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Neste tempo que é o nosso, tão indelevelmente marcado pela relevância social e cultural da ciência e da tecnologia, mas que começou verdadeiramente a configurar-se no século XIX, a presente dissertação visa realizar um estudo interpretativo de natureza interdisciplinar no âmbito dos Estudos Contemporâneos, especificamente no que concerne ao período compreendido entre 1863 e 1905 e nas áreas de especialização de História Contemporânea, de História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia, de História da Cultura e das Mentalidades e de História das Ideias Políticas e Sociais, tendo as Viagens Extraordináriasde Júlio Verne (1828-1905) como campo de investigação.
Constituídas por sessenta e dois romances e dezoito novelas, que resultaram num corpus literário com cerca de 22 000 páginas, podendo muito justamente e não apenas por este motivo reclamar uma dimensão «oceânica», que haveriam de fazer de Júlio Verne, no âmbito da institucionalização do fenómeno da cultura de massas, uma das figuras mais emblemáticas da cultura ocidental, a coleção das Viagens Extraordináriasrepresenta a face mais visível de uma vasta produção que no final da vida deste prolífero autor contava com mais de duzentos e cinquenta títulos. A partir de elementos díspares, cenários terrestres muito pouco conhecidos, mas sobretudo insólitos (lua, fundo dos mares, entranhas subterrâneas), veículos extraordinários (balões, balas-foguetão, submarinos), descrições técnicas e científicas, considerações históricas, políticas, sociais e geográficas, reunidos sob a forma de romances de aventura com uma forte componente didática, Júlio Verne nesta coletânea, ao longo de mais de quarenta anos, conseguiu, não obstante, construir um universo coerente, o qual, na sua singularidade, dimensão poliédrica e vertente documental, se revelou um precioso testemunho para a compreensão da época contemporânea. Nesta medida, como bem considerou Daniel Compère, um dos seus mais reputados investigadores, porque as Viagens Extraordináriasse alimentam da sua época e lhe pertencem, os seus leitores têm o privilégio de escutar «as múltiplas vozes do século XIX».
Júlio Verne foi o pioneiro de um género literário que ficou conhecido como «romance científico» ou «romance da ciência», o qual, de modo algum, não obstante com ele partilhar alguns elementos narrativos, pode ser confundido com o género de ficção científica. Enquanto este género, utiliza a ciência como catalisador do enredo para fins puramente ficcionais, como efeito especial capaz de conceder à obra literária um imaginário esteticamente coerente e apelativo, independentemente do quão especulativa e fantasista seja a sua exploração dos dados científicos, no «romance da ciência» de Verne, no qual, de acordo com o seu editor Pierre Jules-Hetzel, que atribuiu o título à coleção e lhes define logo no prólogo do segundo livro, um muito ambicioso perímetro conceptual, está em causa o seguinte desígnio: «O seu objetivo consiste, de facto, em resumir todos os conhecimentos geográficos, geológicos, físicos e astronómicos amassados pela ciência moderna, e de refazer, sob a forma atraente e pitoresca que lhe é própria, a história do universo»; o discurso científico está, fundamentalmente, ao serviço de uma função pedagógica e os conhecimentos apresentados, quase sempre verdadeiros ou muito próximos da realidade, são simultaneamente a matéria-prima da ficção. Por conseguinte, é justamente por via desta dimensão didática e pedagógica, que é tanto mais notável quanto se operacionalizou no campo da educação não formal por um homem que não tinha qualquer formação científica, que o precioso legado literário de Júlio Verne se revela particularmente importante. Neste âmbito pedagógico, de divulgação científica e de vulgarização do conhecimento, através da aplicação sistemática da fórmula, «a instrução que diverte, o divertimento que instrui», ao abrigo da qual os seus livros de aventuras, traduzidos pela maior parte das línguas e em todas as latitudes, se apresentavam de uma forma eminentemente clara e atrativa, Júlio Verne conseguiu, com as suas especiais qualidades literárias e o seu peculiar talento de educador, a proeza, inigualável até hoje, de ter encontrado um método indireto, mas eficaz, provavelmente mais eficiente do que os elementos da educação formal como são as enciclopédias, os manuais escolares e outros livros didáticos, de difusão e vulgarização do conhecimento, não apenas científico, mas proveniente de todas áreas de saber. Este método tanto contribuiu para a popularização da ciência, trazendo-a para a contemporaneidade, tornando-a, por assim dizer, “cultural”, como para um incontestável progresso da instrução e alargamento dos seus horizontes, naquilo que eles têm de desejo pelo saber, de vontade de aprender coisas novas, de gosto pela investigação científica e por descobrir os segredos do universo e os porquês da vida, de anseio por viajar e conhecer o mundo e de estudar ciência.