Resumo: O texto apresentaos resultados do projeto de pesquisa científica, tecnológica e de inovaçao na área de Economia Criativa, realizado no período de janeiro de 2014 a janeiro de 2015, cujo objetivo central foi documentar e divulgar os artesaos e a produçao artesanal da Vila de Itaúnas, ES. O processo desenvolveu-se a partir de conversas iniciáis, seguidas de planejamento e realizaçao de oficinas de caráter participativo de documentaçao e divulgaçao audiovisual em tomo da produçao de artesanatos e de sua relaçao com a biodiversidade e cultura local. O objetivo inicial foi de promover espaços de expressäo e de difusáo do conhecimento entre e para a populaçao local, alcançando também um público regional, estadual e nacional. Ao longo do processo, identificou-se que as oficinas participativas e a produçao coletiva de um sitio virtual para divulgaçao das práticas e dos produtos contribuíram para a valorizaçao e reconhecimento sociocultural do artesäo e do artesanato na regiáo.
Palavras-chave: Artesanato, Ocupaçao Tradicional, Valorizaçao Cultural, Documentaçao, Meio Audiovisual.
Abstract: The paper presents the results of scientific research, technology and innovation project in the creative economy sector, conducted from January 2014 to January 2015 that aimed to document and disclose the artisans and handicraft production of Vila de Itaúnas. ES. Brasil. The process was developed from initial conversations, followed by planning and conducting participatory workshops for documentation and audiovisual dissemination around the production of handicrafts and its relation to biodiversity and local culture. The initial objective was to promote expression and diffusion spaces of knowledge among and for the local population, also reaching a regional, state and national public. Throughout the process, it was found that the participatory workshops and the collective production of a virtual site for disclosure of practices and products contributed to the development and socio-cultural recognition of artisan and craft in the region.
Keywords: Crafts, Traditional Occupation, Cultural Appreciation, Documentation, Audiovisual Dissemination.
1 Introduçâo
As atividades artesas, resistindo a todo processo de produçao industrializada, se mantêm entre as formas de geraçâo de renda e de preservaçâo da cultura popular brasileira. O material aqui apresentado é parte de um projeto de divulgaçâo cultural contemplado por éditai de Ciencia e Tecnología, desenvolvido junto aos artesáos da Vila de Itaúnas, em Conceiçâo da Barra - ES1.
A Vila de Itaúnas se localiza no extremo norte do Espirito Santo, praticamente na divisa com a Bahia. Um lugarejo bucólico de chäo de terra batida, em que vivem cerca de 2.200 pessoas. Nesse lugar, encontra-se grande diversidade de manifestaçôes culturáis tradicionais, em processos festivos como o ticumbi, o jongo, o alardo e o reis de boi2, além de processos produtivos artesanais como a confecçâo de cestos, barcos, farinheiras, entre outros. Nesse contexto, a vila se apresenta como um dos principáis 'palcos' de representaçôes das tradiçôes da regiáo (ALVARENGA, 2011a).
Suas origens, porém, se perdem no tempo e na falta de documentos conclusivos e específicos sobre o assunto. Até meados do século XX, segundo historias contadas pelos moradores mais antigos, a vila se resumia a duas ruas principáis paralelas à praia - a de baixo e a de cima-, com castanheiras e gameleiras frondosas, cerca de 200 casas de estuque, rebocadas e assoalhadas, duas padarias, armazéns, um posto dos correios, urna escola, urna igreja na parte mais alta da vila e um cemitério. As casas eram geminadas e possuíam quintal nos fundos com árvores frutíferas, hortas, criaçâo de galinhas e porcos. Contornando o povoado, o Rio Itaúnas era a principal via de comunicaçao com o mundo e, em suas margens, ficavam os barcos dos pescadores (ALVARENGA, 2011a).
Há cerca de 70 anos, porém, urna misteriosa e sutil catástrofe paulatinamente se abateu sobre o lugar. Tudo começou com urna areia fina a invadir as ruas, formando pequeños montes junto ás paredes externas das casas, que era rápidamente removida com enxada ou pá sem grandes problemas, num primeiro momento. No entanto, ela passou a entrar corn mais força e volume, e a se refugiar sob os movéis. Sem que isso fosse percebido, a areia que antes estava restrita à praia, passou a dominar a paisagem. Enquanto se conseguia controlar sua presença, a areia foi de certa forma tolerada. Havia dias, contudo, em que o vento ficava mais forte e a areia invadia em maior quantidade. Aos poucos, a areia modificou completamente a fisionomía da vila, e os montes tornaram-se cada vez maiores, verdadeiras dunas. A igreja e o cemitério foram os primeiros a ser soterrados. Com o passar dos anos, a vila inteira foi desaparecendo sob as enormes dunas (ALVARENGA, 2011a).
Com esse processo, a populaçâo precisou tomar medidas drásticas: alguns moradores foram embora para outras localidades, outros resolveram recriar e refundar a comunidade. A mudança da antiga vila para a nova, iniciada no final da década de 1950, quando os primeiros moradores resolveram abandonar o lugar, só veio a terminar corn a saída dos últimos habitantes, em 1974. No processo do soterramento, a vila foi atravessando lentamente o Rio Itaúnas e se instalou na outra margem. Enquanto a mudança se consubstanciava de modo literal e físico, utilizava-se a imagem do que havia antes na tentativa de construir algo semelhante ou parecido. Dada a lenta invasáo das dunas, foram aproveitados materials da antiga vila na construçâo da nova, como madeiramento e telhas. Junto com cada parte da vila antiga que passou a compor a construçâo da nova vila, foram também as historias mágicas e ricas do passado local, além de inúmeras tradiçôes culturáis. Enquanto carregavam seus movéis e pertences, os moradores levavam sua historia, seus costumes e sua cultura material (ALVARENGA, 2011a). Aproduçâo cultural material dos moradores de Itaúnas se caracterizava, na vila antiga, principalmente pelos artefatos artesanais, entendendo que o artesanato seja:
Um conjunto de artefatos mais expressivos da cultura de um determinado povo e/ou regiáo, representativo de suas tradiçôes e incorporados à vida cotidiana, sendo parte integrante e indissociável dos seus usos e costumes. A produçâo, geralmente de origem familiar ou comunitária, possibilita e favorece a transferencia de conhecimentos de técnicas, processos e desenhos origináis. Sua importáncia e valor cultural decorrem do fato de preservar a memoria cultural de urna comunidade, transmitida de geraçâo em geraçâo (BRASIL, 2010, Art. 16).
A partir do deslocamento da vila, seus moradores investiram na permanencia de tal produçâo material, fixando-a como elo de ligaçâo com a vila antiga e corn suas memorias. A presença destes antigos moradores na atual Vila de Itaúnas marca a presença da vila antiga pela produçâo de artesanato, como um processo de ocupaçâo tradicional.
Ocupaçâo, entendida como direito social, é aquela que, individualmente ou coletivamente, significa e produz significado social. Dessa forma, a expressáo ocupaçâo tradicional é tratada como prática significante e produtora de patrimonio (material e imaterial), caracterizada pelo trabalho como mediador entre o ser humano e a natureza (COSTA, 2012, p. 44).
Compreendemos, assim, o artesanato como ocupaçâo tradicional entre os moradores mais antigos da Vila de Itaúnas, urna vez que géra produtos elaborados com base nas interaçôes da populaçâo local com o seu meio, contribuindo para a expansáo do conhecimento sobre a diversidade sociocultural e ambiental, e para a melhoria da qualidade de vida dessa comunidade, pela via do pertencimento e da identidade local.
Apesar do enorme potencial da produçâo de artesanatos na Vila de Itaúnas, esse ainda é pouco conhecido e valorizado. Face à complexidade e à importancia dos processos que acontecem em regióes com elevada diversidade cultural (como é o caso exemplar da Vila de Itaúnas), do volume e da qualidade das informaçôes coligidas, estudadas e sistematizadas, a divulgaçâo deste patrimonio cultural ainda é desproporcional à sua importancia e relevancia. No que tange à valorizaçao sociocultural dessa produçâo artesanal, essa lacuna é ainda maior.
2 Metodología
O processo de mapeamento e valorizaçao sociocultural do artesanato como ocupaçâo tradicional na Vila de Itaúnas ocorreu ao longo do ano de 2014, tendo como disparador a observaçâo realizada previamente por urna das coordenadoras, com atividades investigativas de longa data na regiáo (ALVARENGA, 2011b). Combase nesses primeiros dados, foram levantados os nomes de alguns artesáos mais antigos, com os quais se realizaram as primeiras conversas. Em seguida, esses primeiros participantes indicaram outros e assim consecutivamente, aos moldes da rede de indicaçôes (COSTA; MENDES, 2014). A partir dessas conversas iniciáis, desenvolveram-se as oficinas que geraram material escrito e audiovisual, se constituindo em objetos de análise.
Os recursos escolhidos para a valorizaçao sociocultural dos saberes tradicionais identificados e caracterizados como artesanato foram; escuta de narrativas de memorias de vida; documentaçâo audiovisual (KOSSOY, 2005; DARBON, 2005); e documentaçâo e divulgaçâo da sociobiodiversidade, pautados pelos ideáis dos Ecomuseus (DAVIS, 1999). Estes recursos foram marcados pela promoçâo de espaços efetivos de participaçâo, de forma que o grupo envolvido no processo construísse as suas próprias narrativas e a difusáo do conhecimento. O que se buscou nesse processo foi o desenvolvimento de um projeto de documentaçâo e divulgaçâo da ocupaçâo tradicional dos artesáos de Itaúnas, aliado a um processo de inserçâo, sensibilizaçâo e interaçâo deste grupo, com o estímulo à participaçâo dos sujeitos.
A utilizaçâo de metodología de abordagem participativa parte da perspectiva de que os participantes náo se caracterizam como "objeto" e sim como sujeitos do processo (LINS, 2004; ALVARENGA; MEDEIROS, 2014; COSTA, 2012).
Para dar conta dessa diversidade de conhecimentos, o projeto de desenvolvimento e divulgaçâo científica e tecnológica, realizado entre janeiro de 2014 e janeiro de 2015, junto aos artesáos da Vila de Itaúnas (ES), intitulado " Vida de Artesáo - Documentaçâo e Divulgaçâo da Sociobiodiversidade e da Economía Criativa da Vila de Itaúnas, Conceiçâo da Barra/ES" foi desenvolvido por urna equipe multidisciplinar, que atuou de maneira colaborativa e interconectada, ñas áreas de memoria sócio-ocupacional; ocupaçâo tradicional; produçâo documental audiovisual; etnografía; e da identidade cultural, enfatizando a cultura material e imaterial.
Foram programadas açôes organizadas por etapas.
A) A primeira etapa consistiu no contato e na mobilizaçâo de pessoas da vila interessadas em participar do projeto. Os contatos e a mobilizaçâo foram estabelecidos através de visitas de campo ás comunidades. Nessas visitas foram realizadas reunióes e debates com o intuito de apresentar e discutir a proposta do projeto, seus objetivos, sua sistemática, suas práticas e seu cronograma. Nessas reunióes, foram acordados os processos e as práticas metodológicas que seriam desenvolvidas durante todo o projeto, ressaltando os objetivos. Nesta etapa também foi iniciada a formaçâo de um grupo de artesáos da vila e feita a definiçâo dos locáis e das datas dos próximos encontros, gerando urna agenda em torno do cronograma executivo das oficinas.
B) Na segunda etapa do processo, foram realizadas tres oficinas com o grupo definido na etapa anterior, todas com abordagem participativa, ou seja, o planej amento e a execuçâo foram construidos coletivamente. Entre os principáis instrumentos de troca de saberes, de investigaçâo científica, de documentaçâo e de divulgaçâo, essas oficinas utilizaram processos interativos, como a elaboraçâo de narrativas, a produçâo fotográfica, a produçâo audiovisual e a produçâo de um site de divulgaçâo.
B.l) Noçôes de Produçâo audiovisual e site
Nessa oficina, inicialmente houve urna rápida apresentaçâo sobre a produçâo fotográfica, de narrativas e de audiovisual, citando alguns formatos e géneros de narrativas mais comuns para sites. No segundo momento desta mesma oficina, foram apresentados os elementos básicos da produçâo: das etapas aos equipamentos necessários, passando pela construçâo de ideias/argumentos/roteiros. Ao final dessa oficina, foi realizada urna atividade em que os participantes apresentaram os elementos narrativos que, para eles, deveriam constar na caracterizaçâo do lugar e de sua produçâo artesanal, para ser utilizado no material de divulgaçâo: as sequéncias fotográficas, a produçâo audiovisual, o site, os cartees de visita.
B.2) Caracterizaçâo do lugar e da produçâo artesanal
Na primeira parte desta oficina, iniciou-se a construçâo do quadro descritivo do lugar, localizando e identificando os artesáos, as casas, os locáis de coleta da matéria-prima, entre outros elementos relevantes apresentados por eles no contexto de sua produçâo.
Na segunda parte, foram trabalhadas a memoria e a historia desses artesáos sobre o lugar e a produçâo de artesanatos. Na terceira, trabalhou-se com a descriçâo da produçâo de cada tipo de artesanato, incluindo desde a coleta da matéria-prima até as etapas de produçâo - as técnicas, práticas e saberes, inclusive as origens míticas relacionadas à cada etapa.
Durante a quarta e última parte, buscaram-se narrativas que registrassem como esses artesanatos estáo inseridos no cotidiano, ñas festividades e datas comemorativas, músicas, dramatizaçôes, bem como no contexto do turismo da vila.
B.3) Oficina de Roteiros
Com base nesses levantamentos, elaboramos junto aos artesáos os roteiros de conteúdo e a forma de como seria produzido o audiovisual e o website.
C) Na terceira etapa do projeto, foram realizadas a produçâo e a gravaçâo de documentários. Inicialmente, os roteiros foram analisados técnicamente pela equipe do projeto, definindo e listando tudo o que teria que ser gravado, de imagens a depoimentos, e os locáis de gravaçôes. Foi construido com o grupo de artesáos envolvido no projeto, um cronograma de gravaçâo. As gravaçôes foram realizadas nos locáis de produçâo de artesanato, nos locáis de coleta da matéria-prima, entre outros.
D) A quarta etapa se desenvolveu através de très atividades: a decupagem do material gravado, o fechamento dos roteiros e a ediçâo das imagens e textos. Na decupagem, a equipe do projeto realizou, corn dois filhos dos artesáos, a transcriçâo escrita de todo o material gravado, entre imagens e depoimentos. Depois da decupagem, foi feito o fechamento dos roteiros e os participantes do projeto elaboraram um mapa de ediçâo, contendo a síntese de todo o material desenvolvido e levantado até esta etapa, como sugestáo de imagens, trechos de depoimentos, o texto da narraçâo e a própria ordern e estrutura de cada página do site.
E) A quinta etapa consistiu na ediçâo e na finalizaçâo das sequéncias fotográficas, das narrativas descritivas do site, do mapa temático de localizaçâo dos artesáos na Vila de Itaúnas e dos cartóes de visita por artesáo.
F) A sexta etapa consistiu de apresentaçâo do site e demais produtos do projeto ao grupo envolvido.
3 Resultados: cultura material na Vila de Itaúnas
Na atual Vila de Itaúnas, a manutençâo da produçâo de artefatos artesanais provenientes da vila antiga está relacionada a oito artesáos: Seu Silvio Martins, Seu Paulo Jaco, Dona Jovem, Dona Iraci Martins, Seu Beto Jaco, Seu Argemiro, Seu Graciolino, Seu Benedito da Conceiçâo3. Esses artesáos aprenderam o oficio ainda na vila antiga e nas roças localizadas no seu entorno, ou para ah vieram desde muito jovens, trazendo parte de seus saberes. O aprendizado foi com pais, tios e avós.
É na relaçâo dessa comunidade com as suas historias e com os ambientes naturais que as atividades tidas como tradicionais ainda persistem na vila nova. Sáo os saberes e o saber-fazer considerados como aqueles provenientes dos antepassados da vila soterrada, perpetuados e reformulados no novo lugar. Sáo conhecimentos que
[...] vieram de longe, que aprenderam com pai, que o pai aprendeu corn a avó, que a avó aprendeu com alguém, que ninguém mais se lembra (ALVARENGA, 2011b, p. 106).
As fibras utilizadas no artesanato sáo encontradas na flora local. A taboa (Typha domingensis) e o junco (.Eleocharis sp.) sáo utilizados na confecçào de esteiras. Na mata de restinga, eles coletam o cipo para a produçâo de urna cestaria bastante diversificada. O arizeiro (Geoffroea spinosa) é utilizado na produçâo de chapéus. O bambú, juntamente com o cipo, é frequentemente utilizado na produçâo de apetrechos de pesca. Os samburás e jequiás possuem diversos tipos de uso, na pesca em rios, lagos e mares, e podem ser utilizados como ornamentos decorativos.
Da palha de ubá (Gynérium sagittatum) ou da folha de diversas palmeiras os artesáos produzem o tipiti, artefato utilizado para prensar a mandioca nas farinheiras e retirar o excesso de água. Com a palha também é elaborado um instrumento musical muito utilizado nas festas locáis, o caxixi, que é urna espécie de chocalho; um pequeño cesto de palha trançada em forma de campánula, que pode tervários tamanhos. Do tucum [Bactris setosd), sáo feitos luminárias e abajures.
O artesanato em madeira envolve a produçâo de canoas (em tamanho reduzido para o turismo), o conserto de canoas de pesca e de barcos antigos e a produçâo de carrancas e instrumentos musicais, como tambores, pandeiros e casacas (nome que se dá a um reco-reco característico do Espirito Santo).
O artesanato geralmente é feito na própria casa do artesáo. Ele utiliza instrumentos como o buril, o formáo, serrinhas, facas, goivas, cañivetes, além de lixas e limas, pedaços de caco de vidro, entre outras ferramentas. Está presente no cotidiano da vila - nas atividades de pesca e coleta de sururu (corn a utilizaçâo de samburás e jequiás); como utilitários e objetos decorativos (luminárias, colheres, pratos, cestos, entre outros); adornos (chapéus e bolsas); e como instrumentos musicais (tambor, casaca, pandeiro e caxixi). Estes instrumentos musicais sáo tradicionalmente utilizados no jongo, nos reis, no ticumbi e no alardo, ou seja, em todas as manifestaçôes culturáis presentes na Festa de Sáo Benedito e Sáo Sebastiáo. E é também na festa que se comercializa urna boa parte dos artesanatos produzidos na vila.
Assim, constatou-se que o artesanato se constituí em mensageiro de narrativas e memorias, afirmando saberes tradicionais, valorizando o passado da vila, marcando seu presente e se projetando em seu futuro, pela perspectiva da valorizaçâo sociocultural da produçâo local.
Além disso, contatou-se também a presença de processos de mudanças, de apropriaçâo e modificaçâo no tempo e no espaço, levando a novas significaçôes dos artesanatos locáis - foi o caso dos artesanatos que sofreram processo de transformaçâo de uso, como o samburá, que é também utilizado como luminária. Verificou-se ainda a participaçâo da produçâo artesanal como meio, mecanismo e efeito da permanencia e fortalecimento da tradiçâo, como os instrumentos musicais - a casaca, o pandeiro e o caxixi - que sáo utilizados nas manifestaçôes culturáis.
A noçào de tradiçâo pressupóe permanencias que podem ser auditivas (faladas, cantadas, narradas) e visuais (expressôes corporais, gestos, paisagens, etc.), referencias a elementos que transportam ao passado. As tradiçôes, porém, estáo em permanente mudança, de acordo com o contexto e a situaçâo vivida, por meio de processos de ressignificaçôes (HOBSBAWN; RANGER, 1997).
Na relaçâo da vida cotidiana da Vila de Itaúnas, está presente um sistema simbólico extremamente peculiar dessa cultura organizada por um processo de continuidade entre passado e presente - os artesanatos estáo inseridos no cotidiano da vila e representam traços de urna cultura que permanece e é recriada. Este contexto é construido e reconstruido rotineiramente e constituí a historia do próprio local (DE CERTEAU, 2000), urna valorizaçâo do passado em que símbolos e objetos permanecem porque contêm e perpetuam as experiencias de geraçôes. A tradiçâo na Vila de Itaúnas é um importante meio para lidar com o tempo e o espaço. O artesanato desse local está inserido na continuidade entre passado e presente. Estes tempos sociais sáo estruturados por práticas individuáis, mas sobretudo coletivas e em açôes recorrentes (GIDDENS, 1991).
Neste contexto, a produçâo de artesanatos se constituí como elemento organizador da historia desse lugar, e coloca a vila em diálogo com o mundo externo a ela. O artesanato fala sobre a vila, e o artesáo é o agenciador;
Se voce leva o pandeiro daqui, vai levar lembrança del vila. Ë um presente del vila. Por que voce näo levando lembrança nenhuma, voce näo sabe o que faz aqui (Seu Silvio).
A produçâo de artesanatos também é um importante meio de produçâo da vida desses artesáos, e emerge como elemento que garante aos mais velhos apossibilidade de continuidade de um fazer com sentido;
Prä mim é um jeito de continuar vivendo, né, depois de ficar velho, continuar fazenda coisas, mostrandopraspessoas... (Seu Beto Jaco).
E importante fazer o artesanato, pra näo ficar parada na vida. 'Cé faz um pouco e ai näo fica parada (Seu Graciolino).
Lembrando Wilcock (2006 apud MAGALHÄES, 2013, p. 257),
[...] o fazer humano deve estar acompanhado da criaçâo, da emoçâo e da aventura: em termos ocupacionais, o bem-estar através do fazer envolve acreditar que a gama potencial das ocupaçôes das pessoas permitirá a cada urna délas ser criativa, aventurar-se e encontrar sentido nas emoçôes humanas que experimentarem e explorarem no seu fazer. Significa ainda adaptar-se de forma adequada e sem interrupçâo indevida para atender, através do seu fazer, ao que suas vidas demandem (WILCOCK, 2006 apud MAGALHÄES, 2013, p. 257).
Além disso, a recente valorizaçâo sociocultural do saber artesáo tem lhes apresentado importantes espaços de troca de conhecimentos:
A gente jä deu aula lä em Säo Mateus, lä na Ceunes, lä no Araçâ e foi bom a gente sait pra conhecer mais outros artesäos que täo Id junto com a gente. Ai a gente tana aprendendo e en sin an do pra eles também (Dona Jovem).
Podemos dizer que náo é o objeto que carrega o significado, mas sim o uso, é a açâo simbólica que só tem sentido se comunicado neste uso,
[...] náo é só com estátuas (ou pinturas, ou poemas) que temos que trabalhar, mas sim corn os fatores que tornam esses objetos importantes - melhor dito, que 'afetam' de maneira importante aqueles que os fazem ou os possuem - e esses sáo táo variáveis como a própria vida (GEERTZ, 1997, p. 180).
[...] a variedade, que os antropólogos já aprenderam a esperar, de crenças espirituais, de sistemas de classificaçâo, ou de estruturas de parentesco que existem entre os vários povos, e náo só em suas formas mais imediatas, mas também na maneira de estar no mundo que encorajam e exemplificam, também se aplica a suas batidas de tambor, a seus entalhes, a seus cantos e danças (GEERTZ, 1997, p. 146).
Geertz (1989) apresenta o conceito de cultura como essencialmente semiótico. Entende-se que os sujeitos se constituem e se enredam às teias de significados que tecem, e à cultura como modo de expressáo dessas teias. Pode-se dizer, no caso do artesanato, que "[...] a variedade da expressáo é resultado da variedade de concepçôes que os seres humanos tem sobre como sáo e funcionam as coisas" (GEERTZ, 1989, p. 181).
Ê claro que qualquer coisa pode ajudar urna sociedade a funcionar, inclusive a pintura e a escultura; como também qualquer coisa pode ajudá-la a se destruir totalmente. A conexáo central entre a arte e a vida coletiva, no entanto, náo se encontra neste tipo de plano instrumental e sim em um plano semiótico (GEERTZ, 1997, p. 150).
A cultura é como urna rede de significados - um sistema de signos. E o signo, por sua vez, é aquilo que representa algo para alguém, em algum aspecto ou sentido (GOFFMAN, 1985). A escolha, tanto da imagética quanto da via narrativa, partiu do principio de que sempre haverá alguém interpretando a realidade. Um signo é algo que é interpretado como um signo por um intérprete, o signo só existe quando existem seres capazes de dar significaçâo às coisas. O signo se constitui através de dois aspectos: em primeiro lugar, o signo é algo que se vê, se ouve, se toca ou se sente; em segundo lugar, esse algo que se percebe transporta urna ideia, um conceito e um conteúdo. Está ligado ao tempo, ao espaço, ao modo de vida e às relaçôes, bem como à memoria afetiva de cada urn e do coletivo. A partir do momento em que se entende a percepçào e a interpretaçâo como um processo ativo, próprio ao ser humano, náo se pode deixar de lado a relaçâo existente entre estruturas cognitivas e o espaço em que estas atuam (METZ, 2004).
Neste contexto, verificou-se um processo - ora continuado, ora descontinuado - em torno da valorizaçâo sociocultural da produçâo artesanal dos participantes do projeto. Tal movimento se construiu ao longo da vida dos artesáos, e se entrelaça com suas experiencias e memorias referentes ávida na regiáo. Os objetos produzidos pela via artesanal ganharam valores culturáis desde os primeiros momentos em que foram confeccionados na vila antiga, tendo sido referidos como produtos de necessidades básicas, em principio, relacionados ávida cotidiana do vilarejo, justificados pela distancia de outros povoados e pelo difícil acesso, somados à vida simples dos moradores do local, que produziam de forma artesanal objetos que serviam para atender à rotina da vila. Em um momento seguin te, com o processo de deslocamento dos moradores antigos para a nova vila (atual Vila de Itaúnas), tais objetos somam outro valor cultural: seus significados para além do sentido utilitário, mas também afetivo, passam a carregar valores materials e imateriais da cultura local, carregando consigo e em si a vida artesa como possibilidade de permanencia e continuidade das memorias.
Na atualidade, tais produtos tém sido identificados pelos moradores locáis ao mesmo tempo como típicos da regiáo e raros - urna vez que os moradores antigos passam, com o tempo, a serem figuras escassas na Vila de Itaúnas. Ao serem convidados a participarem do projeto aquí apresentado, identificou-se um novo movimento de ressignificaçâo com base naprojeçào, urna vez que os artesáos ganham visibilidade e possibilidades de colocaçâo no mercado cultural, para o qual toda a vila parece já preparada sem, entretanto, inclui-los no processo. A visitaçâo turística, até entáo mais voltada para as manifestaçôes festivas e para as atividades de cunho ecológico devido à existencia de urna unidade de conservaçâo, passa a inserir em seu mapa de visitaçôes as casas dos artesáos e seus produtos, destacando todo o processo da produçâo cultural material e imaterial que carregam.
4 Consideraçôes fináis
O projeto gerou vários processos participativos de divulgaçâo da cultura material e imaterial da Vila de Itaúnas, tendo como eixo central os artesanatos e seus artesáos.
Dentre esses produtos, podemos citar: narrativas oráis; narrativas fotográficas; produçâo audiovisual; mapa temático; cartóes de visita e do site Povos da Floresta e do Mar (POVOS..., 2014) que contêm a sin tese de toda essa produçâo, exclusivo do projeto, planejado para ser o principal meio difusor dos artesáos e artesanatos da Vila de Itaúnas. O site é um importante veículo de troca de experiencias, de comunicaçâo entre a equipe e as comunidades, e de avaliaçâo dos resultados do projeto. Nele sáo apresentados textos, imagens fotográficas e videográficas.
Buscamos com isso promover a potencializaçâo da divulgaçâo local, regional e nacional dos artesáos e dos artesanatos da Vila de Itaúnas; a ampliaçâo da valorizaçâo sociocultural desta produçâo artesanal; o reconhecimento da importáncia da cultura local; o fortalecimento do desenvolvimento local; o aumento da interaçâo e da troca de experiencias sobre produçâo artesanal; o fortalecimento do turismo socioambiental e do ecoturismo na regiáo; a ampliaçâo da conscientizaçâo da participaçâo da populaçâo local nos processos decisorios e de gestáo socioambiental da regiáo; a conscientizaçâo da necessidade de ampliaçâo e fortalecimento de processos de conservaçâo ambiental na regiáo; a percepçào acerca da importáncia da sociobiodiversidade e da produçâo artesanal de sua regiáo por parte dos jovens; o aumento da compreensáo da sociedade em geral sobre a importáncia da sociobiodivesidade e da produçâo artesanal; o aumento da conscientizaçâo sobre a importáncia da diversidade cultural e da biodiversidade, para o desenvolvimento de um país mais justo.
Identificamos, ao longo do projeto e principalmente no processo de sua análise - produzida continuamente - que a produçâo do material de divulgaçâo sociocultural realizada no modelo de oficinas participativas contribuiu para que os artesáos integrantes do projeto se compreendessem enquanto atores sociais de grande relevancia para a cultura local, ampliando suas possibilidades de percepçào da vila e inscrevendo suas memorias náo apenas nos registros da vila antiga, mas também e principalmente nos registros da vila atual. Além disso, a compreensáo acerca do lugar do artesanato na regiáo, no país e no mundo também possibilitou o redimensionamento dos sentidos de sua prática e contribuiu para o aumento quantitativo e qualitativo de suas redes de relacionamentos dentro e fora da vila.
Fonte de Financiamento
O trabalho recebeu financiamento do CNPq, através do Editai 80/2013/CNPq.
Notas
1 Para tanto, foram cumpridos todos os preceitos éticos necessários à sua realizaçao.
2 Festas e expressóes culturáis da regiao.
3 Os nomes aqui apresentados sao verídicos, urna vez que este é um dos principáis objetivos do projeto e dos artesáos nele envolvidos: a visibilidade e a divulgaçâo.
Referencias
ALVARENGA, L; MEDEIROS, R. A imagem fotográfica e memoria na representaçao de identidades em redes sociais. In: COSTA, S.; MENDES, R. Redes sociais territoriais. Sáo Paulo: UNIFESP, 2014. p. 115-124.
ALVARENGA, L. O Ticumbi: imagens e memoria da Vila de Itaúnas. Arte & Ensdio, Rio de Janeiro, v. 23, p. 73-79, 2011a.
ALVARENGA, L. A fiesta e as representares culturáis do ticumbi: imagens e tradiçoes da Vila de Itaúnas (ES). 2011. 225 f. Tese (Doutorado em Artes Visuais) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011b.
BRASIL. Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Espirito Santo. Instruçâo Normativa SETADES n° 2 de 19/08/2010. Estabelece procedimientos, responsabilidades e competencias da Setades para o de-senvolvimento das atividades do Artesanato Capixaba, seguindo normas e orientaçoes do Programa do Artesanato Brasileiro (PAB). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasilia, DF, 20 ago. 2010. Disponível em: <http://www.normasbrasil.com.br/norma/ Ínstrucao-normatÍva-2-2010-es_l26565.html>. Acesso em: 1 nov. 2014.
COSTA, S. L.; MENDES, R. Redes sociais territorials: primeiras palavras. In: COSTA, S. L.; MENDES, R. Redes sociais territoriais. Sao Paulo: FAP - UN IF ES P, 2014. p. 17-32.
COSTA, S. L. Terapia ocupacional social: dilemas e possibilidades da atuaçao junto a povos e comunidades tradicionais. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar; Sao Carlos, v. 20, n. 1, p. 43-54, 2012.
DARBON, S. O etnólogo e suas imagens. In: SAMAIN, E. O fotográfico. Sao Paulo: Hucitec, 2005. p. 101-111.
DAVIS, P. Ecomuseums: a sense of place. London: Leicester Museum Studies, 1999.
DE CERTEAU, M. A invençâo do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2000.
GEERTZ, C. O saber local: no vos ensaios em antropología interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997.
GEERTZ, C. A interpretaçâo das culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1989.
GIDDENS, A. As consequências da modernidade. Säo Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991.
GOFFMAN, E. A rcprcscntaçâo do cu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985.
HOBSBAWN, E.; RANGER, T. (Org.). A invençâo das tradiçocs. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
KOSSOY, B. Fotografía e memoria: reconstituiçao por meio da fotografía. In: SAMAIN, E. O fotográfico. Sao Paulo: Hucitec, 2005. p. 39-45.
LINS, C. O documentário de Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
MAGALHÁES, L. Ocupaçao e atividade: tendencias e tensóes conceituais na literatura anglófona da terapia ocupacional e da ciencia ocupacional. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, Sao Carlos, v. 21, n. 2, p. 255-263, 2013.
METZ, C. A significaçâo do cinema. Sao Paulo: Perspectiva, 2004.
POVOS DA FLORESTA E DO MAR. CNPq: FAPERJ: FIOCRUZ, 2014. Disponível em: <http://www.povosdaflorestaedomar.com.br/>. Acesso em: 1 nov. 2014.
Luciana Alvarenga3, Samira Lima da Costab
aFundaçâo Oswaldo Cruz - FIOCRUZ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
bDepartamento de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Autor para correspondencia: Samira Lima da Costa, Departamento de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, bloco K, sala 17, Cidade Universitária, Ilha do Fundâo, CEP 21941-901, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, e-mail: [email protected]
Recebido em Maio 24, 2015; 1a Revisão em Jul. 30, 2015; 2a Revisão em Out. 30, 2015; Aceito em Nov. 30, 2015.
Contribuiçâo dos Autores
Samira Lima da Costa participou da elaboraçâo do projeto enviado ao éditai, das atividades de campo junto aos artesáos, das análises e da redaçâo final deste artigo. Luciana Alvarenga participou da elaboraçâo da proposta enviada ao éditai, da coordenaçâo do projeto, das atividades de campo junto aos artesáos, das análises e da redaçâo final deste artigo. Ambas autoras aprovaram a versáo final do texto.
You have requested "on-the-fly" machine translation of selected content from our databases. This functionality is provided solely for your convenience and is in no way intended to replace human translation. Show full disclaimer
Neither ProQuest nor its licensors make any representations or warranties with respect to the translations. The translations are automatically generated "AS IS" and "AS AVAILABLE" and are not retained in our systems. PROQUEST AND ITS LICENSORS SPECIFICALLY DISCLAIM ANY AND ALL EXPRESS OR IMPLIED WARRANTIES, INCLUDING WITHOUT LIMITATION, ANY WARRANTIES FOR AVAILABILITY, ACCURACY, TIMELINESS, COMPLETENESS, NON-INFRINGMENT, MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR A PARTICULAR PURPOSE. Your use of the translations is subject to all use restrictions contained in your Electronic Products License Agreement and by using the translation functionality you agree to forgo any and all claims against ProQuest or its licensors for your use of the translation functionality and any output derived there from. Hide full disclaimer
Copyright Federal University of Sao Carlos (UFSCar), Department of Occupational Therapy 2016