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Importa mais a forma como nos comportamos em vida ou como somos recordados depois da morte? Esta é uma questão fundamental neste estudo. Surgido numa época de transição do paradigma do feudalismo medieval para o do capitalismo comercial e do humanismo, o infante D. Pedro parece ter sido importante para a transformação de um pequeno reino rural, embora já desperto para os benefícios do mercado, mas sem possibilidade de expansão territorial, numa potência marítima ancorada no comércio e tendo como suporte os desenvolvimentos da ciência. Regente na menoridade do sobrinho, mais tarde, seu genro, a quem educou segundo os melhores princípios, foi, desde cedo, ostracizado pela nobreza que o viu como um corpo estranho ligado à burguesia e ao povo, pretendendo eliminá-lo. Como a história é escrita pelos vencedores, muitos acontecimentos e matérias importantes acabam por ser objecto de esquecimentos e omissões que podem moldar a memória do passado e passar às gerações seguintes formulações erradas sobre uma figura ou um período, não sendo de descurar a hipótese de propaganda deliberada ou de damnatio memoriae.
Alicerçados nos pressupostos teóricos dos estudos de memória, nomeadamente nos conceitos de memória cultural e memória colectiva (Ansgar Nünning & Astrid Erll, eds. Cultural Memory Studies, 2008), pretendemos analisar a cultura da primeira metade do século XV e o papel que pode ter desempenhado no avolumar do drama do infante D. Pedro. Teremos sempre presente que a cultura está intimamente relacionada com a memória, cuja dinâmica consiste na interacção contínua entre recordar e esquecer. Não pretendemos alimentar diferendos entre história e memória, porque compreendemos que a narrativa do passado não é imutável, sendo objecto de uma contínua reapreciação e reconstrução, e porque a forma de recordar e apreciar factos passados também está sujeita a diferenças, pelo que podem existir diferentes modos de recordar os mesmos eventos, sejam eles individuais ou colectivos. Propomo-nos, por isso, perscrutar os esconsos da memória colectiva, apoiando-nos em documentos coevos ou posteriores, sem esquecer os ambientes económico, climático, sísmico, social, sanitário e até artístico, tão importantes para reconstituir a structure of feeling de uma época (Williams, 1965, 64). Daremos igualmente atenção à selective tradition,que, apesar de limitativa, nos poderá permitir aceder a áreas rejeitadas do que foi outrora uma cultura vivida, tendo sempre presente que as selecções e rejeições fazem com que acabe por se perder uma parte significativa dessa cultura (Williams, 1965, 68).
Sabemos que, além de numerosas epístolas, entre as quais a conhecida Carta de Bruges, ao irmão D. Duarte, o infante D. Pedro escreveu, pelo menos em parte, o Livro da Virtuosa Benfeitoria. Traduziu igualmente do latim várias obras clássicas, entre as quais o De Officiis, de Cícero, o De Re Militari, de Vegetius, o De Regimine Principum, de Giles de Roma e, provavelmente, o Livro de Marco Polo, que trouxera de Veneza. Aventurou-se igualmente no campo da poesia, que consideramos a voz da alma, chegando até nós apenas um poema, “Em Louvor de Juan de Mena”, um consagrado poeta castelhano que lhe respondeu. Outra obra poética registada em documentos coevos, Em Louvor da Cidade de Lisboa,perdeu-se. No entanto, continua a ser frequentemente ignorado como intelectual da época.