Headnote
RESUMO
Objetivo: analisar o processo de transformação das expectativas dos missioná-rios redentoristas bávaros no Brasil, a partir das novas experiências vividas em seu campo missionário entre o fnal do século XIX e início do XX. Metodologia: utilizaremos como pressuposto teórico básico as categorias de "campo de ex-periência" e "horizonte de expectativas" desenvolvidas por Reinhart Koselleck, além da proposta de uma espécie de "antropologia do viajante" proposta por François Hartog. Originalidade: oferecer aos estudos das missões europeias no Brasil uma perspectiva analítica que transita entre o sujeito e sua instituição, na medida em que busca-se analisar situações individuais que dizem respeito à própria dinâmica institucional. Em termos de recorte espacial, focaremos nas experiências missionárias em Goiás (no sertão brasileiro), como forma de com-preender as adaptações dos ideais de "missão" e "vocação" em um dado espaço de fronteira. As fontes principais utilizadas são cartas e crônicas dos missioná-rios bávaros, escritas entre 1894 e 1920. Conclusões: apontamos que os ideais missionários de missão, vocação e sacrifício levaram à ideia de (re)fundação da pátria alemã no Brasil, transformada pelas difculdades enfrentadas no processo de tensão cultural aqui encontrado.
Palavras-chave: Brasil; expectativas; experiências; missão; redentoristas; vocação.
RESUMEN
Objetivo: analizar el proceso de transformacion de Las expectativas de Los misio-neros redentoristas bavaros en BrasiL a partir de Las nuevas experiencias vividas en su campo misionero entre finaLes deL sigLo XIX e inicios deL XX. Metodologia: tomaremos como supuesto teorico basico Las categorias de "campo de expe-riencia" y "horizonte de expectativas" desarroLLadas por Reinhart KoseLLeck y La propuesta de una especie de "antropoLogia deL viajero" propuesta por Francois Hartog. Originalidad: traer a Los estudios de Las misiones europeas en BrasiL una mirada anaLitica que transita entre eL sujeto y su institucion, en La medida en que se busca anaLizar situaciones individuates que conciernen a La propia di-namica institucionaL. En terminos de enfoque espaciaL, nos centraremos en Las experiencias misioneras en Goias (en eL interior deL BrasiL), como forma de com-prender Las adaptaciones de Los ideaLes de "mision" y "vocacion" en un espacio fronterizo determinado. Las fuentes principaLes utiLizadas son cartas y cronicas de Los misioneros bavaros escritas entre 1894 y 1920. Conclusiones: senaLamos que Los ideaLes misioneros de mision, vocacion y sacrificio LLevaron a La idea de (re)fundacion de La patria aLemana en BrasiL, transformada por Las dificuLtades enfrentadas en eL proceso de tension cuLturaL encontrado aqui. Palabras clave: BrasiL; expectativas; experiencias; mision; redentoristas; vocacion.
ABSTRACT
Objective: To analyze the transformation process of the expectations of Bavarian Redemptorist missionaries in Brazil based on new experiences in their missionary feld between the late 19th and early 20th centuries. Methodology: We will use as a basic theoretical premise the categories of "feld of experience" and "horizon of expectations" developed by Reinhart Koselleck, as well as the concept of a "traveler's anthropology" proposed by François Hartog. Originality: To ofer studies of European missions in Brazil an analytical perspective that moves between the subject and his institution, as we seek to analyze individual situations that concern the institutional dynamics themselves. In terms of spatial focus, we will focus on missionary experiences in Goiás (in the Brazilian backlands), as a way of understanding the adaptations of the ideals of "mission" and "vocation" in a specifc frontier space. The main sources used are letters and chronicles of Bavarian missionaries, written between 1894 and 1920. Conclusions: We point out that the missionary ideals of mission, vocation and sacrifce led to the idea of (re) founding the German homeland in Brazil, transformed by the difculties faced in the process of cultural tension found there. Keywords: Brazil; expectations; experiences; mission; Redemptorists; vocation.
A migração de missionários da Congregação do Santíssimo Senhor Redentor da Ba-viera para o Brasil, por meio da fundação da Missão Bávaro-Brasileira em 1894, foi permeada de um processo doloroso para tais missionários, que há 21 anos amar-gavam o exílio de sua própria pátria imposto por um conjunto de leis anticatólicas alemãs conhecidas por Kulturkampf. Esse importante campo de experiências dos missionários alemães, unido a todo um conjunto de expectativas sobre o que lhes aguardava no Brasil compõem um importante cenário sociorreligioso e cultural sobre o qual se debruça o presente artigo.
A aceitação da missão redentorista no Brasil por parte da província bávara, em 1894, representou para a Congregação do Santíssimo Senhor Redentor a supe-ração de um campo de experiências marcado pelo enfrentamento e exílio imposto pelo Império Alemão. Por outro lado, essa nova empreitada fora da Europa também representava um novo horizonte de expectativas que se abria a missionários que há duas décadas viviam em exílio. Dessa tensão temporal entre experiências e ex-pectativas, todavia, depurou-se a possibilidade de realização pessoal de algo que transcendia os interesses institucionais, pois, em nível pessoal, para cada religioso que aceitou ir para o Brasil, esse horizonte se apresentava como a expectativa da realização da "vocação" para a qual acreditava ter sido chamado por meio da "mis-são" e "sacrifício". A nova tensão estabelecida nesse processo, marcada pela durezada realidade brasileira de sofrimentos e limitações materiais, forjou nos estados de Goiás e São Paulo missionários adaptados a uma nova realidade e percepção de si, por meio da qual a sua "vocação" se transformava em algo mais adaptado do que de fato realizado de expectativas em experiências.1
Em face dessa discussão, no presente artigo se propõe analisar o processo de transformação das expectativas dos missionários redentoristas bávaros no Brasil a partir das novas experiências vividas em seu campo missionário. Para isso, toma-remos como pressuposto teórico básico as categorias de "campo de experiência" e "horizonte de expectativas" desenvolvidas por Reinhart Koselleck.
Portanto, o propósito do presente artigo, do ponto de vista da utilização das categorias koselleckianas, é apropriarmo-nos daquilo que elas nos permitem pen-sar sobre como determinados sujeitos ou grupos, como os missionários aqui estu-dados, lidam com as experiências pessoais e coletivas que acumulam e as utilizam para elaborar perspectivas futuras daquilo que anseiam. Para tanto, analisaremos cartas pessoais de missionários da Congregação do Santíssimo Senhor Redentor bávara no Brasil, trocadas com seus confrades e superiores entre São Paulo, Goiás, Baviera e Roma, no período das primeiras três décadas de missão no Brasil, portan-to, entre seu ano de chegada, 1894, e o marco político de importantes mudanças políticas e sociais no Brasil em 1930.
Em termos de organização, propomos a divisão da discussão em cinco seções. Nas duas primeiras, discutiremos o campo de experiências da Congregação Reden-torista bávara, bem como do contexto brasileiro aqui encontrado. Nosso objetivo é demonstrar a importância das experiências vividas pelos redentoristas no exílio sofrido pela congregação na Alemanha antes de sua partida para o Brasil. Argu-mentamos que este cenário de perseguição político-religiosa contribuiu signifca-tivamente para a formação de todo um horizonte de expectativas idealizado sobre a missão brasileira, especialmente no que tange os ideais de missão, vocação e sa-crifício. Nas três seções fnais, apresentaremos tal horizonte de expectativas sobre
o Brasil, com ênfase para o estado de Goiás, e sua modifcação à medida que os missionários viviam novas experiências. Nesse processo que, a partir da antropolo-gia do viajante proposta por François Hartog, chamamos de refundação da Bavária no Brasil, tentaremos identifcar as adaptações necessárias que os missionários bávaros tiveram que sofrer para lograr o êxito naquilo que compreendiam como sua vocação e missão no Brasil.
Nosso argumento central é que a singularidade do campo de experiências alemão, marcado sobretudo pelo exílio imposto por um Estado liberal, protestante e moderno, impactou profundamente no modo como se construiu todo um hori-zonte de expectativas sobre a missão brasileira. Todavia, como é típico da condição humana em sua realização histórico-temporal, a conversão dessas expectativas em novas experiências deu-se por meio da deformação das convicções iniciais, ora levando ao abandono dos ideais de missão, vocação e sacrifício, ora reforçando-os, especialmente em função da necessidade de adaptação da cultura alemã à realida-de sociocultural e religiosa do Brasil.
Assim, é por meio deste argumento histórico-temporal que propomos uma perspectiva inovadora para a pesquisa historiográfca sobre a ação de missionários cristãos no Brasil. Imbuídos de ideais próprios do cristianismo (no caso aqui ana-lisado: católicos), os missionários cristãos se deslocaram no espaço a fm de não apenas conhecer o "outro", mas de transformá-lo. Ao fazê-lo, transformaram-se a si mesmos, por meio de um processo que antropologicamente é natural: a conversão de expectativas em experiências, marcada pela tensão entre a preservação cultural do local de origem e a adaptação necessária à cultura do "outro".
A Congregação do Santíssimo Senhor Redentor bávara e a formação de um campo de experiência institucional
A Congregação do Santíssimo Senhor Redentor (redentoristas) foi fundada na Itália (reino de Nápolis) em 1732 por Afonso Maria de Ligório (canonizado em 1839 pelo papa Gregório XVI). Afonso descendia de uma importante família nobre da região de Marianella, da qual recebeu instrução acadêmica e formação militar. Sua trajetória religiosa, todavia, sofreu uma forte infuência, por um lado, do rigorismo religioso de Monsenhor Tomás Falcóia e, por outro, da freira mística Maria Celeste Crostarosa. Foi por meio de revelações Místicas desta última que Afonso recebeu autorização do bispo de Scala, Monsenhor Guerreiro, para orientar a fundação de uma nova congregação feminina liderada por Crostarosa, em 1731. Já o ramo masculino, os redentoristas, teve sua fundação no ano seguinte por insistência também das supostas revelações místicas da freira, recebendo a aprovação da Re-gra pelo papa Clemente XII.
No que tange ao carisma da congregação recém-fundada, os redentoristas partiram do princípio de que, na própria Europa, havia cristãos "sub-cristianizados", especialmente na zona rural, que necessitavam da mesma atenção há dois séculos dispensada aos gentios e pagãos nas Américas, Ásia e África, conforme argumenta
Rey-Mermet.2
O sucesso da Congregação, no entanto, não foi a principal motivo para sua expansão para além dos reinos italianos. Antes, foram problemas políticos com o tradicional regalismo italiano que forçaram os redentoristas a atravessarem os Alpes em busca de missões na Europa central. Tal processo ocorreu principalmente por meio de Clemente Maria Hofbauer (1751-1820), cuja origem alemã levou ao Sacro Império os ideais da "recristianização" do catolicismo popular reinante na Europa germânica. Este personagem foi o principal responsável pela expansão é sobrevivência da congregação, sendo consenso entre os estudiosos do tema que "Clemente foi, para a expansão da Congregação, o que foi o apóstolo Paulo para a expansão do cristianismo".3
A fundação redentorista na Baviera, entretanto, ocorreu apenas em 1841, portanto duas décadas após a morte de Hofbauer. Isso se deve, em primeiro lugar, à tradição bávara avessa ao "jesuitismo", com o qual os redentoristas também eram taxados, especialmente em um momento de forte tendencia josefsta do rei Maxi-miliano I e seu ministro Montgelas. Entre as décadas de 1820 e 1840, no entanto, o governo de Luís I, forjado sob forte infuência do romantismo católico, permitiu um forte retorno do clero ultramontano católico como barreira ao liberalismo an-tirrevolucionário, o que facilitou a fundação de uma província redentorista. Neste mesmo contexto, a eclosão das revoluções liberais em 1848 levou os governos germânicos a investirem muito fortemente no apoio da Igreja Católica ultramon-tana como bastião da resistência conservadora. O resultado foi que, nas décadas de 1850 e 1860, a congregação redentorista gozou de amplo apoio do estado, consolidando-se e expandindo-se por toda a Europa.4
Nesse período, a província da Baviera (Süddeutsche Provinz) sofreu um impor-tante processo de expansão, fundando uma nova província na região da Renânia do Norte (Niederdeutsche Provinz), bem como ao incorporar a província da Áustria, especialmente por conta de perseguições sofridas por conta de políticas do impe-rador Francisco José I, no ano de 1854. Nesse contexto, a Congregação adquiriu vários mosteiros, a fm de fundar-se novas casas de missão e formação, como o caso do mosteiro agostiniano em Gars am Inn, que tornou-se o principal centro de formação de missionários enviados ao Brasil no fnal do século XIX.5
Esse período de bonança católica nos estados alemães, entretanto, teve seu fm na década de 1870, quando, com a unifcação do Império Alemão liderado pela Prússia, o catolicismo passou a ser visto como o inimigo a ser vencido na "última guerra pela unifcação alemã, travada não com artilharia e sabres, mas com as armas da legislação e da autoridade do Estado".6
Essa visão do Império Alemão, especialmente prussiano de origem protestan-te, sobre o catolicismo pode ser explicada por dois movimentos perigosos da Igreja Católica na segunda metade do século XIX: por um lado, o papado se impôs como uma autoridade civil-religiosa acima de qualquer poder secular, especialmente por meio do combate aos valores modernos e da centralização papista ultramonta-na, representada bastante bem pela encíclica Quanta Cura e seu anexo Syllabus Errorum, publicados por Pio IX em 1864.7 Por outro lado, a confrmação do dogma da infalibilidade papal no Concílio Vaticano I, no 18 de julho de 1870, marcou a ingerência católica sobre países como a França, cuja declaração de guerra contra a Prússia ocorreu exatamente no dia seguinte.
O resultado dessa tensão entre a Igreja Católica e o recém-fundado Impé-rio Alemão foi a decretação de um conjunto de leis que, por um lado, limitavam a atividade política católica (seja pela pregação com temas políticos no púlpito, seja pela perseguição ao partido católico Zentrum Partei), e, por outro, expulsavam as principais congregações religiosas responsáveis pela disseminação do ideário ultramontano no país, dentre elas os jesuítas e os redentoristas, em 1873. A este conjunto de leis que buscavam limitar e perseguir a ação do clero católico na Ale-manha dá-se o nome de Kulturkampf.8
Os anos de exílio da Congregação Redentorista bávara foram fundamentais para um importante conjunto de transformações internas em termos de menta-lidade e identidade religiosa, infuenciando tanto a quantidade de missionários quanto sua gestão de pessoas e distribuição das mesmas nas diversas províncias até então fundadas ao redor do globo. No caso específco alemão, em 1873 havia 17 casas nas províncias da Renânia e da Baviera, todas mantidas juridicamente em posse da Congregação, embora a permanência dos sacerdotes no país estivesse condicionada à sua secularização, ou seja, ao abandono da Congregação banida. Como consequência, houve uma forte queda no número de religiosos Redentoris-tas, já que muitos dos interessados na Congregação acabavam por preferir uma comunidade aceita no país, ou pela formação diocesana.
Numericamente falando, segundo Gilberto Paiva, em 1867 (antes do exílio, portanto) a província da Baviera contava com 8 casas (nelas, havendo 70 padres, 38 irmãos, 14 noviços e 2 estudantes, num total de 132 membros). Já em 1884 (durante o Kulturkampf), esse número se alterou para 9 casas, 51 padres, 37 irmãos e 5 noviços, com o total de 93 membros. Em 1887 havia 7 casas com 43 padres, 35 irmãos, 35 fráteres professos e 8 noviços, somando 86 membros. Em 1890 havía 6 casas, sendo 40 padres, 38 fráteres professos, 13 noviços e 4 estudantes, num total de 95 membros. E, por fm, em 1895 (portanto, após o fm do exílio) havia 9 casas, com 44 padres, 21 estudantes, 6 noviços clérigos, 40 fráteres professos e 24 noviços irmãos, totalizando 135 membros.9
Desse modo, ao fnal dessas duas décadas de exílio, dos 68 sacerdotes re-dentoristas bávaros exilados, apenas 44 perseveraram, ou sobreviveram para retornarem à terra natal. Quase todos deles já ultrapassavam os 50 anos de idade, sendo quase dois terços maiores de 60 anos.10 As transformações advindas dessa experiência, portanto, seja daqueles que experimentaram o exílio pessoalmente,seja daqueles que se formaram dentro desse período, foram, por um lado, inevitá-veis, mas, por outro, profundamente diversas. Isso porque, no retorno do desterro de 21 anos, havia, dentre os redentoristas alemães, aqueles que experimentaram as novidades e diversidades de outras províncias, aqueles que fecharam-se sobre seu próprio campo de experiências ultramontano, aqueles que entraram para a congregação durante o exílio, portanto, sem qualquer experiência missionária e pastoral (sejam eles modernistas e liberais, ou mesmo jovens conservadores li-gados ao misticismo), e ainda aqueles outros que, advindos da experiência como padres diocesanos, traziam uma visão inteiramente nova para dentro da vida reli-giosa conventual. 11
Este campo de experiências diverso deparou-se, a partir de 1894, com a aber-tura de um horizonte de expectativas que transcendia o espaço físico e temporal alemão e europeu. A oportunidade de migrar para o Brasil como missionários abriu um horizonte de amplas possibilidades. Tal horizonte, inicialmente tangido pelas expectativas religiosas -fruto tanto do campo de experiências individual, como do conjunto de ideais religiosos de vocação, missão e sacrifício mais geral- transformou-se à medida que novas e desconhecidas experiências eram vivencia-das em um lugar distante no tempo e no espaço do velho continente europeu.
Brasil, Goiás e as fronteiras de um outro espaço de experiências
A categoria "espaço de experiências" foi pensada por Reinhart Koselleck como ferramenta analítica voltada para a compreensão do tempo moderno, portanto, mais em um sentido coletivo do que propriamente individual. Todavia, como tal categoria, assim como o "horizonte de expectativas", indica uma "condição humana universal; ou, se assim o quisermos, remetem a um dado antropológico prévio, sem o qual a história não seria possível, ou não poderia sequer ser imaginada".12 É possível aferirmos que tais categorias têm uma utilidade analítica bastante elás-tica, que nos permite pensar os impactos de um campo de experiências para um indivíduo que não se limita ao seu passado individual, mas estende-se às experiên-cias coletivas daqueles que o precederam.13
Assim, por um lado, podemos inferir que a história da Congregação Reden-torista (especialmente bávara) exposta na seção anterior pode ser interpretada como um campo de experiências coletivo para cada missionário que, no fnal do século XIX, embarcou rumo ao Brasil, independentemente de terem vivenciado ou não o mesmo conjunto de experiências do ápice missionário ao exílio imposto pelo Kulturkampf. Por outro lado, quando cada missionário desembarcava no Brasil, ou chegava a Goiás, encontrava ali um outro campo de experiências bastante diverso daquele acumulado pela sua Congregação na Alemanha, cujo resultado foi, em um primeiro momento, o choque cultural e, posteriormente, a experiência da frustra-ção ou adaptação das expectativas religiosas iniciais, conforme analisaremos nas seções seguintes.
Este choque cultural, frustração ou adaptação de expectativas, portanto, só pode ser compreendido se levarmos em conta não somente o campo de expe-riências institucional da congregação (ou seja, a história dos redentoristas na Ale-manha exposta na seção anterior), mas igualmente a própria história e contexto brasileiro e goiano por eles ali encontrado. Esta é a proposta desta breve seção, portanto, possibilitar ao leitor uma compreensão do contexto histórico do local de missão dos redentoristas bávaros no Brasil, com foco especial para o nosso recorte no estado de Goiás.
O contexto brasileiro do fnal do século XIX era de uma república recém pro-clamada. As consequências mais imediatas para a Igreja Católica foi a laicização do Estado por meio do Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, que decretava o fm do regime de padroado régio, que por séculos garantiu o monopólio do catolicismo como religião de Estado no Brasil. Com isso, não apenas o clero perdia privilégios importantes junto ao Estado, como o pagamento de seus salários e a manutenção de suas igrejas, mas sobretudo a Igreja Católica teve que lidar com a permissão legal de entrada e atividade de outras religiões em território brasileiro.14
Por outro lado, no que tange às dinâmicas internas da Igreja Católica no Bra-sil, desde a segunda metade do século XIX, suas energias foram voltadas para aquilo que foi caracterizado como "reforma ultramontana", ou "romanização" do catolicismo brasileiro.15 Em linhas gerais, o movimento ultramontano no Brasil intentou uma contraofensiva ao regalismo, cuja perspectiva eclesiológica visava a autonomia da Igreja brasileira, ao passo que alinhava seus interesses ao poder secular do império. Seu principal nome, Padre Antônio Diogo Feió, chegou a ocupar o cargo de regente do império brasileiro entre 1835 e 1837.16 Do lado ultramonta-no, a reivindicação eclesiológica principal era o reforço da hierarquia católica e a submissão da Igreja ao papado em contraposição ao imperador. Do ponto de vista pastoral, todavia, foi no controle sobre o catolicismo popular, especialmente em romarias, festas, irmandades etc., que as energias do clero, especialmente bispos, ultramontanos se concentraram.17
No caso específco de Goiás, a população deste estado brasileiro experimen-tava, no fnal do século XIX, um longo período de "decadência" e "isolamento econômico", fruto do esgotamento das minas de extração de ouro ainda no fnal do século XVIII. Ainda que a historiografa goiana atual já tenha repensado essas condições do estado goiano, o fato é que a mentalidade e imaginário de "decadên-cia" material e social fzeram parte do campo de experiências coletivo encontrado pelos redentoristas em Goiás.18 Mais que isso, no que toca à "reforma católica" da Igreja em Goiás, este processo teve início de fato ainda no bispado de Dom Cláu-dio Ponce de Leão, entre 1881 e 1890. Apesar de colher poucos frutos palpáveis, Dom Cláudio inovou na diocese goiana com suas longas visitas pastorais (em uma diocese que, territorialmente, era composta do que hoje são os estados de Goiás,
Tocantins e a região do Triângulo Mineiro), bem como com a realização do Primeiro Sínodo Diocesano de Goiás em 1887.19
Apesar dos esforços de Dom Cláudio, foi com seu sucessor, Dom Eduardo Duar-te Silva, que de fato a chamada "romanização" teve impactos duradouros em Goiás. Este prelado, cujo início do governo na diocese de Goiás coincidiu com o nascimen-to da República, em 1890, enfrentou os obstáculos políticos (especialmente contra o liberalismo e maçonaria da oligarquia dos Bulhões em Goiás), econômicos (com aforamento de terras paroquiais na separação Igreja-Estado) e religiosos impos-tos ao projeto ultramontano. Neste último ponto, qual seja, o projeto religioso do ultramontanismo, Dom Eduardo avançou em direção ao controle da religiosidade popular goiana especialmente a partir do controle de festas e romarias religiosas.20 Para isso, a estratégia central de seu projeto para a Igreja Católica em Goiás contou com o convite a ordens religiosas estrangeiras para atuar em sua diocese, momen-to no qual encontram-se ambos os campos de experiências de que tratamos no presente artigo: o catolicismo em Goiás, e a Congregação Redentorista bávara.
A fundação da Missão Bávaro-Brasileira em Goiás
O pedido de Dom Eduardo Silva pela fundação de uma missão bávaro-brasileira em sua diocese de Goiás deu-se após diversas negativas recebidas em Roma por parte das mais diversas congregações religiosas. A coincidência, no entanto, entre seu pedido e os 21 anos de exílio sofrido pelos redentoristas bávaros (até então sem vislumbre de retorno) levou a congregação a decidir pela aceitação de missões fora do continente europeu. Desse modo, em junho de 1894, o Superior Geral da Congre-gação Redentorista, Pe. Matias Raus, aceitou o pedido de Dom Eduardo Silva, comu-nicando sua decisão ao Provincial bávaro por meio do Conselheiro Geral Pe. Carlos Dilgskron, em carta datada de 11 de junho de 1894. Nela o Conselheiro afrma que
Nestes dias visitou-nos um bispo do Brasil que tem uma enorme diocese, onde há quatro tribos de selvagens; poucos, porém, são os padres e não são dos melhores. Pediu ajuda, com lágrimas nos olhos, ao Pe. Geral. O Pe. Geral viu nesse pedido um sinal de Deus, crendo que ele vale em primeiro lugar para a província bávara. Certo de que aí não faltam almas heroicas, que não receiam pobreza e não desprezam pobres índios e cristãos abandonados, o P. Geral acei-tou o pedido do bispo.21
Ao aceitar a missão, um novo horizonte de expectativas abriu-se para os redentoristas bávaros, que não apenas vislumbravam a possibilidade efetiva de realização de seus ideais missionários, mas poderiam fazê-lo em uma terra longín-qua, cuja imaginação europeia fora enriquecida por décadas, desde a publicação dos relatos de viagens dos naturalistas europeus que visitaram o Brasil naquele século. Tal imaginário, idealizações e expectativas fcaram registradas nas dezenas de cartas entre os confrades que se preparavam para a missão. Já no dia 13 de junho, por exemplo, o Conselheiro Geral, Pe. José Schwarz, escreveu ao Pe. Schöpf, acrescentando que a diocese aceita era, sozinha, maior que toda a Alemanha, con-tando apenas com 40 padres.22 Em resposta, Schöpf afrma à Schwarz que a notícia animou toda a província, e que "um número maior do que o necessário de padres e irmãos se ofereceu para esta missão e alguns com grande entusiasmo".23 Em carta ao Superior Provincial, Pe. Anton Schöpf, por exemplo, o jovem Ir. André expressa-va seu grande entusiasmo e desejo pela missão brasileira:
Todas as cartas vindas do Brasil falam da necessidade de irmãos. Tenho um desejo imenso de ir para lá, para trabalhar com todas as minhas forças. Não ten-ho sossego, enquanto não lhe escrevo, pedindo-lhe a licença de ir para o Brasil. [...] Farei 17 anos a 13 de junho e poderei imigrar. Seria grande felicidade! Peço-lhe, pois, essa permissão. Irei rezar nessa intenção até conseguir o que desejo.24
Não foi difícil, portanto, encontrar missionários interessados na missão bra-sileira. Antes, o entusiasmo expresso pela missão permite-nos perceber o tipo de expectativas que se construiu sobre o Brasil e sobre Goiás. Para iniciar a missão no Brasil sem desprover a província bávara, que ainda aguardava autorização de retorno à pátria, foi necessário escolher um número muito preciso de religiosos. O dilema encontrado, todavia, foi entre padres demasiado jovens, portanto sem experiência pastoral e missionária, ou padres mais velhos, mas já com difculdades para o aprendizado da língua e de adaptação em um país tão diferente do centro europeu. Ao fnal, foram selecionados 14 religiosos, sendo 7 padres (dentre os quais 5 possuíam idade entre 47 e 65 anos, e apenas dois jovens com menos de 30), e 7 Irmãos (dentre os quais apenas 1 possuía idade superior a 50 anos). Do total de religiosos enviados ao Brasil, metade foi destinado a Goiás, e a outra metade à cidade de Aparecida, em São Paulo, a pedido do então arcebispo paulista Dom Joaquim Arco-verde.25
Em termos numéricos, entre 1894 e 1920, a Província Bávara enviou para o Brasil um total de 72 confrades, entre padres e irmãos. Destes, 13 desistiram: 9 voltaram para a Bavária, dos quais 4 deixaram a Congregação, fxando-se os de-mais no Brasil. Este número relativamente baixo de desistências (cerca de 18%, dos quais apenas 5% deixaram a congregação) demonstra, por um lado, que houve de fato certo choque e até frustração das expectativas iniciais.26 Todavia, este número demonstra, por outro lado, a capacidade de adaptação de tais expectativas por meio de novas experiências, o que, na condição antropológica das categorias de Koselleck, indica que os valores e ideais missionários partem de fato de condições humanas da "sobrevivência" como imigrante em terra estrangeira.
A missão no Brasil como "viagem de refundação"
A viagem missionária para uma terra estrangeira tem propósitos bastante espe-cífcos que, em geral, fazem parte de um conjunto de crenças religiosas em um suposto chamado divino para o auto sacrifício em prol da salvação de outros. Es-sas crenças, portanto, tornam sua viagem um tipo muito peculiar, que deve ser compreendido como diferente daquela empreendida pelo viajante comum, cujo intento de retorno talvez seja um dos seus principais diferenciais. Nesse sentido, é útil apresentarmos aqui uma breve análise comparativa entre duas formas de "viajantes estrangeiros" que desembarcaram no Brasil ao longo do século XIX e início do XX: por um lado, os missionários religiosos, objeto de nossa pesquisa, e, por outro, os naturalistas europeus que visitaram o país nas décadas anteriores.
Por conta do processo de colonização e monopólio comercial, a presença of-cial de europeus não-portugueses no Brasil não ocorreu antes do início do século XIX. Somente a partir das guerras napoleônicas e da fuga da família real portugue-sa para sua colônia americana, em 1808, este processo passou a mudar. Naquele mesmo ano, no dia 28 de janeiro, o príncipe regente D. João de Bragança emitiu o Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas, que permitiu, entre outras coisas, a presença de pesquisadores estrangeiros em terras brasileiras. A partir daí, ao longo de todo o século XIX, a fauna, fora e cultura brasileiras passaram a ser objeto de investigação de viajantes (chamados "naturalistas"), que registraram publicações fundamentais para compreender hoje parte da história do Brasil. No caso específco de Goiás, passaram por ali importantes nomes, como os alemães Johann Baptist von Spix e Karl Friedrich von Martius, o austríaco Johann Emanuel Pohl, os franceses Auguste de Saint-Hilaire e Francis Castelnau, os ingleses Willian John Burchell e George Gardner, dentre vários outros.27
No que se refere aos viajantes, podemos defnir sua condição como a de "su-jeitos em trânsito". Isto é, devido ao fato de não permanecerem em seu local de destino por mais tempo do que o necessário, tais viajantes não se comprometiam com tal local e seus habitantes, seja do ponto de vista das suas condições ma-teriais, seja com relação ao que perceberam como aspectos culturais singulares. Assim, podemos defnir a passagem dos viajantes naturalistas do século XIX pelo Brasil como uma "viagem de retorno", visto que suas perspectivas não eram outras senão "ir, ver, retornar e narrar", conforme refete François Hartog:
Quanto à viagem "ordinária", pressupõe seguramente o retorno: a narrativa que se faz (no retorno) é uma das leis de sua "organização", tanto que Pascal assi-nalou-a, para condená-la, como curiosidade: "curiosidade não passa de vaidade. O mais frequentemente, não se quer saber senão para se falar; de outro modo,não se viajaria pelo mar -para não se dizer jamais nada e pelo único prazer de ver, sem esperança de jamais comunicar-se o que se viu". Ninguém viaja pelo único prazer de ver. Excedendo o instante, a viagem estende-se para um futuro que permite ao viajante contemplar-se, memorizar o que há para se ver e sabo-rear o prazer de ver.28
A partir dessa refexão, podemos classifcar os viajantes naturalistas como "su-jeitos em trânsito", ou seja, indivíduos que se deslocam no espaço com intenção de ali não permanecer e, ao retornar, narram sua epopeia por um lugar cuja alteridade em relação à Europa é a marca central de seus olhares. É neste sentido que pensamos a maneira como essa condição de viajantes -portanto, de sujeitos que não querem mais do que retornar de sua aventura e narrar aquilo que nela viram- condiciona e, de certo modo, determina a maneira como os viajantes observaram a realidade de um lugar distante do mundo europeu de onde partiram e para onde desejam retornar. Assim, "das primeiras narrativas até as últimas, em contextos e propósitos completamente diferentes, percebe-se a manutenção do olhar em trânsito, daquele que enxerga, mas não vê".29 Portanto, podemos afrmar, de uma maneira geral, que a produção da narrativa do viajante está fundamentalmente condicionada por um caráter de retorno. Ou seja, o viajante não possui em seu horizonte de expectativas outra coisa senão seu retorno e sua narrativa.
"Retorno" e "Narrativa", portanto, compõem elementos fundamentais de uma espécie de "antropologia do viajante" defnida por François Hartog, afnal, "pode-se separar, de um modo geral, viagem e retorno? Uma viagem sem retorno, não por acidente, mas em sua própria defnição, seria ainda uma viagem?".30 Nesse sentido, o retorno torna-se tão necessário quanto o ato de narrar, uma vez que o não-retor-no signifca (no sentido de uma viagem) a perda, ou a morte.
A perda ou a morte para os viajantes naturalistas, neste caso, não se restrin-ge ao corpo físico. Antes, perder-se em sua viagem poderia signifcar muito mais: perder-se no outro, ou no tempo do outro, no sentido de retroceder face à alteri-dade temporal do moderno europeu ao antigo (ou selvagem) encontrado no Novo
Mundo. O resultado disso foi a necessidade de sempre referir-se a este "outro" (o brasileiro) a partir de um olhar negativo, horrorizado, pois
O outro é sempre uma ameaça -e o outro extremo representa um extremo perigo. Para manter ou recuperar sua identidade, reencontrar seu nome próprio [...] o resistente deve ser também o vigilante. O retorno de si para si produz-se em prejuízo do outro.31
É neste sentido que a narrativa ganha um papel fundamental quando se atin-ge o retorno. Para o viajante, narrar é lembrar; e lembrar é evitar perder-se mesmo depois de retornado ao seu local de origem. Assim, é por meio da narrativa que se evita perder o retorno, ainda que, do ponto de vista espacial, tal retorno já tenha sido alcançado. Em geral, portanto, é a memória o antídoto contra a degeneração de si no outro (no caso aqui analisado, o "selvagem"). Não é apenas necessário narrar o que viu-se durante a viagem, mas sobretudo construir sobre o "outro" uma relação de alteridade consigo mesmo, fazendo do Brasil uma sociedade decadente, imoral, ociosa e avessa ao progresso. Estes aspectos destacam-se nas narrativas dos viajantes aqui mencionados, sobretudo nas construídas por eles construídassobre Goiás.32
Este é, portanto, um ponto de distinção fundamental entre o que, antropolo-gicamente, Hartog defne como "viajante" e o que estamos analisando como "mis-sionário". Ainda que muitas das narrativas de viajantes e missionários se converjam na crítica do brasileiro encontrado, o olhar do religioso possui elementos distintos do viajante, que nos permitem tomá-lo como uma categoria à parte. Diferente-mente do naturalista, o missionário parte de uma ideia de "vocação", portanto, a realização de um chamado divino pessoal que determina suas condutas, posições sociais e mesmo interesses materiais. Esta ideia de estar realizando um chamado divino impõe ao missionário o abandono do retorno, uma vez que tem a certeza de que sua viagem exige de si o "sacrifício" da terra natal em prol da transformação do lugar (e, consequentemente, das pessoas) para onde se destina sua "missão". Este aspecto pode ser notado, por exemplo, na despedida dos missionários da sua missão bávaro-brasileira:
"Estávamos de arrumação, aproveitando-nos destes dias que ainda nos sobra-vam, quando sobreveio, ainda a tempo, o pai com mamãe e irmãos para me darem o adeus derradeiro neste mundo e o 'Até à vista no Céu'".33
Assim, diferentemente do viajante que busca o retorno, o missionário não pode "pecar" pela vaidade da viagem pela pura curiosidade. Antes, o religioso, por conta de sua convicção em relação à sua vocação, precisa desejar e estar conscien-te da renúncia de sua pátria e do seu não-retorno. Ao fazê-lo, o missionário realiza aquilo que Hartog denomina uma "viagem de fundação".34 Tais perspectivas fcam explícitas, por exemplo, quando Gebardo Wiggermann, líder da fundação da mis-são bávaro-brasileira, escreveu ao seu Superior Provincial, Pe. Luís Küppers, que, ainda que a missão necessitasse de novos confrades, não deveriam ser enviados "esses, que só querem ver terras, cavalgar, estudar a natureza e plantas etc. Estes
só causam dissabores".35
Estas divergências quanto ao retorno, todavia, não impedem que o missioná-rio, ao se deparar com uma realidade em tudo diferente da sua terra natal, resista ao "outro" como forma de manutenção da sua própria identidade. Tal como o via-jante naturalista, o missionário critica constantemente aquilo que vê, compara com sua própria terra, e rebaixa o brasileiro e goiano a uma condição de inferioridade quando comparado ao europeu. É o que podemos notar, por exemplo, na descri-ção que os cronistas da fundação redentoristas fazem das igrejas encontradas em Goiás em sua chegada. Ao descrever a cidade de Campininha das Flores, para onde se destinaram os redentoristas em Goiás, Pe. Lourenço Gahr, registra:
Não mais de 50 são as casas ou choupanas de Campininhas. No centro, no lugar mais belo, ergue-se a miseranda igreja matriz, feita de taipa. Quem jamais viu desasseio das igrejas de Goiás em geral e da nossa em particular.36
Mesmo no aspecto cultural, o goiano é descrito constantemente como "pre-guiçoso" e "imoral", tal qual o descrevem os viajantes naturalistas no início do século. Vejamos estas semelhanças: quando Johann Emanuel Pohl, naturalista ale-mão, passou por Goiás entre 1817 e 1821, descreve que
Apesar desses meios coercitivos, o trabalho é feito com genuína preguiça bra-sileira. [...] só às 8 horas da manhã, o trabalhador se dirige à mina e, às 9 horas, vai para casa por meia hora para o pequeno almoço. Um chifre de boi dá o sinal para a volta ao trabalho, que então é continuado até às 12 horas. A refeição do meio-dia e a sesta tomam mais duas horas e já às 5 horas cessa o trabalho. Quando chove não se trabalha absolutamente.37
De modo semelhante, os redentoristas criticam a mesma cultura de trabalho goiano quase um século depois:
Os trabalhadores são avessos ao trabalho. A ele se submetem apenas o tanto quanto julgam necessário para a subsistência.38
Que fazem aqui o dia todo? Alguns trabalham, especialmente os pretos, que também sabem bancar os grão-senhores, pondo colarinho duro e punhos na ca-misa etc. Um genuíno brasileiro não faz outra coisa durante o dia, senão dormir, comer e conversar, e nisto eles são mestres.39
Como conservamos o sistema alemão de almoço às 11:30h, precisamos de um café com leite pela manhã; só uma chicarazinha não chega até o meio dia.
(O sistema brasileiro é o da preguiça: das 9 às 10 almoço, às 4 horas = janta, perdendo-se as melhores horas de trabalho).40
Esta crítica à cultura de trabalho brasileira e goiana relaciona-se a todo um processo de implantação do modo capitalista de produção na Europa, ainda muito débil no interior do Brasil, algo que se transforma progressivamente tanto pelo processo de migração da Europa e do litoral brasileiro para o sertão, quanto pela modernização que se impõe ao interior do Brasil ao longo do século XX. Todavia, interessa-nos o fato de que, apesar das evidentes semelhanças na crítica imposta à cultura do outro em sua narrativa, viajantes e missionários acabam por distinguir-se visceralmente quando se trata na necessidade de transformação desse outro ali encontrado. Clara fca esta distinção quando nos deparamos com a interessante descrição que os cronistas redentoristas fazem da primeira casa que lhes foi desti-nada como convento em Goiás.
Quando falamos de convento, não vá o leitor destas linhas imaginar-se um edi-fício como os que na Europa se destinam para residência de Religiosos. Nosso primeiro convento não passava de uma cabana feita de ripas rebocadas com barro. [...] Isto foi o nosso primeiro convento. Assoalho é coisa que não existia nesta casa, nem em todo o estado de Goiás. O piso é a terra nua. O goiano ao construir a sua casa não se dá o menor trabalho de ao menos aplainar o chão em seu interior. Muito menos é de encontrar-se em Goiás casa forrada. A única cobertura é precário teto de telhas ou de sapé. Não é, pois, de admirar se os diversos cômodos do convento, principalmente a cozinha, estavam cheios de água, quando a vinda de nossos padres. Por ocasião das chuvas a água chegava a cair em cheio em nossos pratos e copos [...].41
Quando analisamos a descrição acima, percebemos que, aparentemente, não há tantas diferenças entre a forma como missionários e viajantes percebiam as li-mitações materiais em Goiás. Todavia, o compromisso com o local e sua população por parte dos missionários, se comparado com a fugacidade da passagem dos via-jantes, dão o tom de umas diferenças antropológicas signifcativa de seus olhares.
No mesmo documento de crônica da fundação da missão redentorista bávara em Goiás, após todo um conjunto de descrições desfavoráveis sobre as condições ma-teriais de seu destino recentemente conhecido, os cronistas destacam que:
Enganar-se-ia, contudo, quem nos julgasse tristes por vida tão pobre e afadigo-sa. Nada disso, o que nos faltava em consolações terrestres, era reposto pela graça de Deus por tal forma, que nunca estivemos tão alegres como naqueles tempos em que chegávamos a tirar da mesma miséria motivos de alegria.42
Nesse sentido, é possível afrmarmos haver nas narrativas dos missionários diferenças signifcativas se comparadas com os viajantes naturalistas. Ainda que a alteridade narrada seja bastante semelhante (especialmente por conta de um cam-po de experiências comum europeu e do choque com a realidade encontrada), é no horizonte de expectativas que encontramos, de fato, as diferenças. Se, como argumentamos, o desejo pelo retorno marcava o tipo de viagem dos naturalistas, a consciência do não-retorno por parte dos missionários -ou seja, a necessidade de transformação do local a que se destina a fundação de uma "nova-pátria"-, é a marca fundamental daquele que acreditar ter uma "missão" e uma necessidade de um "sacrifício pessoal" para se atingir as expectativas de cumprimento de sua "vocação". O resultado dessa diferença é que, para o viajante, há a necessidade de retornar e narrar sua alteridade para com o "outro" encontrado, mas para o missio-nário, o fundamental é a transformação desse "outro", de modo que a narrativa de fato não passa de um registro de um processo antropológico de seu choque cultural.
Assim, é notória a condição assumida pelos missionários de viajantes fundado-res de um novo lar, uma nova pátria, ou seja, sem qualquer perspectiva de retorno. François Hartog, ao pensar a antropologia do "viajante" como fundamentalmente distinta do "viajante fundador", utiliza uma interessante comparação entre duas literaturas de epopeias consideradas fundantes da cultura ocidental. Por um lado, o viajante Ulisses, na Odisséia de Homero, representa o viajante que "não deseja mais que retornar a Ítaca, deixando Troia enfm destruída".43 Por outro, Eneias, em Eneida, de Virgílio, "deixa Troia em chamas para não mais voltar".44 Todavia, ainda que a epopeia de Eneias não lhe traga de volta à sua terra natal, geografcamentefundação, na verdade, uma refundação. Assim,
[...] todos os esforços de Virgílio tendem, com efeito, a transformar errância em retorno -que é posto em cena por Virgílio como se ele próprio o ignorasse- para a terra desconhecida das origens. [...] A fundação é refundação, é repetição, embora, ao mesmo tempo, completamente inédita. Troia "retorna" onde jamais esteve e onde está, todavia, desde sempre: para sempre.45
O que Hartog nos apresenta, portanto, é uma condição antropológica do via-jante-migrante, ou seja, aquele que deixa sua pátria para o não-retorno, todavia a leva consigo na esperança de torná-la novamente viva por meio da sua própria sobrevivência. Este ato de "fugir para que Troia não pereça",46 portanto, acaba por levar o retorno da pátria ao encontro do outro, razão pela qual o estranhamento cultural acaba por tornar-se necessidade de transformar o outro em si. No caso dos redentoristas, há duas décadas exilados de sua terra natal, a missão no Brasil poderia signifcar, adaptando a citação original de Hartog, uma "fuga para que a Baviera não pereça". Isto se tornará ainda mais evidente à medida que, nas próximas seções deste artigo, demonstrarmos o modo como as transformações imputadas pelos redentoristas alemães em Goiás remontava constantemente ao retorno sim-bólico à pátria alemã.
Assim, o horizonte de expectativas dos missionários, fundamentado no seu campo de experiências e ideais religiosos próprios, foi posto à prova pelo natural choque de realidade quando tais missionários se depararam com a realidade brasileira e goiana. Este choque resultou ora no desencantamento religioso desse horizonte de expectativas, ora no seu reencantamento, ou reelaboração. Em todo caso, é esta transformação o fundamento da construção dos novos horizontes de expectativas que faz parte de um caráter histórico e, pode-se dizer, antropológico da condição de quem migra para (re)fundar uma nova pátria em uma terra distante e distinta da sua natal.
Horizontes reelaborados: olhares e adaptações dos redentoristas bávaros em Goiás
A realidade encontrada pelos redentoristas no Brasil, como não poderia ser dife-rente, distinguia-se em quase tudo do campo de experiências vivenciado por cada missionário bávaro em sua terra natal. No caso de Goiás, ainda mais especifca-mente, tratava-se de um típico espaço de fronteira, distante não apenas no espaço, mas sobretudo no tempo em relação ao grau de desenvolvimento e modernização do litoral brasileiro e, especialmente, da Europa em industrialização. Assim, Goiás representava, por um lado, um farto e fatigante campo de trabalho missionário e, por outro, um espaço limítrofe entre a civilização e a barbárie, entre o progresso e o atraso, entre o pagão e o cristão. Segundo Adriana de Oliveira,
A alteridade é percebida na fronteira mediante o estabelecimento das di-ferenças, e a condição de "estar-entre" é que permite apreendê-las. Assim, a colisão de diversidades estabelece espaços e tempos próprios, em que os pri-meiros (espaços) abrigam o desencontro dos segundos (tempos). Na fronteira coexistem tempos diversos, porque diz respeito ao espaço limítrofe entre o presente e o devir.47
Esta noção do espaço de fronteira como lugar de coexistência de tempos di-versos, de limite entre o presente e o devir, ajuda-nos a perceber o modo como os redentoristas bávaros, vindos de uma Alemanha em marcha de desenvolvimento e progresso, bem como de signifcativa consolidação da cristandade institucional ca-tólica, perceberam e lidaram com o "outro", o "brasileiro", o "goiano", o "selvagem", aquele cristão ainda "não cristianizado".
Neste sentido, o processo de refundação da pátria (no sentido antropológico proposto por Hartog e esboçado na seção anterior) coincidia com a necessidade de transformação do outro encontrado no Brasil. Tal transformação fazia parte do ideal missionário (no sentido religioso de conversão, ou recristianização), mas ultrapassava a perspectiva religiosa na medida em que se intentava não raramente a "germanização" do povo brasileiro, algo que gerou, por um lado, frustrações pela evidente resistência cultural do sertanejo e, por outro, a necessidade de se reela-borar as expectativas iniciais trazidas do campo de experiências europeu. Assim,
o evidente fracasso na "germanização" da nova pátria foi motivo de frustrações e reclamações por parte de muitos missionários, como descreve o Pe. Antônio Lisboa Fischhaber ao posicionar-se contra a formação de um clero redentorista no Brasil:
O brasileiro não quer tornar-se alemão, e nisto está a maior difculdade. O brasi-leiro tem muita paciência com o estrangeiro. Pacientemente ele ouve todos os erros linguísticos; mas se toca nos costumes, então ele perde todo o respeito de sacerdote ou bispo. O brasileiro é preguiçoso, melancólico, provocado se torna um animal selvagem, sem nenhuma perseverança, não se pode decidir-se a nada; prova tudo e na menor difculdade desanima. Um caráter inadequado para fazer algum progresso na vida espiritual e ainda mais para dar garantia de perseve-rança numa ordem.48
Esta ideia de que o brasileiro deveria "tornar-se alemão" foi, portanto, o ali-mento de muitos horizontes de expectativas desses missionários no Brasil. Muitos deles ansiavam, por meio de sua atuação missionária, "re-cristianizar" o povo bra-sileiro. Todavia, mais do que isso, acompanhando seu ideal propriamente religioso, muitos deles igualmente intentavam uma "germanização" do Brasil.
Tais intentos, todavia, não foi generalizado. Desde o início, alguns missioná-rios bávaros compreenderam a importância de respeitar e se adequar a parte dos costumes brasileiros como forma de conquistar sua confança. Ainda em 1897, por exemplo, Pe. Lourenço Hubbauer afrmava que "nós não temos o direito de tirar ao povo o seu modo de agir e pensar, e impor a nossa mentalidade alemã".49 Os mesmos missionários, ao criticar aqueles que intentavam mudar a mentalidade do povo local, escreveu ao seu Superior Provincial, Pe. Anton Schöpf:
E, se alguém julga o povo daqui meio selvagem, não se precisando por isso de muitas cerimônias, nem civilidade, melhor é que fque por lá para não causar má impressão. Sei de diversos casos que chocaram e causaram admiração pela falta de civilidade. Há pouco, uma pessoa da cidade vizinha disse-me o que cau-sava reparo e desagrado em nossa atitude, acrescentando que, aqui também há livros ensinando boa conduta e, prometeu mandar-me um. Cada povo tem suas particularidades, (usos e costumes próprios) e esses germanizadores, que procuram pôr uma capa alemã no povo brasileiro hão de se desiludir, perdendo o amor e a confança do povo. Compreendo que se deve ser prudente e não permitir abusos; mas se nós temos de lutar a vida toda contra suas paixões e alguns envelhecem na sua cólera, vaidade e criancices, como é que se pretende obrigar um povo a adotar o caráter alemão? Quem pensa que é só o que ele aprendeu e viu na sua terra é o bom e o certo fque lá, vivendo bem e fazendo o bem, pois noutro lugar só veria o mal e não teria esperança de fazer o bem.50
Algumas expressões de Hubbauer sobre o tema são-nos caras. Hubbauer criti-ca quem acredita na superioridade cultural alemã, "quem pensa que é só o que ele aprendeu e viu na sua terra é o bom e o certo", e, por isso, deseja impor seu cam-po de experiências sobre o campo de experiências brasileiro. A estes, Hubbauer recomenda que" fque por lá", pois, do contrário, aquele que não está disposto a construir um horizonte de expectativas com elementos também da experiência brasileira e goiana, "só veria o mal e não teria esperança de fazer o bem". Sendo assim, para o jovem clérigo alemão, "hão de se desiludir" aqueles que não se per-mitem adaptar.
Este modo como Hubbauer encara a relação cultural entre brasileiros e ale-mães demonstra o que o historiador Reihart Koselleck concluiu bastante bem ao analisar o choque entre experiências e expectativas:"em primeiro lugar as coisas acontecem diferente, em segundo lugar diferente do que se pensa" - esta determinação específca da sequência temporal his-tórica, baseia-se na diferença entre experiência e expectativa. Uma não pode ser transformada tranquilamente na outra. "Quando as coisas acontecem dife-rentemente do que se espera, recebe-se uma lição. Mas quem não baseia suas expectativas na experiência também se equivoca. [...] Estamos diante de uma aporia que só pode ser resolvida com o passar do tempo.51
Portanto, em face da realidade do Brasil, a frustração seria inevitável para os missionários que não aceitassem, de fato, sua própria transformação ao tentar realizar sua missão sobre o "outro". Ou seja, a "refundação da pátria" não poderia dar-se como um espelhamento natural de sua terra natal, mas na adaptação de si à realidade do outro, fundindo em um novo horizonte de expectativas, diferentes campos de experiências.
O próprio Lourenço Hubbauer, em sua defesa da necessidade dessa adaptação à cultura e costumes do Brasil, afrma ser "bastante manhoso e esperto, sabendo dirigir-me entre dois fogos, ajeitando-me ao germanismo do P. Superior, sem me deixar queimar pelo brasileirismo do povo".52 Esta postura singular de Hubbauer explica o sucesso da missão bávaro-brasileira em Goiás e em São Paulo, pois os ca-tólicos locais perceberam nos missionários estrangeiros não um colonizador, mas pessoas interessadas em construir algo novo em benefício dos autóctones. Mais do que isso, essa postura também revela uma série de confitos vividos pelos religio-sos bávaros no Brasil, especialmente no que tange estas diferenças na forma como lidar com os brasileiros que lhes recebiam. Quando frustrados em sua intenção germanizadora, muitos missionários escreveram cartas e mais cartas lamentando um suposto quadro de caos religioso e moral no Brasil. Estas situações geravam dessabores e embaraços para os superiores da missão, como relatou o superior Pe. Gebbardo Wiggerman aos seus superiores na Alemanha:
É afnal uma grande cruz para um superior no Brasil que cada súdito, mesmo os padres mais novos e até irmãos, se sintam chamados a mandar à Europa apreciações sobre costumes, a fazer julgamentos sobre a terra e o povo, cada um segundo a própria cabeça; assim é natural que se tenha uma ideia falsa. Em Goiás, é certo que não temos brilhantes missões como na Europa; mas temos as almas mais abandonadas de todo mundo; [...] Pensei muitas vezes que, na Europa, eu não sei se salva de fato uma alma, pois se eu não estou à disposição, há outros 100 confessores; outra coisa é aqui: não estando nós aqui, morrem, num círculo de 100 léguas, sem padre, e se perdem. Um outro erro deplorável é que alguns padres querem todas as circunstâncias como elas são na Europa; Pe. Wendl admira-se muito, porque todas as pessoas não vão à missa aos domin-gos, e se trata de gente que durante a vida toda nunca ouviu uma prática, uma catequese, nunca ouviu o que seja uma missa; nunca ouviu quantas pessoas há em Deus, nada sobre os mandamentos de Deus e ainda menos sobre os da Igreja. É um erro exigir dessa gente o que se exige das pessoas instruídas da Europa. Acrescente-se ainda que de todos os habitantes de Goiás, apenas 5% estariam obrigados à missa, segundo a moral, por causa das grandes distâncias e porque nem todos têm cavalgadura.53
É curioso perceber que, por um lado, Wiggermann argumenta a favor da adap-tação das expectativas clericais sobre o povo goiano, não exigindo dele o que poderia ser exigido dos alemães, que possuíam não apenas condições materiais diferentes do brasileiro, mas também um campo de experiências religiosas distin-to. Todavia, o ímpeto da missão (enquanto a obrigação e o desejo de "salvação das almas" imposto pelo chamado divino) prevalece em sua argumentação. Ou seja, os "antropólogos-missionários" Wiggermann e Hubbauer que aqui argumentam, não estão renunciando ao seu horizonte religioso em pro da compreensão do outro, mas adaptando-o de modo a melhor atingir os objetivos da sua missão e vocação.
Diante isso, parece importante questionarmos: o que de fato tornou tão di-ferenciadas as formas como Wiggermann e Hubbauer lidaram com essa questão, em comparação a outros de seus confrades, também missionários, e igualmente alemães? Isto é, partindo de um campo de experiências semelhante, o que fez com que se construíssem nesses sujeitos horizontes de expectativas de fato tão distintos? A resposta para essas questões, segundo nos parece, não pode ser en-contrada apenas ao analisar-se o campo de experiências de tais sujeitos na Europa, mas, sobretudo, na forma como as novas experiências vividas (ou por eles mesmos permitidas) no Brasil foram por eles elaboradas.
Hubbauer e Wiggermann possuíam diferentes campos de experiência cons-truídos na Europa. Enquanto o Wiggermann foi padre secular antes de ingressar na Congregação Redentorista em 1872, ou seja, vivendo praticamente toda a sua ex-periência com a congregação no exílio antes de sua partida par ao Brasil, Hubbauer tinha apenas 22 anos de idade, não era ainda ordenado padre e, portanto, sem qualquer campo de experiências como sacerdote quando chegou no Brasil. No entanto, a despeito dessas diferenças anteriores, ambos tiveram, ao chegar, uma importante experiência em comum: foram destinados inicialmente à casa de Goiás.
Em Goiás, a realidade material dos missionários redentoristas foi marcada, diferentemente de São Paulo e da Alemanha, sobretudo pela limitação, forçando os religiosos a enfrentarem, logo de início, com privações de comida, transporte, residência, entre outras. Portanto, no sertão goiano, as expectativas anteriores de sacrifícios e privações foram de fato realizadas de modo intenso e direto. É eviden-te que essa realidade por si só não foi o sufciente para gerar uma postura mais fexível para com o povo brasileiro em todos os missionários que passaram por Goiás.54 Todavia, quando olhamos de um ponto de vista mais genérico, os missionários que estiveram primeiro em Goiás de fato tiveram uma postura diferenciada para com o povo brasileiro em médio e longo prazo, como os casos dos padres Gebardo Wiggermann, João da Mata Späth, Miguel Siebler e Lourenço Hubbauer, em contraste com aqueles que foram primeiramente destinados à Aparecida (Padres Lourenço Gahr, José Wendl e Valentin von Riedl), que, em geral, tiveram uma postura mais crítica e confituosa face aos costumes locais.55 Assim, pelo me-nos nos primeiros anos, podemos afrmar que os diferentes choques de cultura e realidade locais geraram construções de distintos novos campos de experiências no Brasil. Este argumento pode ser corroborado por carta escrita pelo Pe. Lourenço Hubbauer já em 1896, em carta ao Superior Geral, Pe. Matias Raus:
Cada padre tem quarto próprio; a pobreza brilhava no começo, agora, porém, está sendo posta de lado. Ela é-me querida. Procurarei conservá-la no seu lugar de primazia, alegrando-me ao poder entrar num quarto vazio, só com o brilho da pobreza. [...] Em casa ouvem-se queixas sobre faltas e privações desses que não experimentaram nossa primeira pobreza. É difícil contentar a quem se acos-tumou à comodidade europeia e quer tudo pronto e arranjado. [...] Quem não se acomoda pode morrer de afição e despeito, tantas são as ocasiões. Custa até que a gente se acostume aos costumes e particularidades de um povo, até que um alemão se ajeite ao brasileirismo. Quem não toma isso em consideração e pensa que suas próprias opiniões e particularidades são normas do certo e do melhor, causa aborrecimentos e não é capaz de aceitar admoestações justas e bem intencionadas. Não está no caminho certo para os corações.56
Nesta mesma direção, como superior da missão bávaro-brasileira, o padre Ge-bardo Wiggermann, para quem "numa terra de condições tão diferentes das da Eu-ropa nem tudo pode ser levado ao rigor da letra",57 admoestava seus subordinados a abandonar o rigorismo germânico no trato com o povo simples, especialmente nas pregações e no confessionário:
Quero admoestar os confessores para não serem muito rigorosos, nas pregações e no confessionário, quanto aos preceitos da Igreja (santa missa aos domingos, observância da sexta-feira). Em Goiás quase ninguém está obrigado a eles, por-que é simplesmente impossível. Como assistir a uma santa missa, se faltam vestes ou animal, etc. ou se chove? E, prescindindo de tudo isso, ninguém sabe lá que missa no domingo é preceito grave. Seria uma imprudência terrível, se um padre dissesse: "quem falta à missa, ou come carne na sexta-feira, comete pecado mortal". Por enquanto deixemos o povo em sua boa fé; tanto mais por ser impossível para quase todos os goianos a observância desses preceitos. [...] Peço, não sejam os padres rigorosos nisso. Afnal, apelo, ajam com bondade. Após 100 anos, quando os goianos forem bem instruídos no catecismo, poder-se-á proceder com mais rigor. Os brasileiros estimam o trato benevolente. Rigor e dureza es-tragam tudo, especialmente, no começo. Não temos por hora e por muito tempo ainda, outra coisa a fazer senão ganhar os corações. Se, no foro interno, não se achar matéria absolutionis, deve-nos ser claro que essa pobre gente não ouviu nunca em sua vida algo sobre os mandamentos de Deus. Procurando-se alguma matéria (descuido no serviço de Deus) reze-se com a pessoa o ato de contrição e dê-se-lhe a absolvição sub conditione.58
Essa posição de Wiggermann, contrária a um rigorismo tão caro às gerações anteriores de redentoristas alemãs, cujo sucesso das missões na Baviera era medi-do pela quantidade de lágrimas derramadas nos confessionários, demonstra, por um lado, as transformações pelas quais a própria congregação passou entre uma geração e outra durante sua experiência de exílio; por outro lado, essa clivagem demonstra também a importância de adaptação de expectativas em um lugar ou-tro, tão distinto da própria pátria. Tal fexibilidade, tanto individual quanto coleti-va, foi no Brasil e em Goiás a razão do sucesso posterior dos redentoristas entre a população sertaneja.
Desse modo, ainda que muitos não tenham suportado o impacto das frustra-ções de expectativas, como o caso do Ir. Theodoro Gihwein, que suplicava ao seu superior para arranjar-lhe "um lugar, onde eu possa merecer o meu pão até tomar um navio que me leve de volta à Alemanha; tenha piedade de mim, para eu não desespe-rar",59 na maioria dos casos, aqueles que outrora lamentavam o campo missionário, progressivamente convertiam suas frustrações em um novo campo de experiências suportável, adaptando, consequentemente, seu próprio horizonte de expectativas. Este foi o caso, por exemplo, do Ir. Henrique Kummermeier que, embora inicialmente tivesse insistido em voltar para a Europa por não adaptar-se ao Brasil, mostrava-se arrependido, já em 1896, das lamúrias, escrevendo ao Superior Provincial, Pe. Anton Schöpf, em 13 de outubro de 1896:
Estou lhe falando com sinceridade ao dizer-lhe que choro, pensando na minha ingratidão com Deus e nos meus pecados e estar neste trabalho. Há muito a sofrer, mas o pensamento no céu e nas almas adoçam o trabalho e as penas. Em alguns dias a caminhada era de 8 a 10 léguas, debaixo de sol ardente; o meu cansaço era tanto que quase não conseguia manter-me em pé. Graças a Deus suportei tudo, aprendi por experiência que Deus ajuda a quem obedece. Sinto-me melhor agora, com mais saúde e acostumado ao clima. Já me enver-gonhei muitas vezes do que lhe escrevi antes, da minha pusilanimidade. É de joelhos que peço-lhe perdão.60
O mesmo ocorreu com diversos outros missionários que, embora inicialmente lamentassem as mais diversas limitações materiais em Goiás, em poucos anos con-verteram-se em amantes do sertão brasileiro. Pe. João Batista Kiermeier, por exem-plo, já em 1908 afrmava ao então Superior Provincial, Pe. José Stummer, que já era "de todo o coração um brasileiro, animado do desejo de trabalhar pelo Brasil e de morrer no Brasil".61 Pe. Conrado Kohlmann, em 1924, chegou a afrmar também que "eu acho que Deus me fez para Goiás".62 Já o Pe. Clemente Heinrich, quando da fundação redentorista na região sul do Brasil comenta que, de tão acostumado no Brasil e com a língua portuguesa teve difculdades com a língua materna ao pregar entre os colonos alemães: "no começo era-nos estranho pregar em alemão; desde que sou padre, há 18 anos, nunca havia pregado em alemão. Mesmo o Pai-Nosso, a Ave-Maria e o Credo soavam-nos estranhos".63 Por fm, mesmo o próprio Pe. An-tônio Lisboa Fischhaber, que outrora reclamava da difculdade dos brasileiros não aceitarem "tornar-se um alemão", admitiu em 1907:
No começo, os primeiros a vir pensavam que tudo devia ser germanizado como na Bavária. Agora, porém, isto está mudado; a gente se torna brasileiro sem o perceber. As forças diminuem, a gente esmorece, porque a natureza não supor-ta. Não faltam difculdades, mas quando se é prudente, muito se consegue fazer. Eu pessoalmente nada mais quero da Bavária etc., quero morrer aqui se for da vontade de Deus.64
Tais adaptações, todavia, não devem ser vistas como sinal de pouco empenho dos missionários redentoristas bávaros pela transformação do local de destino. Antes, as adaptações à cultura e população local por alguns deles defendidas tin-ham como objetivo último a "recristianização" das populações afastadas da Igreja, conforme defniu o fundador da Congregação ainda no século XVIII, Afonso Maria de Ligório. Assim, é preciso diferenciarmos o ideal missionário em si (realização da vocação pessoal por meio do sacrifício em prol da recristianização das "ovelhas cristãs desgarradas da Igreja"), do processo antropologicamente normal de anseios (expectativas), frustrações (experiências) e reelaborações (novas expectativas a partir das novas experiências).
Considerações fnais
A experiência de refundação da pátria-mãe por parte dos redentoristas alemães no Brasil, tanto baseada no próprio campo de experiências alemão quanto no horizonte de expectativas construído inicialmente sobre o país, deu-se por meio de um processo intenso de adaptação de expectativas e reelaboração das próprias experiências sobre seu campo missionário. Isso, evidentemente, não é algo singular, nem aos redentoristas, nem aos missionários religiosos em geral. Antes, faz parte de toda uma condição antropológica do viajante imigrante (diferente do viajante de retorno), que precisa elaborar e reelaborar constantemente suas expectativas a partir tanto das experiências trazidas consigo de sua terra natal, quanto das novas e profundas experiências de estranhamento adquiridas neste processo de refundação, tanto de sua pátria (como processo de tentativa de adaptação do outro a si), quanto de si mesmo (como transformação interna e adaptação de si ao outro).
No caso específco de missionários religiosos, todavia, há condicionantes im-portantes em seu horizonte de expectativas que transformam este processo em algo singularmente distinto do imigrante comum. A crença na "missão" e na "voca-ção" mudam fundamentalmente a dinâmica como tais sujeitos constroem seu horizonte de expectativas e o permitem transformá-lo a partir das novas experiências. Aqui, a transformação do lugar de destino é parte da missão para a qual esses sujeitos acreditam estar vocacionados. Todavia, a beleza deste processo e o objeto que trouxemos aqui é justamente que, mesmo face a tais crenças missionárias, a trans-formação de si se mostra imperativa para que a transformação do outro aconteça.
Todavia, é preciso esclarecer, nestas palavras fnais, que as novas experiências e expectativas reelaboradas pelos missionários redentoristas no Brasil não são radicalmente opostas ao que eles trouxeram de campo de experiências de sua vida pregressa na Alemanha. Ao contrário, o campo missionário brasileiro, es-pecialmente goiano, no fnal do século XIX e início do século XX, possuía muitas semelhanças com a realidade missionária das décadas anteriores em Altötting (na Baviera), tanto com as romarias -serviço para o qual os redentoristas foram des-tinados em São Paulo e Goiás- quanto com a tentativa de "moralização" religiosada religiosidade popular. De toda forma, foi justamente nesse processo de anseio, frustração, adaptação e reelaboração que todo um importante conjunto de trans-formações (religiosas, sociais e culturais) foram realizadas no Brasil.
À guisa de conclusão, vale ressaltar que o presente artigo traz para a histo-riografa das atividades missionárias no Brasil algumas importantes contribuições: para além da análise aprofundada (a partir de fontes primárias pouco exploradas) dos missionários da Congregação Redentorista bávara no Brasil, nosso uso de uma antropologia histórica e social, a partir de importantes categorias desenvolvidas por Reinhart Koselleck e François Hartog, permite a pesquisadores do tema pensar as condições sociorreligiosas, culturais e históricas que permitem ou limitam a ação missionária em um campo tão distinto da sua experiência de origem. Na es-teira desta contribuição, vale ainda destacar que a comparação entre missionários e viajantes naturalistas oitocentistas ressaltam as singularidades impostas pelo olhar religioso e que resultam em transformações fundamentais não apenas no seu relato, mas sobretudo na sua atitude em relação ao "outro" encontrado.
Footnote
References
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