fez com que sua subjetividade fosse impactada. Na fala descrita abaixo, Jamila estava na escola, quando, mais uma vez, foi atacada pelo seu inimigo Pedro Olawuwo.
Alunos e alunas, com seus blacks vistosos e trancas coloridas, suas roupas de marca, tecidos caros de padroes geometricos, alguns da pele muito preta da alta estirpe de Ketu Tres, me olhando assustados, como se eu fosse alguma especie de bicho selvagem.
Inclusive, acho que estava rosnando para eles...
Dei meia volta e sai correndo. Dane-se, fui faltar aula de novo. Dane-se essa escola imunda com essa gente perversa. Sai correndo feito uma louca, deixando meu bone para tras, quase largando a minha mochila, desviando dos professores, que so ficaram olhando. Ninguem faz nada, ninguem tentou me ajudar, detesto todo este lugar, detesto. (KABRAL, 2019, p. 46).
Observa-se que esta logica do olhar do outro sobre os corpos negros, acaba se refletindo na forma como o negro olha para o outro negro. Ou seja, a branquitude mantendo esta logica de tentar falar e agir atraves das bocas e dos corpos negros, perpetua sua logica de domina^ao. Assim, podemos inferir que nao importa quern esta no controle, desde que a logica da branquitude seja mantida.
Ademais, percebemos que as conslrucdes de nossas subjetividades, as quais podem impactar na elaborate de nossas identidades, perpassam pelo olhar dos outros sobre nos, mesmos que esses outros sejam nossos pares. Observa-se que esta logica do olhar do outro sobre os corpos negros, acaba se refletindo na forma como o negro olha para o outro negro. Isso desfocou a forma como Jamila Olabamiji passa a se enxergar, o que faz com que a adolescente se apresente da seguinte forma:
Nunca fui grande coisa nem acredito que um dia eu consiga ser algo, mas mesmo assim, tenho esse sonho de ser a maior engenheira do mundo. Sou uma nulidade na escola, um ninguem, nao sou vista, nao sou percebida. (KABRAL, 2019, p. 109)
A jovem foi criada em laboratorio por Mae Yolanda Oia, uma renomada geneticista da farmaceutica Olasunmbo, sendo a mae Diretora desta empresa. Esta senhora vivia na cobertura de uma torre alta do Setor 10 com seu marido Onofre Olasunmbo e seu filho Pedro Olasunmbo, principal inimigo da Jamila. Alem de Yolanda matar as pessoas que atravessassem seu caminho, ela foi acusada de criar abominates biologicas em seu laboratorio particular. No livro O Cacador Cibernetico da Rua Treze, esta personagem e assassinada.
Neste dialogo entre Pedro Olawuwo e Jamila Olabamiji ficamos sabendo do experimento ao qual a adolescente fora submetida.
- A sua idade verdadeira...Voce deve ter uns 5, no maximo, uns 6 anos de existencia...e nao 15, como fica falando por ai...
O que?
- Ainda lembro... - ele continuou dizendo.
- Voce crescendo...Naquele tubo enorme de vidro, la no laboratorio da minha mae...voce era uma coisa feia e esquisita...foi crescendo, crescendo...naquela meleca verde...
O que?
- Eu chamo voce de aberracao porque e isso que voce e...- ele continuou dizendo, tranquilamente. - Voce e uma coisa, criada pela minha mae, uma imita^ao de pessoa; nao nasceu do ventre de uma mulher, nao teve infancia...
- Voce e propriedade da familia Olawuwo - disse ele...." (KABRAL, 2019, p. 177).
Em outra passagem esse dialogo e retomado:
- Ainda nao se tocou? Chamo voce de aberracao porque e isso que voce e: um ser artificial. Uma criatura patetica e sem alma, criada em laboratorio.
Voce nao e gente de verdade, e so um experimento mal feito... (KABRAL, 2019, posi^ao 181).
- Nao...Eu sou gente...eu...
- Nao sou um experimento sou uma nao sou um experimento sou uma pessoa nao sou um experimento sou uma pessoa nao sou um experimento sou uma pessoa nao sou um experimento sou uma pessoa nao sou um experimento sou uma pessoa nao sou um experimento sou uma pessoa nao sou um experimento sou uma pessoa nao sou... (KABRAL, 2019, p. 188)
Em outra passagem, Jamila Olabamiji tern um embate com Pedro Olawuwo, na qual, em um primeiro momento ela e abatida pelo seu opositor. Anteriormente a isso, Jamila com a ajuda de Nina esculpe um facao, que denominara como Facao de Ogum, este artefato so poderia ser empunhado apos ser apresentado aos deuses e depois que Jamila passasse por um ritual de iniciacao, algo que ela nunca demonstrou interesse em realizar.
-...Muito bem - ela come^ou a dizer -, aqui confirmamos que Ogum deseja sua cabe^a.-.ele exige iniciacao imediata. E al?
- Ha? - engasguei - Ue...Se ele quer...quern sou eu para...
- Voce e uma pessoa - disse ela, de pronto. - Pessoas tern direito de escoIha. Obviamente voce tera que lidar com a consequencia de sua escolha, mas entenda de uma vez, Orixa nao mata ninguem, viu? (KABRAL, 2019, p. 212)
Contudo, ela passa por esse rito e a partir disso Jamila Olabamiji se reconecta com aquele 'eu' que tanto buscava, o que fara com que tenha controle sobre seus poderes e com isso, em uma nova batalha, destruira seu inimigo Pedro Olawuwo.
- Entao... - disse Mae Maria, descruzando as pernas - o que voce decidiu...?
- Sim! - exclamei, chorando de novo, mas, desta vez, de alegria. - Sim, quero ser iniciada! Quero renascer pela vontade de meu pai Ogum!
- Muito bem... - disse Mae Maria, sorrindo pela primeira vez. - Entao... vamos comc'car. [...]
- A iniciacao, dizem os mais velhos, destina-se a consertar nossa cabe^a... disse Mae Maria. - Destina-se a estimular o Orixa dentro da nossa ori, o centro da consciencia.
- Nunca senti tanta paz e tranquilidade em toda a minha vida.
- Reconexao. Religando com a divindade ancestral da qual descendo. O fragmento da divindade agora existe dentro de mim, no centro da minha consciencia. Minha alma agora e capaz de manifestar a minha divindade, o melhor aspecto de mim mesma...." (KABRAL, 2019, pp. 215-216)
Desse modo, percebemos que a personagem Jamila Olabamiji so consegue se reconectar com o seu eu, dominar o seu poder, que era uma extensao de quern ela era e se aceitar apos passar pelo ritual de iniciacao, quando se efetivaria sua conexao com a divindade.
Wade Nobles (2009) aborda essa dimensao do que e ser humano, ser sujeito, a partir de uma logica da filosofia africana ioruba que trara meandros da cosmologia africana, na qual o humano e constituido a partir de um espirito (ou espi- ritualidade) e um corpo, sendo este constituido por Orisa-nla e atraves do qual o individuo interage com a natureza.
O espirito e o componente essencial do individuo, "a (orca espiritual ou a espiritualidade (emi)" (NOBLES, 2009, p. 281). O emi (a essencia divina) esta vinculado ao Ser Superior, ao divino, e ele que da a vida a pessoa, sendo que ele volta para o divino apes a morte do individuo. Nesta constitute subjetiva, tem-se a ideia do Ori (essencia pessoal), que representa a cabeca, estando dividido em Ori ode, a parte fisica, a qual contem nossos orgaos dos sentidos e o cerebro; Ori inu, que e o guardiao do eu, o que da a identidade subjetiva do sujeito e "carrega o nosso destine e influencia a personalidade" (NOBLES, 2009, p. 282); Alem de Ori, tem-se a ideia de Okan, que seria o lugar do pensamento, onde esta sediada o nosso intelecto, nossa inteligencia e nossas a^oes. "Essa palavra significa coracao, mas como aspecto constituinte da pessoa, representa o elemento imaterial (essencia)." (NOBLES, 2009, p. 282); tambem se tern a ideia do eje, que seria o sangue, que da (orca ao individuo; e o lye, referido como a mente. Desta forma, para se tornar um ser humano, para que o sujeito construa sua subjetividade, segundo a crenca ioruba, o individuo deve ter todos esses elementos convergindo.
Uma segunda abordagem dessa concep^ao de humanidade, de ser humano, e a compreensao segundo o povo banto-congo, que traz como premissa a nocao de que o individuo e como um sol vivo, enquanto energia vital que pulsa constan - temente em relacao com a energia cosmica, sendo assim, "a pessoa e ao mesmo tempo o recipiente e o instrumento da energia e dos relacionamentos divinos. E a essencia espiritual da pessoa que a torna humana". (NOBLES, 2009, p. 282).
Para ambas as formas de compreender como se constitui o ser humano, tanto dentro de uma visao ioruba quanto banto-congo, o sujeito e formado por espirito que esta em contato com as divindades e poderes espirituais que habitam o campo do invisivel, esses individuos sao dotados de uma energia que e vital para sua existencia. "Essa energia, cuja totalidade constitui o Ser Supremo, exige que os seres humanos, como espiritos, sejam capazes de conhecer a si mesmos (intra), a outros espiritos (inter) e por fim ao Divivo (supra)". (NOBLES, 2009, p. 283).
Wade Nobles (2009) acrescenta que houve a tentativa de esvaziar nossa consciencia do que significa ser africano, por isso, a importancia de olhar para o passado ancestral para podermos restaurar quern somos. Apesar de termos sides constantemente atacados por narrativas discursivas, simbolicas, cosmologicas negativas de uma africanidade, ou seja, "de um sense de ser dos africanes" (NOBLES, 2009, p. 285) isso nao foi capaz de destruir a nossa essencia africana. Contudo, a concepcao de que tinhamos sobre nossa africanidade transfigurou a forma como encaramos nossa africanidade "e esse sense alterado de consciencia e o problema fundamental dos africanos e afro-americanos e diasporicos" (NOBLES, 2009, p. 277). Alem disso, nao e somente compreender essa essencia e experiencia africana, mas tambem, pertencer e tornar-se africano, e isso que Nobles denomina como Sakhu Sheti'.
Ademais, compreender a dimensao do que significava ser africano foi um aliado na resistencia dos africanos e seus descendentes a escravidao e a impo- sicao colonialista, uma vez que "a concep^ao do significado da pessoa como recipients e instrumento da energia e relacao divina tornava o africano, creio eu, inadaptado a escravidao, a menos que desafricanizado". (NOBLES, 2009, p. 284).
Entendemos que a personagem Jamila Olabamiji ao passar pelo ritual de iniciacao rompe simbolicamente com o mundo exterior, que esta organizado dentro de uma estrutura que foi elaborada com fins de explorar e expropriar especialmente o homem negro, passando a olhar para si, a buscar uma aproximacao com os deuses e uma conexao com sua ancestralidade, so assim, a personagem pode reelaborar quern ela era.
Considera0es Finais
Kabengele Munanga (1988) ao discorrer sobre a nocao de negritude e identidade negra ressalta que nossa identidade subjetiva e afetada quando nos colocam na posicao de subalternizado, sendo que esta conslrucao identitaria esta relacionada com a maneira como somos vistos pelos outros e como nos vemos. Como nosso olhar para nos mesmos passa pela percep^ao das imagens que criaram sobre nos, precisamos descolonizar tambem nosso olhar sobre quern somos de fato. A partir disso, comecamos a buscar por outras possibilidades, referencias, nao mais aquelas veiculadas por uma elite cultural branca.
Podemos afirmar que algumas demandas do movimento afrofuturista, especificamente no Brasil, criaram e ainda criam instrumentos para pensar as relates sociais, a relacao do homem com o meio ambiente, a producao de conhecimento, ciencia, tecnologia entre outros, a partir de uma visao afrocentrada. Desse modo, o "Outro", que foi subjugado, explorado e expropriado sai dessa posicao periferica na qual foi lancado e passa a ser o centra das discussoes; deixa de ser objeto de conhecimento do outro para ser sujeito do conhecimento. Vale ressaltar que o afrofuturismo, no Brasil, volta seu olhar para a afrocentricidade, o que nos permite ter acesso a essas informacoes e todos os mecanismos de conhecimento produzido em Africa e pelos africanos; e nos, seus descendentes, ao lancarmos nosso olhar para o passado como forma de compreendermos as contributes materials e imateriais dos africanos, conseguimos ressignificar e reelaborar um future em que somos agentes, sujeitos de mudancas e nao mais objeto a ser observados e analisados.
Nisso reside a relevancia do movimento afrofuturista, pois evidencia que a cultura e a identidade coletiva e individual sao construidas historicamente, estando associadas a ideia de pertencimento e de identifica^ao. Esse sentimento de pertencimento a uma determinada cultura depende da representa^ao que se tern de um determinado contexto. Tai mecanismo se reflete e refrata da historia, mitologia, memoria, imagens, e tudo aquilo que faca o sujeito se identificar, com enfase na continuidade desse processo. A representa^ao e uma forma de reivindicar a diferen^a e o pertencimento dentro de um universe de identifica^oes. Logo, a identidade e uma constru^ao atrelada a ideia de pertencimento social e cultural de um povo.
Ademais Fabio Kabral destaca a importancia da cosmologia africana na configuracao da identidade dos individuos negros. Ja que a religiosidade africana recebeu uma conolacao negativa e demonizada que esteve a service de um projeto politico de apagamento com vistas a escravizacao, existe uma tentativa de retirar esta carga negativa dessa religiosidade mostrando-a como mecanismo de resistencia e de manulencao de uma cultura e memoria de um povo. Ao trazer esses elementos para o corpo da narrativa, Fabio Kabral recupera esses valores culturais.
* Possui gradua^ao em Letras pela Pontificia Universidade Catolica do Parana (2007) e mestrado em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnologica Federal do Parana (2014), cursando doutorado em Tecnologia e Sociedade pela mesma institui^ao. E professora de Lingua Portuguesa na Secretaria de Estado e Educa^ao do Parana. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7444-1437.
*· Possui gradua^ao em Historia pela Universidade Federal do Parana (1989) e mestrado em Historia pela Universidade Federal do Parana (1994). Realizou doutorado sanduiche no Departamento de Historia da University of Delaware( 1998-1999) e concluiu o doutorado em Comunica^ao e Semiotica pela Pontificia Universidade Catolica de Sao Paulo em 2000. Realizou estagio pos-doutoral em Polftica Cientffica e Tecnologica na Unicamp (2009). E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0728-1218.
Notas
1. A escritora Luciene Marcelino Ernesto mais conhecida como Lu Ain-Zaila e, juntamente com Fabio Kabral, precursora da literatura afrofuturista no Brasil. Suas obras versam pela ficcao cientifica e fantasia mesclando com a vida da popula^ao preta no contexto urbano brasileiro. Lu Ain-Zaila e autora dos livros (In) Verdades, (R) Evolucao (2017); Sankofia: breves historias afrofuturistas (2018) e Isegiin (2019)
2. Carater sao os tracos pessoais a que damos valor em nos mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem. Alem disso, o termo carater concentra-se sobretudo no aspecto a longo prazo da nossa experiencia emocional. E expresso pela lealdade e compromisso miituo, pela busca de meta a longo prazo, ou pela pratica de adiar a satisfacao em troca de um fim future (SENNET, 2015, p. 18)
3. Para isso, o autor utiliza como exemplo deste novo projeto politico a Repiiblica dos Palmares que era "surpreendentemente progressista para a epoca, uma vez que se organizava com base na propriedade coletiva da terra. O resultado disso era que enquanto a fome grassava na colonia havia fartura em Palmares". (MOURA, 2014, p. 18)
4. Sakhu significa a compreensao, o iluminador, o olho e a alma ser, aquilo que inspira. E sheti quer dizer entrar profundamente num assunto, estudar a fundo; pesquisar nos livros magicos; penetrar profundamente. (NOBLES, 2009, p. 279).
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Recebido em: 01/12/2022
Aceito em: 24/07/2023
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Abstract
This article aims to present the discussion about the figure of the cyborg within Afrofuturist literature, based on the narrative of the writer Fábio Kabral. In O Caçador Cibernético da Rua Treze and A Cientista Guerreira do Facão Furioso, the cyborg materializes in the figure of the protagonists João Arolê and Jamila Olabamji, representing the idea of fragmentation of the subject. In this way, we will address the forms of re-signification of the subject based on religiosity and the confrontation of capitalist logic
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1 Universidade Tecnologica Federal do Parana, Curitiba, PR, Brasil