Resumo
O artigo investiga a obra de Alberto Torres sob o ponto de vista da introduçao de uma razao governamental no pensamiento político brasileiro, pautada pela lógica da prevençao e da estruturaçao do campo de açöes possíveis. Parte das reflexðes de Michel Foucault sobre a governamentalidade para examinar a visao torreana de modernizaçao e procura mostrar que a arquitetura do Estado desenhada em A organizaçao nacional e O problema nacional brasileiro é inseparável das medidas destinadas a produzir o "homem novo" como sujeito ético capaz de enfrentar os riscos da vida social, o que constitui um marco de ruptura na tradiçao do pensamento político e social. A razao governamental é analisada quanto aos seguintes aspectos: a influencia da sociabilidade da escravidao na concepçao de populaçao, baseada na lógica afetiva e nas inte^ðes comunitárias; a reforma do regime jurídico e a formaçao de um regime de opiniao, na direçao de um governo das percepçðes; o lugar da política racial e do povoamento territorial na expansao da capacidade administrativa do Estado e na regulaçao da agencia humana.
Palavras-chave: Governamentalidade. Política de Populaçao. Coordenaçao Nacional. Pensamento Social. Primeira República.
Abstract
This paper seeks to investigate the work of Alberto Torres focusing the rise of a governmental reason in Brazilian political thought, which is grounded on the logic of prevention and the shaping of a field of possible actions. Michel Foucault's contribution on governmentality provides a theoretical frame to examine the author's understanding of modernization, it argues that the architecture of the State designed in A organizaçâo nacional and in O problema nacional brasileiro is inseparable from the making of the "homem novo" as an ethical subject capable of facing the risks of social life, what constitutes a landmark in the tradition of political and social thought. Thus, governmental reason is analyzed on the following aspects: the influence of slavery sociability on the conception of population, based on affection and community interactions; the reform of law and the conditions for the rule of opinion, fostering the government of perceptions; the place of racial politics and territorial settlement in the expansion of the state's administrative capacity and in the regulation of human agency.
Keywords: Governmentality. Politics of Population. National Coordination. Social Thought. Early Republic.
Introduçao
O presente texto propóe uma leitura alternativa da obra de Alberto Torres (1865-1917), por ocasiáo do centenario de seu falecimento. Em primeiro lugar, porque ela permanece insuficientemente compreendida. Predominam interpretaęóes de segunda mâo a seu respeito, escritas por intelectuais que reivindicaram sua paternidade para se apropriar de seu legado segundo seus próprios objetivos e suas visóes da política e da sociedade. Este é o caso notório, certamente nao único, de Oliveira Vianna, seu principal difusor nos anos 1920 e 1930. Em segundo lugar, porque parte expressiva da abundante literatura a seu respeito tende a privilegiar sua obra pelos elementos ideológicos que encerra, vendo nela as bases do pensamento nacionalista (MARSON, 1979) e autoritario (LAMOUNIER, 1985) entre nós. Sao numerosos os trabalhos que relacionam os escritos de Torres a recepçao do vitalismo e do solidarismo no contexto de uma sociedade clânica, carente de continuidade política e unidade de açao pública (SANTOS, 1978; IGLESIAS, 1978; LEMOS, 1995)
Neste cenário, sente-se a ausencia de um estudo sobre as possíveis homologias entre o universo semântico de seu pensamento e a montagem do Estado que se organiza a partir da revoluçao de 1930, cujas bases começam a ser desenhadas nos anos que seguem a publicaçao de A organizaçao nacional e O problema nacional brasileiro2. Ou seja, um estudo sobre a circularidade entre as categorias mobilizadas nestas obras e o aparecimento, em outros atores e marcos institucionais, de uma ideia de sujeito inseparável da concepçao de Estado. Ao se debruçar sobre o tema da construçao do Estado, as obras acima relacionadas tenderam a abordá-lo sob o prisma da polarizaçao entre liberalismo e autoritarismo. Ressentem-se de um exame mais detido sobre as relaç0es entre a arquitetura do Estado e a produçao do cidadao enquanto sujeito ético, manifesta na inédita - e, logo, generalizada - preocupaçao com os saberes e práticas que deveria possuir o homem nacional, de modo a viabilizar o tao desejado "homem novo", este elo entre o tradicional e o moderno, entre a cultura e a civilizaçao.
Considerado um dos primeiros porta-vozes da questao social entre nós, e, possivelmente, o primeiro a converte-la em "questao nacional", Torres viu na construçao do Estado a condiçao tanto da esfera pública quanto da personalidade moral do "homem nacional". Visao que nao se reduziu aos liames do pensamento autoritário, instalando-se como credo entre as elites intelectuais condutoras do país. Por "homem nacional", entenda-se uma posiçâo de sujeito consagrada, sobretudo, pela retórica política promovida no contexto das publicaçoes referidas, das campanhas de saneamento e combate ao analfabetismo; da organizaçâo do ensino técnico, comercial e profissional garantidos por convenios entre a Uniáo e os estados; da obrigatoriedade legal do ensino primario; da fixaçâo das bases de um regime de seguro e assistencia social (HOCHMAN, 1998; NAGLE, 2006, p. 283).
Em conjunto, tais iniciativas parecem ter concorrido efetivamente para a formaçâo de uma opiniáo pública nacional, mobilizada pelo desenvolvimento da consciencia de interdependencia social, como sugere a formaçâo das inúmeras ligas e associaçoes voluntarias, dedicadas a promoçâo do trabalho, da assistencia, da educaçâo e da saúde3. Em tal discurso, "o homem nacional" aparece sem ter por referencia a cidadania ou a agencia económica, e sim a figura passiva do abandonado e degenerado, a ser recuperado e ressocializado por técnicas de si promovidas pelo poder público, como a estética, a higiene pessoal, e a educaçâo alimentar e profissional. Em seus trabalhos sobre a governamentalidade, Michel Foucault mostrou como as técnicas de si importam para as formas de subjetivaçâo facilitadas por diferentes regimes de açâo pública; afinal, elas permitem aos individuos "[...] efetuarem, sozinhos ou com ajuda de terceiros, certo número de operaçoes sobre seu corpo e sua alma, seus pensamentos, suas condutas, seu modo de ser, de maneira a se transformar a fim de alcançar um estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeiçâo ou imortalidade"4 (FOUCAULT, 1994, p. 785).
Em Segurança, território, populaçao (2008) e O nascimento da biopolítica (2009), Foucault alçou o liberalismo ao centro da análise, por entender que o governo se torna mais capilar e eficiente ao produzir liberdades e tematizá-las como fundamento da autoridade. Essa seria a ruptura profunda do liberalismo com as artes de governo que lhe antecederam, uma vez que nele os modos de pensar e fazer o Estado se articulam com as técnicas de si, destinadas a transformaçâo da conduta mediante aprimoramento pessoal, como as regras de etiqueta, a direçâo espiritual e a prescriçâo de modelos de vida. Trata-se, portanto, de uma progressiva aproximaçâo entre a estatizaçâo das esferas sociais e as técnicas de si. O universalismo que tais técnicas poderiam atingir esteve limitado, até entáo, pela centralidade da moral aristocrática e sua conhecida indiferença em relaçâo a sistemas de crença e organizaçâo da vida camponesa e plebeia. Já no liberalismo, a sociedade representa ao mesmo tempo "o conjunto das condiçoes do governo mínimo liberal" e a "superficie de transferencia da atividade governamental" (FOUCAULT, 2009 apud SENNELART, 2009, p. 446).
O desafio que nos colocamos neste artigo é examinar a obra Torres a luz de uma nova mentalidade de governo, que problematiza as técnicas de si, a mediaçâo estatal das relaçoes sociais, e seus efeitos sobre a conduta dos governados. Entendemos que a contribuiçâo foucaultiana (FOUCAULT, 2008, 2009) permite problematizar satisfatoriamente a questáo da emergencia de uma razâo governamental no Brasil, ao apreende-la como a formaçâo discursiva de uma estratégia geral de poder orientada pela lógica da prevençâo, ou seja, pela estruturaçâo do campo de açoes possiveis dos individuos. Estratégia que apenas se torna transparente a análise quando se valorizam as transversalidades entre o estatal e o nao estatal, entre as instituiçoes da ordem pública e as formas de induzir a conduta na vida privada, que fazem do governo uma empresa coletiva e reflexiva em relaçâo aos seus dominios de atuaçâo.
Para tanto, utilizaremos o conceito de governo em sentido ampliado, segundo a perspectiva foucaultiana que foi esboçada. Do mesmo modo, referimo-nos ao governo liberal enquanto campo de possibilidades da agencia social, a partir do qual técnicas de si e instituiçoes garantidas ou certificadas pelo Estado visam a incitar e induzir determinadas açoes em detrimento de outras. Por um lado, isso quer dizer que nos afastamos de abordagens clássicas da teoria politica sobre o liberalismo, como as que se interessam pela soberania, pela legitimidade e pela estrutura de funcionamento do Estado. Por outro lado, tal opçâo permite examinar a matriz de governo liberal como pano de fundo do pensamento torreano, inclusive quando procura dela se afastar, ou dialogar com tradiçoes conservadoras que reconhecem a autonomia das dinámicas sociais em relaçâo a ordem politica.
A seguir tal entendimento, Torres nao se notabilizaria tanto como pai fundador de uma escola de pensamento político, seja por seu "autoritarismo instrumental", que corrigiria o liberalismo deslocado em uma sociedade clânica para fundar a solidariedade social (SANTOS, 1978, p. 93), seja por seu autoritarismo tout court, ao "conceituar e legitimar a autoridade do Estado como principio tutelar da sociedade" (LAMOUNIER, 1985, p. 356). A interpretaçao de Bolívar Lamounier consagrou Torres como um dos expoentes do pensamento autoritario, ao preconizar o predominio do Estado sobre o mercado, a visao orgânico-corporativa de sociedade, o objetivismo tecnocrático e o voluntarismo elitista como fator de mudança. O problema desta leitura é tomar a obra de Torres pelas apropriaçoes que dela fizeram os seguidores que reivindicaram o seu legado, como é o caso do movimento integralista dos anos 1930, e do nacionalismo racista e autoritario de Oliveira Vianna5. Em consequencia, ficaram apagados os preceitos do liberalismo clássico que, explícita ou implícitamente, estao na base do seu pensamento. Preceitos que levaram autores como Adalberto Marson a chamarem-no de "liberal-nacional, conservador, mas nao necessariamente autoritario" (MARSON, 1979, p. 42-43). Entre os traços liberais, encontramos a crença na bondade natural do homem, a defesa do sufragio universal (mesmo que corrigido por outras formas de representaçao) e a recusa a qualquer argumento de carater racial como fundamento da diferença entre os homens.
Neste artigo, propomos uma leitura diversa daquelas seguidas pelos autores citados. Abordaremos Torres como o sistematizador de uma mentalidade de governo que traz o problema da prevençao para o centro da reflexao política e da análise social, a partir dos anos 1910. Veremos como sua obra nos permite pensar os elementos estruturantes de uma razao governamental baseada na operacionalizaçao das condutas que, ao mesmo tempo, articula e se afasta da tradiçao liberal.
É importante considerar que a crítica desenvolvida por Torres a ordem oligarquica é um espelho da situaçao fluminense. Em nenhum outro lugar, a aboliçâo e a República contribuíram tanto para a desorganizaçâo do trabalho e da lavoura, em uma regiáo que já se mostrava decadente. Tanto que as posiçoes dissidentes de Torres começaram a aparecer justamente após seu mandato na presidencia do estado do Rio de Janeiro (1897-1899), momento em que se evidenciou para ele a dependencia da monocultura e os hábitos resilientes de uma elite senhorial resistente a modernizaçâo do sistema produtivo (FERNANDES, 2010, p. 99-100). Cabe, entáo, começar nosso exame pelo lugar que a sociabilidade da escravidáo ocupa em seu projeto de modernizaçâo.
Da escravidáo a razao afetiva como guia da conduta
A tese que atribui "prioridade a formaçâo da nacionalidade sobre a sociedade" informa todo o pensamento torreano (TORRES, 1982, p. 50). Ao contrário da tradiçâo do pensamento liberal, nâo há naturalidade nem anterioridade da sociedade relativamente ao Estado. A formaçâo da sociedade virá dos mecanismos governamentais que potencializem os feitos do Estado para além das margens estreitas da representaçâo política, em proveito da regulaçâo de uma populaçâo ainda reduzida a "[...] aglomerados dispersos de familias, classes, associaçoes, partidos, profissóes, raças, nacionalidades e religióes" (TORRES, 1982, p. 43). Será pela açâo governamental sobre estas coletividades que se poderâo produzir os vínculos morais da solidariedade social.
Já a escravidáo é vista como a única instituiçâo organizada da colonia e do império, servindo de base a sua ideia de populaçâo:
Essa massa de jornaleiros, rendeiros, caboclos e livres pobres que cresceu a revelia da autoridade privada do senhor e da subserviencia do escravo, tornar-se-ia na república "[...] o conjunto dos aglomerados rurais e urbanos, que nâo sâo nem capitalistas nem proletários, e cujos interesses nâo se apresentam com o aspecto dos conflitos entre capital e trabalho" (TORRES, 1978, p. 47).
É essa populaçâo, identificada com o embriâo adormecido da nacionalidade, ameaçada pela sociedade ciánica herdada do cativeiro e pela concorrencia desleal com o estrangeiro por postos de trabalho, que cumpre formar e solidarizar, de modo a alçar a política comercial do Estado Oligárquico, baseada na troca, na especulaçâo financeira e na extraçâo de riqueza, a uma política económica, centrada no trabalho, na produçâo e no consumo.
A centralidade assumida pela escravidâo em Torres nao se esgota nos obstáculos que antepóe a obra de "organizaçâo nacional". Parece-nos que a escravidâo aparece como forma de sociabilidade que estrutura as relaç0es entre o indivíduo e a sociedade que se quer organizar.
Em primeiro lugar, o diagnóstico da inexistencia da sociedade e da urgencia de formá-la remete as condiç0es de socializaçâo propicias ao desenvolvimento do homem novo. Tais condiç0es devem observar um pressuposto vitalista muito caro ao autor: a consciencia é formada pela precedencia do afeto como fonte de modelaçâo social (TORRES, 1982, p. 30). Por conseguinte, para superar a mentalidade "leviana e volúvel" herdada da escravidâo, a solidariedade deve ser fundada na excitaçâo do sentimento e da percepçâo, que dâo forma ao juizo moral sobre a realidade e consistencia afetiva ao vínculo:
Assim compreendida, a personalidade moral do indivíduo é já a sua consciencia nacional. Mais do que expor a influencia do vitalismo, este raciocínio esgota toda a individualidade na sua socializaçâo e toda a socializaçâo no agenciamento emocional, enquanto faz da sociedade a base orgánica da nacionalidade. Nâo poderia ser maior o contraste com o governo liberal, em que a produçâo de sujeitos autónomos e responsáveis passa pela transferencia da atividade governamental para a superfície da sociedade (FOUCAULT, 2009, p. 446). Governar é aqui empoderar os sujeitos de modo a individualizá-los; torná-los cientes dos principios gerais que presidem o governo económico; estimular a racionalidade económica dos individuos, atribuindo-lhes capacidades que tornam aquetas liberdades governáveis, ao favorecer o desenvolvimento de uma psicología cognitiva compatível com o cálculo dos riscos. Para Foucault (2009), reside ai a produtividade política do liberalismo: fornece a critica ao "excesso de governo" no mesmo movimento em que constitui fonte da conduta de si.
Na obra de Torres, encontramos diferentes passagens em que a afetividade, e nao a racionalidade, aparece como motor da mentalidade e do juízo moral. O individuo nao é mais do que o reflexo de uma socializaçao completa, dirigida e coordenada pelo governo: "[...] a sociedade faz o individuo: nao pode produzir individuos úteis uma sociedade que se nao acamou em seu leito natural - que nao coordenou a sua direçao" (TORRES, 1978, p. 51-52). Se nao há sociedade, muito menos há vontades que sejam reconhecidas como fundamento da açao governamental. No lugar do empoderamento de vontades soberanas, encontramos um sujeito moral descolado de dispositivos e práticas de individualizaçao, concebido nao pela sua liberdade contratual, e sim pelo intercambio afetivo, manifesto no convivio comunitário das colónias agricolas; pela psicologia emocional, vinculando suas decisóes e seus interesses a perspectiva do futuro da prole; pela orientaçao da percepçao, com a educaçao voltada para o trabalho e para as formas de cultivar a terra, negociar a produçao e se preparar para as intempéries; e pelo disciplinamento dos corpos, com os cuidados com o consumo alimentar, a educaçao fisica e os hábitos higiénicos.
Se estamos longe do contratualismo liberal e de qualquer concepçao atomistica de sociedade, estamos perto da razao governamental, uma vez que se trata de promover a personalidade moral pela regulaçao das condutas. Entre estas, contam-se, por exemplo, a organizaçao do crédito ao produtor agricola, estimulando sua contabilidade pessoal; a administraçao de suas decisóes pelo conhecimento das operaç0es crediticias do regime comercial (TORRES, 1978, p. 205-206); o oferecimento gratuito do ensino primário e agricola vinculado a necessidade de comprovar titulaçao para o exercicio da profissao (TORRES, 1978, p. 272-273).
O seguinte fragmento é particularmente claro a este respeito:
Notemos que a preocupaçâo com a estabilidade familiar e com o "futuro da prole" delimitam a natureza da vontade que o governo imaginado por Torres deve procurar estimular: circunscreve o crescimento, a vitalidade e a produçâo das familias como objeto de governo, deixando de lado as vontades contratuais e deliberativas, sem as quais é difícil falar no sujeito responsável alvejado pelo liberalismo. A familia é, para nosso autor, a unidade produtiva que deve servir de objeto a um governo. Visualizada como entidade orgánica e totalizante, a familia é alvejada como célula de subjetivaçâo; o individuo somente é tematizado pelo valor que ganha por meio da socializaçâo familiar.
Nao chega a ser surpreendente, portanto, que "a política nacional", leia-se resultante do governo, "[...] se possa definir como atividade espontánea da sociedade, na defesa de seu caráter e de sua economia" (TORRES, 1982, p. 130). Tampouco que a política:
Em outras palavras, uma vez que a politica esteja unificada pela arte do governo, a nacionalidade torna-se instintiva, inscreve-se nos corpos que perfazem a totalidade do organismo vivo; o vinculo moral se estabiliza pelo comportamento automato, antitese da reflexividade; a consciencia flui em um meio nao consciente; a conduta pública, enfim, transmite-se pela tradiçâo e pela hereditariedade.
Parece-nos que este arcabouço vitalista, longe de ser apenas uma filiaçâo ideológica do autor, constitui um modo de visualizaçâo da populaçâo. Uma visualizaçâo marcada pela dimensâo pré-politica, quando considerada do ponto de vista da sociedade, e pela dimensâo nao racional, em relaçâo aos individuos que a compóem. Desse modo, a contribuiçao de Torres se destaca pelo esvaziamento das associaç0es com objetivos puramente políticos, julgadas incapazes de capacitar e habilitar seus participantes. O sujeito de trabalho deve ser produzido pela educaçao moral, sanitaria, alimentar, profissional; nao pela participaçao no jogo politico ou pela construçao da autonomia e da responsabilidade; em uma palavra, pela individualizaçao.
Vemos que a obra de Torres estabelece as bases normativas de rompimento com a sociedade clânica e com a ordem oligárquica do liberalismo sem mercado e da politica sem partidos representativos da opiniao. Paradoxalmente, porém, este quadro é atingido pelo prolongamento da sociabilidade da escravidao, projetando a populaçao a partir da sua exclusao da referencia a política e da privaçao da capacidade deliberativa. Como resultado, o processo de individualizaçao nao seria forjado na experiencia politica e no interesse económico, mas em um conjunto de relaç0es sociais mediadas e garantidas pelo Estado.
Entre a revoluçâo cultural e contrarrevoluçâo política
Escapa aos comentaristas do pensamento de Torres que, embora ele se volte para os temas da divisao do trabalho e da institucionalizaçao dos conflitos, seu discurso nao parte da sociedade atomística como ordem de valor - com sua enfase na impessoalidade, na utilidade e na livre associaçao -, mas a comunidade, com sua referencia a dependencia como necessidade espontânea do organismo vivo. Em vez de mitigar as solidariedades locais fundadas na familia, no parentesco e na vizinhança, a regulaçao do Estado deveria se basear nas relaç0es de reciprocidade, de modo a diluir os efeitos do tradicionalismo, sem introduzir o individualismo no meio social.
Se a problematizaçao da populaçao "nao se apresenta com o aspecto dos conflitos entre capital e trabalho" (TORRES, 1978, p. 47), a questao social pode ser travestida de questao nacional, como o farao seus portavozes dos anos 1910 e 1920. Nao somente as associaç0es de classe e ajuda mutua, como também as alianças territoriais, os compadrios politicos, e até mesmo as devoç0es religiosas, quando extremadas, se tornam fatores de pulverizaçao da nacionalidade e obstáculos a mentalidade do mérito e do empreendimento, que, segundo o autor, somente poderiam encontrar suporte na mediaçao do Estado, único agente capaz de acolher as diversidades e coordenar as energias.
Quando se póe a defender a razáo governamental, a política em si é justamente a ausencia mais sentida. Nao há mençao aos mecanismos de participaçâo, as condięóes da atividade legislativa ou as regras eleitorais, como a restriçao do voto aos alfabetizados, em um país com número de analfabetos estimado em 76% por José Murilo de Carvalho (2010, p. 65), e a conveniencia do voto secreto, já entao bandeira dos congressistas liberals, liderados por Ruy Barbosa e Assis Brasil. Se nao está claramente de acordo, Torres nao se pronuncia contra a natureza extremamente restrita da participaçâo popular e a manipulaçao fraudulenta do voto na prática política do liberalismo oligárquico.
A política nao serve de prisma para a crítica da arquitetura do Estado Oligárquico, que deve ser buscada na razâo governamental, orientada para a promoçâo de uma revoluçâo cultural, isto é, uma revoluçâo silenciosa e gradual da mentalidade de governo. Por tal razâo, nao representa uma ameaça desde o interior do establishment oligárquico, como sugere a opçao por materializar suas diretrizes programáticas em um projeto de reforma da constituiçao. Ao contrário, tais diretrizes tinham por fim prevenir a possibilidade de que as agitaç0es sociais e políticas rompessem de forma traumática com o ordenamento jurídico.
As propostas sistematizam de forma normativa sua análise sociológica sobre os problemas nacionais. Em um primeiro eixo, encontra-se a redistribuiçao de prerrogativas e poderes entre os entes federativos, de modo a garantir a soberanía nacional pelo fortalecimento da Uniao e pela realizaçao de acordos de cooperaçao com estados e municípios. A criaçao de rotinas burocráticas contornaria o caráter disruptivo da política, mediante a representaçao corporativa por profissóes e da implantaçao do poder coordenador e de um conselho nacional, órgao supremo que visaria a moralizar e fiscalizar a autoridade dos tres níveis federativos, atuar como árbitro de seus conflitos, orientar a política tributária, organizar o trabalho e a assistencia mútua e dirigir o aparelho produtivo (TORRES, 1978, p. 259-265).
Em um segundo eixo, encontramos a formulaçao de uma política de populaçao capaz de dinamizar a relaçao entre produçao e consumo, orientar os investimentos pela densidade demográfica e pelas características da ocupaçâo do territorio, revitalizar o homem nacional pelo cuidado com o corpo, a alimentaçâo e a higiene física e mental, universalizar a educaçâo primária e profissional, condiçâo de criaçâo de um sujeito de trabalho.
Esses dois eixos nao estâo separados. Ao contrário, as agencias de regulaçâo e moralizaçâo antevistas por Torres teriam como alvo preferencial os hábitos arraigados e os comportamentos cristalizados, reprogramando-os segundo os imperativos de uma economia dirigida pelo Estado. Desse modo, favoreceriam a produçao de mentes e corpos saudáveis e disciplinados, capazes de administrar o tempo e reagir as intemperies eventuais da carestía, da enfermidade, da crise de produçao e da falta de trabalho, por meio da criaçâo de mecanismos de proteçâo condicionada a observaçâo de condutas desejadas: recurso ao crédito, seguro contra acidentes de trabalho, caixa de assistencia, suporte em matéria de finanças e produçao agrícola etc.
Como exemplo, vale mencionar que o projeto de revisâo constitucional condicionava a atribuiçâo de direitos políticos e civis ao exercício regular de uma profissao, que, por sua vez, apenas poderia ser obtida mediante conclusao do ensino elementar:
A dupla exigencia que atrela o direito ao voto ao exercício profissional e este a obtençâo de escolaridade mínima sugere uma saída para o seguinte impasse: como a razao governamental pode promover a formaçao tao necessária do caráter do povo sem recair no risco do protagonismo político das massas? Dito de outra forma, como manter o controle e o baixo grau de participaçâo das massas em uma ordem pública autónoma garantida pelo Estado? Formando um regime de opiniâo pública e reformando o regime jurídico vigente, o que permite promover a operacionalizaçao das condutas e o governo da opiniao, deixando intocados os temas políticos mais sensíveis as oligarquías estaduais, tais como a organizaçao dos partidos, o voto aberto, as regras eleitorais e a participaçao popular.
Para serem realmente representativas, é necessário que as eleiçoes - enquanto expressáo da vontade política - se subordinem ao regime da opiniáo pública, o qual é o único que pode "exprimir a natureza mental do povo", seu grau de autoconsciencia, sem o que apenas resta a violencia do desejo passional da maioria e o cerceamento das liberdades praticado por partidos e outros agrupamentos políticos (TORRES, 1978, p. 90).
Assim, é o regime das opinióes que deve ser visado pela açao governamental. Eis a instancia onde se encontra a clivagem entre os que podem e os que nao podem participar ativa e legitimamente da construçao da esfera pública. Já que os partidos atuam como forças contrarias ao incitamento da corrente de ideias, serao "os centros intelectuais ativos, operando com energia e liberdade" (TORRES, 1978, p. 91) os atores responsáveis pela formaçao da opiniao pública, de maneira a libertá-la da influencia nociva do formalismo de bacharéis e "[...] escritores que jamais se detiveram no trabalho de formar ideias gerais sobre seu conjunto, nem no de reunir os dados dos seus problemas" (TORRES, 1978, p. 46).
Nesta conta, seria preciso expropriar o papel da imprensa e da política na direçao da opiniao, transferindo-o para a autoridade do intelectual e do técnico, únicos atores capazes de cultivar a personalidade moral do povo e de forjar uma opiniao pública dotada de visao orgánica e empírica sobre os problemas nacionais. Segue-se que, diferentemente da governamentalidade liberal, a formaçao da opiniao aparece aqui completamente apartada da experiencia política, transformando-se em voz autorizada pelo suporte da ciencia e da técnica.
Portanto, a razao governamental deve guiar a conduta pela fabricaçao do consenso, mas nao aquele produzido pela socializaçao política nas praças e nas ruas. Tampouco o consenso da verdade expressa no pleito e no resultado eleitoral, visto que pode ser enganosa quando nao estiver acompanhada da opiniao autorizada do técnico. Pelo que se depreende da representaçao comunitária da sociedade, o consenso deve ser alvejado pela diversificaçao das relaç0es empáticas e das conexóes afetivas mediadas pela ordem estatal, de modo a intervir sobre as disposiç0es emocionais em que se assentam os vínculos morais.
Revendo a moldura jurídica: do policiamento ao assujeitamento
Os vínculos moráis devem ser lastreados pelas duas principais fontes de produçâo do sujeito ético: o governo da opiniâo e o governo da lei, por meio dos quais se mediam as percepçoes e as expectativas, e se delimitam os termos do dissenso. Já comentamos sobre o primeiro. Veremos, entáo, de que forma Torres investe sobre o segundo como elemento estruturante da interdependencia social.
No lugar de uma concepçâo puramente restritiva e punitiva da lei, que dominaría o regime jurídico vigente na Primeira República, propóe outro regime jurídico, compatível com um governo que tem nao o político, mas o social e o económico como horizonte de inteligibilidade:
Trata-se aqui de reformar o regime jurídico para promover as garantias contra a carestia, a penúria e outros obstáculos ao desenvolvimento pessoal mais elementar, sem o que nao é possível reorientar a política fiscal, dinamizar a produçâo, ou criar a figura do consumidor. Por essa via, supera-se um regime marcado por uma concepçâo puramente restritiva e punitiva da lei, incapaz de vincular interesses de grupos sociais distantes. Regime igualmente marcado por um Estado policial, que nao produz a obediencia pela persuasâo, mas, antes, a impóe pelo abuso da repressâo violenta e do estado de sítio: "[...] a violencia é o agente real da criaçâo e da formaçâo de autoridade, desde que existe entre esta e a sociedade o nexo do mandato por acordo de ideias, da eleiçâo por aceitaçâo de soluç0es" (TORRES, 1978, p. 216).
Para superar esta ordem, nao basta uma razâo afetiva que produza disposiç0es emocionais e relaç0es empáticas por baixo. Deve-se, igualmente, reprogramar a conduta das elites atuando sobre a sua vontade política e seu interesse económico. Nesta partiçâo, sentimos mais uma vez a presença da escravidâo como forma de sociabilidade, uma vez que, além de legar a indigencia as massas, deitou raízes sobre a mentalidade das elites, com sua ética profundamente antieconómica:
Passagens como essa tomam a escravidâo como o nexo moral entre o estrato superior e o inferior, que partilham da paralisia produtiva e da deformaçâo do caráter. Visto desde a razâo governamental, é o oficio mecánico e inconsciente do ex-escravo e do dependente pessoal, alienado de qualquer reconhecimento e criatividade, o que os une a indiferença dos especuladores e rentistas, ambos os grupos marcados pela mesma indisposiçâo para a vida pública. As consequencias deste desvio sâo, todavia, distintas: de um lado, desagregaçâo do núcleo familiar e prática de atividades predatorias, como a agricultura extensiva; do outro, incapacidade de geraçâo de riqueza e desprezo pelo trabalho manual.
Reverter esse quadro seria a "tarefa mais urgente de nossa geraçâo". Passaria pela mudança da moldura jurídica, deslocando uma concepçâo estritamente coercitiva e punitiva da lei por outra mais atributiva, e um modelo de policiamento repressivo por outro de assujeitamento, em que a imposiçâo da obediencia dá lugar a sujeiçâo produzida por induçoes, sugestóes, incitaçoes, e modulaçoes de conduta6. Dizer isso nâo implica,
no entanto, que esta modulaçâo ocorra de modo semelhante quer estejamos considerando o topo ou a base da pirámide. É fato que Torres näo é explícito e sistemático neste ponto, mas nos fornece alguns elementos que indicam a sua pertinencia.
Quando se trata da base, isto é, da massa indigente que corresponde a sua concepçâo de populaçâo e de onde deverá sair o embriáo da nacionalidade a ser formada, parece-nos que o foco é a intervençâo sobre o regime de interaçoes. Entendemos por isso os agenciamentos afetivos que produzam a estabilidade e a produtividade da família, célula em que se forja e encerra a individualidade pela razáo governamental desenhada por Torres. Nesse nivel, teríamos o assujeitamento do trabalhador pelo convivio comunitário nas colonias agrícolas, pela educaçâo primária e o acesso aos direitos civis e políticos que lhe sao facultados, pelo ensino agrícola voltado para as formas de cultivar a terra, negociar a produçâo e lidar com as intempéries. Ou seja, investimentos que solidificam a expectativa de futuro, de si e da "prole". Também situamos neste regime de interaçoes as técnicas de cuidado de si, isto é, de reforma dos hábitos por meio da educaçâo sanitária, alimentar e estética, que instauram a problemática do governo no cotidiano e na vida privada.
Por fim, incluímos no regime de interaçoes os espaços de socializaçâo voltados ao estreitamento da interdependencia económica, através do assujeitamento do sertanejo disperso como produtor e consumidor. Aplicam-se aqui "[...] as instituiçoes de mutualidade com fins comerciais, os armazéns gerais, os entrepostos de exportaçâo e consumo; os matadouros, feiras, mercados e depósitos nos centros populosos, combinados com as cooperativas" (TORRES, 1978, p. 209); em suma, espaços funcionais e viveiros de sociabilidade que adensam as relaçoes de troca.
Se é verdade que há aí a possibilidade de um assujeitamento pelo interesse económico, este jamais é visado a título individual, e sim pela mediaçâo de comunidades morais homólogas a família, como as mutualidades e as cooperativas. A lista se completa com medidas de subvençâo de insumos para nacionais e estrangeiros já estabelecidos no país, e a "publicaçâo frequente de cotaçoes de preços correntes, acompanhada de um regime de fiscalizaçâo e de polícia económica, destinado a facilitar os negócios entre produtores e consumidores". Neste último caso, trata-se de prover os meios de monitoramento de informaęóes, que assumem um sentido bem próximo ao do regime de opiniáo antes visto - ou seja, indicadores que sirvam de referente público para as decisóes económicas -, este característico do liberalismo.
Quando atravessamos a escala para chegar ao estrato superior, defrontamo-nos com outro tipo de assujeitamento, embasado no ajustamento do interesse económico e da vontade política das elites dominantes. Diferentemente do que vimos para a base, näo é o caso aí de trazer de forma subordinada para a vida pública a massa que dela está excluida, mas de reorientar a conduta de quem é nela o ator por excelencia. Trata-se de governamentalizar as elites pela remoçâo do estadualismo oligárquico na política e pela reversâo da especulaçâo improdutiva da propriedade e do desapreço contra o trabalho manual na economia. Medidas que promoveriam a esfera pública nacional.
As medidas práticas anunciadas por Torres (1978, p. 205-206), de uma maneira ou de outra, atuam sobre o interesse económico, por meio da promoçâo do incentivo fiscal, da reduçâo das despesas e dos impostos de exportaçâo, da concessâo de crédito e da amortizaçâo de dívidas. Em seu conjunto, permitiriam diminuir a ociosidade das grandes propriedades, aumentar e diversificar os géneros de exportaçâo, balancear a tributaçâo segundo a capacidade de pagamento dos estados e proteger a produçâo nacional contra a pressâo dos juros e a concorréncia estrangeira. Além disso, visa-se estabelecer o regime comercial orquestrado por uma política nacional, que vincula os mecanismos de proteçâo a observaçâo dos compromissos exigidos em caso de recurso ao crédito ou aos "favores dos poderes públicos". Trata-se de promover uma mentalidade compatível com o cálculo dos riscos, acenando aos especuladores e rentistas com os ganhos líquidos que adviriam de uma mudança de seu agenciamento económico.
Assim como o agenciamento do grande proprietário é afetado pela produçâo de novas liberdades económicas, o interesse das elites regionais é visado pela maximizaçâo dos benefícios concedidos aos estados e municípios, que emergiria com a cooperaçâo de esforços em uma ordem estatal autónoma.
"A prática política teria concorrido para desvirtuar a Constituiçâo e as instituiçoes" (TORRES, 1978, p. 72). Os estados selaram sua supremacía sobre a uniáo, decidindo sobre as condiçoes de intervençâo federal, quase que exclusivamente limitada a decretaçâo do estado de sitio, recorrendo as tropas federais para assegurar seus ganhos privados face a ameaça de levantes e agitaçoes populares. Assim, teriam sido "os homens políticos da república, estadualistas por amor local e por força do interesse representativo" os algozes responsáveis pela ausencia de uma coordenaçâo nacional (TORRES, 1978, p. 74).
Somente por meio da fundaçâo da "sociedade governamental", "característica dos governos democráticos", "é que se poderá elevar o valor moral dos governantes" (TORRES, 1978, p. 97). Novamente somos levados pela lógica dos beneficios de uma transformaçâo estrutural, em média e longa duraçâo, mas que, paradoxalmente, se pretende nao apenas compatível como restauradora do espírito da Constituiçâo de 1891, o que reafirma a concepçâo da revoluçâo governamental como contrarrevoluçâo política, discutida anteriormente.
Como, entâo, estimular a vontade política dos representantes das oligarquías estaduais para que eles nao apenas aceitem como demandem, por iniciativa própria, açoes de cooperaçâo e intervençâo federal, de modo a diminuir os custos de combate a males públicos, como as epidemias e as endemias? É importante ressaltar que Torres nao coloca esta questâo. Pensa na coordenaçâo nacional de forma abstrata e basicamente vitalista, embora assinale a importancia dos convenios entre uniâo, estados e municípios como instrumento privilegiado para a construçâo de um pacto federativo que servisse de base a "organizaçâo nacional", ainda que com um evidente protagonismo do executivo (TORRES, 1978, p. 243).
Temos, portanto, alguns elementos dispersos, porém consistentes, que apontam para a partiçâo tática do assujeitamento, em ambos os casos baseada na reforma da moldura jurídica. De um lado, o polo da massa, alvejada a partir da regulaçâo dos corpos e de seu comércio afetivo, no cotidiano e nas interaçoes. Do outro lado, está o assujeitamento das elites, com base no reconhecimento da soberania individual e na produçâo de liberdades económicas pelo ajuste das vontades. É neste último polo que encontramos a mentalidade de governo típica do liberalismo, ou seja, a estimulaçâo da racionalidade económica e do cálculo dos riscos, meios de fabricaçâo do sujeito autónomo. Para examinarmos a concepçâo e a política de populaçâo nesta razao governamental, é ao primeiro polo que devemos voltar nossa atençâo.
Por uma política de populaçâo
Fundar a açâo pública nos processos que constituem a populaçâo e seu governo. Parece-nos ser este o deslocamento que a contribuiçâo de Torres opera sobre o modelo de povoamento da Primeira República, visto por ele como o responsável pelas assimetrias entre o mundo urbano e o rural, entre o litoral e o interior. Um modelo incapaz de integrar as elites a um projeto nacional ou de transformar o lavrador em produtor e consumidor e, portanto, de dinamizar a economia e formar a sociedade.
Comentar nao acerca da soma de aldeamentos e agrupamentos humanos, mas da populaçâo como objeto de governo pressupóe projetá-la em devir permanente, ou seja, tomar a sua conformaçâo histórica, a sua distribuiçâo geográfica, o seu movimento demográfico e a sua estratificaçâo económica como referente fundamental do governo, ainda que os modos de representar e agir sobre ela sejam variáveis historicamente. Nesse sentido, somente é lícito falar em uma política de populaçâo quando esta é representada como força que pode ser expandida e estimulada, que pode ser otimizada pelo Estado, mediante intervenç0es urbanísticas e sanitárias da biopolítica. Ou, ainda, ser evocada como barreira contra as aç0es deste mesmo Estado, como na crítica da economia política ao "excesso de governo".
Veremos, nesta seçâo, como a reflexâo torreana alça a populaçâo a condiçâo de grade de problematizaçâo nâo da riqueza, mas da prosperidade nacional; nao do território, em seus recursos naturais e constituiçâo física, mas da própria agencia humana. Para tanto, tres obstáculos deveriam ser removidos: o patriotismo ancorado na tradiçâo e no parentesco; o meio e a raça como variáveis determinantes do desenvolvimento nacional; o modelo de povoamento e extraçâo da riqueza, ancorados em uma política territorial descolada das características e da densidade da populaçâo.
A superaçao do patriotismo tradicional, para Torres (1978), é "[...] sentimento instintivo que une o homem a terra natal" (p. 106), pelo nacionalismo moderno, "um móvel afetivo racional" (p. 123), o qual corresponde ao deslocamento do território como fonte principal de identidade e pertencimento comunitario, que confinava os grupos sociais em solidariedades locais, por meio da tradiçao, da ancestralidade e da oralidade. Logo, contra este patriotismo instintivo, que oscila entre a estetizaçao da natureza e o sentimento belicoso de negaçao do inimigo, é preciso promover a "sensaçao de segurança e proteçao legal que tranquiliza os espíritos nas sociedades modernas" (TORRES, 1978, p. 112).
Há um evidente sentido de ruptura e urgencia que preside o devir histórico, uma vez que o nacionalismo nao brotará do simples decurso do tempo ou dos estágios da civilizaçao, e sim de uma açao organizada, segundo o princípio de utilidade que caracteriza a "sociedade governamental". O território perde sua dimensao sagrada, um limite que a natureza impóe ao governo, para se tornar sua fronteira, um convite a expansao da agencia humana. Este aspecto, determinante para uma política de populaçao, fica mais transparente quando revisamos o lugar que ocupam o meio físico e a raça na ideia de naçao.
a) Raça e meio, entre a divisao e a coesao
A posiçao de Torres sobre a questao racial é um tanto controvertida. Por um lado, situa-se entre os que negam a cientificidade do argumento sobre a pureza das raças atávicas, que remonta a Gobineau e Agassiz. Por outro lado, sua voz está entre as poucas dissidentes da tese do branqueamento, formulada por Silvio Romero, que buscava contornar o fatalismo que o olhar europeu reservava aos trópicos, ao conciliar a realidade da mestiçagem com a promessa de futuro. De acordo com esta corrente, no intervalo de algumas geraç0es, negros e mestiços seriam eliminados pela introduçao massiva de sangue branco aportado pela imigraçao europeia no país (SCHWARCZ, 1993; SKIDMORE, 1991). Contra estas prediç0es, o autor relativizou o papel da raça como elemento da nacionalidade, enquanto enxergava no caldeamento étnico do Brasil um importante aspecto formativo da comunidade moral.
Torres procurou demonstrar que a miscigenaçâo estaria na própria origem dos povos europeus, citando a composiçâo tripartite da Suiça, a diversidade étnica dos Estados Unidos e a fusáo de teutos, hunos e magiares na formaçâo da Áustria-Hungria. Ao afirmar que "[...] nenhum dos povos contemporáneos é formado de uma raça homogénea e alguns se compóem de raças distintas", desfaz-se do paradoxo do branqueamento pela miscigenaçâo; ainda que "[...] o Brasil conte exemplares de raças extremas, somente um cuidadoso estudo etnológico autorizaria a classificaçâo de cada alemâo de Blumenau como germánico, e de cada italiano, espanhol ou portugués de Sâo Paulo, de Minas e do Rio de Janeiro como latino" (TORRES, 1982, p. 28). A tese do branqueamento correspondería a ilusâo de que seria possível subverter o hibridismo na origem e realizar a utopia da uniformidade étnica no futuro.
Com esta visâo, Torres situava-se entre os que defendiam ideias antirracistas, justamente no período da hegemonia do racismo científico, contribuindo para formar a representaçâo do Brasil como naçâo mestiça e tolerante, que atingiria seu paroxismo com Gilberto Freyre, nos anos 1930. Ao lado de Manoel Bomfim, de Roquete-Pinto e dos médicos sanitaristas, Torres negava radicalmente o dogma da desigualdade racial, concebendo o preconceito de cor como um reflexo da desigualdade social. Uma vez que se verificasse a integraçâo das populaç0es abandonadas e o adensamento moral da sociedade brasileira, a insularidade dos agrupamentos sociais seria superada e o preconceito racial desapareceria. Como afirmou Sergio Costa (2003, p. 114), trata-se de uma atitude incompatível com o pensamento antirracista contemporáneo, que vé na explicitaçâo das classificaç0es raciais a única possibilidade de combater o racismo embutido nas práticas culturais e nas formas de distribuiçâo das oportunidades sociais.
Naquele contexto, entretanto, a contestaçâo do racismo era bastante progressista e, em autores como Torres, relacionava-se a defesa de um olhar menos etnológico e mais sociológico sobre a populaçâo. Por isso, era preciso desfazer a representaçâo antinómica colonialista que projetava as naç0es europeias como constituídas por populaç0es racial e culturalmente homogéneas, e mostrar que as naç0es oriundas da mistura poderiam ser viáveis (COSTA, 2003, p. 123-124). Neste ponto, Torres aproximava-se de Manoel Bomfim, que se esforçava por mostrar que os Estados Nacionais sao fusóes de tradiçoes culturáis e grupos étnicos diversos, unificados em torno do "tipo psicológico que define a nacionalidade" (BOMFIM, 1997, p. 187). Para ele, o mestiço nao representava a transiçao para o branco, como queriam Silvio Romero e Oliveira Vianna, mas o tipo racial novo, a forma acabada e estável da nacionalidade.
Diferentemente de Bomfim, contudo, Torres interpreta o caldeamento étnico e cultural que produziu nossa formaçao social como um ponto de partida da açao governamental. Em vez de se basear no afluxo de imigraçao e no decurso impreciso de geraç0es, como queria o branqueamento, uma política racial eficiente deveria mirar "[...] na consolidaçao do caráter do povo, pela educaçao; na defesa da sua economia física, pela alimentaçao e pela higiene pessoal, doméstica e pública; na defesa da sua economia social, pela política económica" (TORRES, 1982, p. 71).
Nesse argumento, a raça deixa de ser um fator de fratura interna, ou, ainda, o principal elemento de uma nacionalidade inconclusa para se tornar um componente da vitalidade da populaçao, que deve ser protegido e fortalecido. Uma posiçao que se harmonizava bem com o cenário dos anos 1910 e 1920, quando a carestía, a insalubridade e o analfabetismo passaram a ser valorizados como males públicos, e problematizados por atingirem transversalmente a populaçao.
Uma cisao importante se operou entre as elites intelectuais, que até entao nao hesitavam em "[...] tomar as raças e a miscigenaçao como limites básicos para a atualizaçao do Brasil e sua adequaçao aos padróes do mundo civilizado" (OLIVEIRA, 1990, p. 145). Os aspectos constitutivos do meio e da raça, que faziam da nacionalidade a matriz explicativa da realidade, sucumbem a saúde e a educaçao enquanto fonte de subjetivaçao do homem nacional.
No debate intelectual, raça e racializaçao assumiriam novos sentidos. Também aqui, Torres nao estava sozinho. Por um lado, o movimento sanitarista enfatizava a irrelevância da raça como categoria explicativa para a doença. Seus principais nomes, como Belisário Penna, Arthur Neiva, Miguel Couto e Afrânio Peixoto, insistiam que a ancilostomíase e outras moléstias constituíam elementos de "nacionalizaçao" do imigrante, vítima, da mesma forma que o trabalhador nacional, da "pandemia da preguiça" (PENNA, 1918 apud LIMA, 1999, p. 104). Entre os intelectuais que aderiram a campanha pelo saneamento dos sertóes, a despeito de persistirem estereotipos e afirmaęóes em que aparecem ideias associadas a diferenças račiais, pode-se afirmar um claro predominio de um discurso que refutava a atribuiçâo da inferioridade étnica a populaçâo brasileira. Um movimento de desracializaçâo da doença e dos fatos biológicos, portanto.
Por outro lado, o termo "raça" tornou-se táo ou mais empregado do que antes, passando a carregar bastante imprecisáo e a se referir ao conjunto do povo brasileiro. Um fato novo, mas nao contraditório. Embora os adeptos do antirracismo refutassem a biologia como matriz explicativa dos diferentes niveis de progresso material e moral entre as varias sociedades, partilhavam de um conceito de cultura e civilizaçâo no singular. A civilizaçâo europeia constituía o padrâo que empregavam para medir o grau de desenvolvimento dos povos, permanecendo a meta a ser alcançada em todas as regióes do mundo. O que possibilitava a rejeiçâo da raça como categoria de análise das diferenças humanas era justamente a racializaçâo da cultura, que começava a orientar o pensamento social. Este quadro estabelece alguns limites claros ao antirracismo de Torres, mas também chama atençâo para as articulaç0es entre a racializaçâo da cultura e a política de populaçâo, que apontam para o novo uso da "raça", subordinado as reflexóes sobre a interdependencia social.
O sanitarismo alcança seu apogeu no Brasil dos anos 1920, momento de recepçâo das ideias da eugenia, entendida como o aprimoramento das novas geraç0es. Torres é um dos primeiros a evocar estas ideias. Já em 1912, reputava que uma "politica eugenica bem inspirada, sincera e conscientemente preocupada em facilitar e favorecer o desenvolvimento espontáneo do homem brasileiro, nas melhores condiç0es de adaptaçâo e progressividade deve procurar, esforçadamente, manter puros os tipos étnicos aclimados, para que estes, evoluindo naturalmente, manifestem e desenvolvam os caracteres próprios" (TORRES, 1982, p. 77).
A nosso ver, a condenaçâo aos "cruzamentos inter-raciais" para proteger a adaptabilidade adquirida pelos tipos étnicos originais nao deve ser vista como uma defesa do determinismo mesológico ou climático. Como mostrou Nancy Stepan, a recepçâo da eugenia e seu vocabulario racialista na América Latina esteve associada a reivindicaçâo de uma legislaçâo de proteçâo social que pudesse promover a condiçâo mental, física e moral dos mais pobres. Este entendimento estava de acordo com a vertente neolamarckiana da eugenia, de origem francesa e hegemônica no Brasil. Segundo esta corrente, os melhoramentos adquiridos na relaçâo do individuo com o meio físico e social durante seu curso de vida seriam incorporados ao seu patrimonio genético, modificando sua aptidáo para a seleçâo natural (STEPAN, 1991, p. 74).
Os sanitaristas, assim como Torres e a maior parte dos intelectuais brasileiros seriam bastante sensíveis a chamada "eugenia positiva", isto é, a defesa do "melhoramento da raça" com base na açâo sobre o meio social, a conduta e as condiçoes de vida. Muito diferente, portanto, da posiçâo dos porta-vozes da "eugenia negativa", como Renato Kehl, publicista inveterado das teses de controle de casamentos, de esterilizaçâo dos miscigenados, e das cotas raciais para a imigraçâo (LIMA, 1999, p. 115).
Paradoxalmente, a defesa intransigente do hibridismo étnico que nos caracteriza como naçâo passava pela preservaçâo da pureza racial dos grupos aclimados, pois, ao contrario do que se deu nas matrizes europeias, tais grupos se encontravam sob perigo de desaparecimento, por nao terem sido integrados ao aparelho produtivo. Devemos relembrar a insistencia de Torres em proteger a populaçâo, massa depauperada situada entre o eito escravista e a classe senhorial, contra o abandono que lhe foi destinado, a desorganizaçâo da produçâo e a concorrencia desleal com os imigrantes por postos de trabalho. A eugenia positiva encontra-se, assim, integrada a política de populaçâo, de modo a revitalizar os núcleos formadores e prepará-los para a assimilaçâo do imigrante, evitando a descaracterizaçâo da nacionalidade.
b) O povoamento como fonte de integraçâo social
A lógica de povoamento por imigraçâo, herdada do império e alçada na república a uma das mais importantes políticas de Estado, é um dos principais alvos de A organizaçao nacional e O problema nacional brasileiro, e inseparável de sua crítica ao modo entâo preferencial de ocupaçâo e exploraçâo do território.
O povoamento que se praticava consistía na atraçâo de imigrantes para trabalharem na lavoura, especialmente naquelas destinadas ao cultivo dos generos de exportaçâo. Uma dispendiosa propaganda no exterior buscava fixar o estrangeiro em solo nacional, idealmente por laço matrimonial com uma brasileira, atenuando-se as exigencias para naturalizaçâo. No entanto, longe de organizar o trabalho, o agenciamento de forasteiros reforçava a economia dirigida para a exportaçâo, a taxaçâo e o ganho especulativo. Incluíam-se aí as obrigaçoes contratuais assumidas pelo imigrante que teve sua passagem subvencionada, como os empréstimos a juros quase impagáveis, o tránsito controlado e a restriçâo da compra de alimentos as imediaçoes da fazenda. Recursos que escasseavam a mobilidade social, e até mesmo física, do trabalhador, aprisionando-o a uma situaçâo de dependencia pessoal.
Näo é difícil perceber que esse tipo de trabalho semidependente dificilmente poderia dar origem a um padráo de consumo, e que sequer era alvejado como fonte de renda para efeito de ampliaçâo do consumo nacional. Nesse quadro, o autor se esforçou por mostrar que o modelo de povoamento encampado pela república minimizava as possibilidades de diversificar a produçâo e desenvolver o mercado interno, enquanto escapava a problematizaçâo das condiçoes de trabalho e reduzia a visáo de povoamento ao mero aumento absoluto da populaçâo e ao crescimento dos setores comerciais ligados a exportaçâo.
O volume da populaçâo pode ser ilusorio se nao assenta sobre a densidade das trocas e interaçoes que a infraestrutura existente permite estimular: "[...] a devastaçâo de novas regióes para colonizar nao dá senâo a ilusâo do aumento da populaçâo. Ainda por essa forma, o caráter da populaçâo que se estabelece e a natureza da exploraçâo sâo tâo instáveis que nao ocorre efetivamente aumento" (TORRES, 1978, p. 188). Como peça de propaganda, o povoamento pode mascarar os desarranjos na estrutura económica e aprofundar a ocupaçao irregular. Neste caso, tal como a visao estática da raça, constitui nao uma possibilidade, mas um limite ao governo, impedindo a criaçao de ambientes artificiais monitorados a distancia, ao longo do territorio.
Entre os vicios inerentes a este modelo, encontra-se a construçao das estradas de ferro, por nao ter como objetivo o desenvolvimento da populaçao. Além de expulsar assentamentos humanos, sem planejar sua realocaçao, a localizaçao das vias férreas era determinada por clientelismo e acordos entre as oligarquías, e na preferencia em interligar cidades e estados estratégicos para a agroexportaçao:
Com efeito, as estradas sao a causa da migraçao descontrolada e da desarticulaçao da vida rural. Personificam a imagem inventiva do autor, que opóe a civilizaçao construida no litoral as expensas da barbárie do interior abandonado, exprimindo a relaçao parasitária que se estabeleceu entre um e outro, tema fundador da sociologia brasileira, como mostrou estudo de Nísia Trindade Lima (1999).
Nao bastasse isso, as vias férreas sao o melhor exemplo da atitude imitativa e reverente das elites governantes, uma importaçao custosa e contraproducente que elas foram buscar na Europa e nos Estados Unidos, mas que nao cumpre sua funçao de integraçao nacional, porque nao foram observadas as condiç0es históricas que devem determinar sua pertinencia e aplicaçao. Nossos estadistas nao teriam entendido "[...] que a viaçao férrea foi estabelecida, na Europa, a fim de ligar densas populaç0es já existentes, e se foi desenvolvendo, nos Estados Unidos, conjuntamente com a populaçao" (TORRES, 1978, p. 190-191).
Consequentemente, a ligaçao ferroviária deveria ser descartada como opçao em paises que nao conhecem uma forte densidade populacional. Mais do que isso, ao introduzir a variável fundamental da densidade demográfica, Torres sugere que é sobre ela que a açâo governamental deve incidir; afinal, uma densidade relativamente alta e balanceada em nivel nacional é sinónimo de um crescimento embasado no investimento em bens e equipamentos públicos, sem os quais nao é possível organizar o trabalho como fonte de produçao da riqueza.
Também aqui a reflexao de Torres acompanhava a mudança mais ampla na racionalidade política. A problematizaçao do territorio e da ocupaçao pela dinámica demográfica da populaçao encontrava-se no ámago do discurso estatístico daquele momento. Veja-se o caso do Censo de 1906, o primeiro a privilegiar a densidade demográfica da capital federal, chave para o zoneamento sanitário da cidade e para a visualizaçao dos focos epidémicos, que estavam sendo erradicados pela reforma sanitária. A densidade também importava como meio de visualizaçao das moradias urbanas, porque a inspeçao e a regulaçao estavam entre as principais estratégias para o saneamento do Rio de Janeiro. Tanto que um segundo volume, inteiramente dedicado a estatística predial, destacava os niveis de aglomeraçao e as condiçoes sanitárias de habitaçao e coabitaçao, principal alvo da política de saúde que entao se implementava (CAMARGO, 2016, p. 368-369).
A nova preocupaçao com a densidade demográfica apontava para o reconhecimento das dinámicas socioespaciais que regem o movimento da populaçao. É nesse sentido que devemos compreender sua condenaçao a imigraçao, quando praticada sem atençao ao perfil da populaçao e da ocupaçao do territorio, uma vez que subverte o crescimento considerado "normal", ou seja, aquele que se verifica quando o governo busca remover os obstáculos a expansao das forças que constituem a populaçao (CAMARGO, 2016).
Considerares finais
Neste artigo, examinamos as linhas motoras de uma razao governamental que nos parece sistematizada pelo pensamento de Alberto Torres. Tal pretensao nos permite superar os limites da análise que relaciona sua obra a uma matriz de pensamento autoritário ou conservador. Ao invés disso, procuramos seguir uma perspectiva capaz de vislumbrar a continuidade renovada de uma estrutura de sociabilidade tradicional em meio a ruptura das novas formas sočiais promovidas pela estatizaçâo da sociedade e pelo Estado fundado na razáo governamental. Desta ruptura resulta uma hibridizaçâo entre o velho e o novo, que mescla transformaçâo estrutural e preservaçâo da ordem constitucional; revoluçâo cultural e contrarrevoluçâo política, regulaçâo da agencia e conservaçâo orgánica; superaçâo da dependencia pessoal e afetividade comunitaria; disciplinamento dos corpos e soberanía da vontade; intelectualismo e autonomia da opiniáo.
Vimos que Torres náo escreveu alheio a seu tempo e seus contemporáneos. A reflexáo sobre a razáo afetiva na relaçâo entre natureza e sociedade é claramente influenciada pelo vitalismo. A recusa da raça como categoria analítica encontrava seus limites na noçâo evolucionista de cultura, visáo comum a outros autores que náo se alinhavam com a tese do branqueamento, como Manoel Bomfim. A maneira dos sanitaristas, a defesa da eugenia positiva visava a construir o sujeito ético e o homem nacional pela açâo sobre as condiçoes de vida dos agrupamentos humanos. O mesmo pode ser dito em relaçâo a preocupaçâo com a densidade demográfica e as dinámicas socioespaciais, que começavam a figurar nos dispositivos de quantificaçâo da populaçâo, como o censo de 1906. Ao destacarmos a racionalidade política que unia Torres a outros atores e movimentos do seu tempo, tentamos mostrar que o elo entre o tradicional e o moderno é uma chave importante para compreender sua gigantesca e imediata influencia.
Por um lado, a política de populaçâo preconizada por Torres é profundamente marcada pelo problema fundamental da integraçâo subordinada das massas. Por outro lado, sua obra se reaproxima do liberalismo ao tratar da governamentalizaçâo das elites, especialmente no tema da coordenaçâo ("cooperaçâo") nacional. Assim, por exemplo, ao afirmar que "[...] autonomia e soberania, descentralizaçâo local e força política da Uniáo deixam de ser elementos discordantes, para se tornarem verdadeiros tecidos que se integram e se completam, no fim comum do bem do homem" (TORRES, 1978, p. 243), valida um postulado essencial do liberalismo: o princípio da autonomia é a fonte que produz e circunscreve a soberania.
O conservadorismo é matizado pelo liberalismo, que, como defendemos, está no pano de fundo da sua reflexáo. Gabriela Nunes Ferreira chamou atençâo para sua adesáo aos princípios da democracia liberal. Além da manutençâo do sufragio universal, sua obra defende o habeas corpus, a igualdade dos individuos perante a lei, o direito a propriedade, a liberdade de imprensa e a liberdade política. A crítica ao regime federativo se faz muito mais em relaçâo aos seus excessos, que impediam o Estado de tematizar e proteger os desejos e anseios da populaçâo. Corrigida a distorçâo do estadualismo, o federalismo mantinha-se como regime ideal para as dimensóes continentais e as especificidades regionais do país. Por sua vez, a representaçâo classista restringia-se a uma parte da composiçâo do senado, para fazer frente ao elevado número de profissionais liberais e funcionarios públicos, de modo a refletir de forma mais fidedigna a correlaçâo de forças existente na sociedade. Buscando refinar a representaçâo politica diante do avanço da divisâo do trabalho, alinhava-se aos reformadores liberais europeus. Por fim, seu plano para os partidos políticos objetivava transformados em plataformas de coesâo ideológica, expressâo dos interesses antagónicos dos grupos sociais (FERNANDES, 2010, p. 111-114).
Ao lado desses traços mais institucionais, nosso argumento procurou mostrar como a racionalidade política do liberalismo se faz presente na obra torreana. Ela se encontra na concepçâo de governo como campo de possibilidades da agencia social, a partir do qual as técnicas de si e as instituiç0es garantidas ou certificadas pelo Estado visam a incitar e induzir determinadas aç0es, em detrimento de outras. Deste ponto de vista, notamos um viés mais marcadamente liberal, relacionado a persuasâo e ao contrato, em matéria de coordenaçâo, quando estâo em jogo as vontades de um pacto societario (federativo). Em outros momentos, esta inclinaçâo se arrefece, quando a atençâo se desloca para os temas de populaçâo, alvejados pela lógica afetiva das interaç0es comunitarias. Este importante aspecto de seu pensamento tem sido negligenciado tanto pela crítica liberal do autoritarismo e da centralizaçâo, quanto pelos partidarios da expansâo da regulaçâo estatal. Uma lacuna que o presente artigo pretendeu preencher.
[...] como populaçâo, situada entre a classe senhorial e os escravos, [...] havla a ¡mensa massa dos 'agregados', familias de individuos ociosos, analfabetos, mal nutridos, morando nos 'sitios', desprezados das fazendas, que só apareciam nos jongos' dos dias de festa, e de cujo serviço só havia noticia nas anedotas picantes da domesticidade dos fazendeiros. (TORRES, 1978, p. 100).
[...] a autonomia de um povo nasce em sua consciencia: a raiz da personalidade é a mesma, no homem e na sociedade. Ter consciencia significa possuir os poderes de sensaçâo e de percepçâo, o de formar juízos concretos, sobre as coisas; juízos abstratos, sobre as ideias; juízos morais, que sâo como a faculdade superior do afeto. O sentimento é a razāo da natureza emocional. (TORRES, 1978, p. 47, grifo do autor).
[...] com o desenvolvimento da ambiçâo, fundada no trabalho, apura-se o zelo pela sorte da família: o sentimento humano - disperso até entāo por toda espécie de crenças - torna-se objetivo, concentrando-se nos laços das afeiçöes reais: o amor vai absorvendo a fé, a divindade vivifica-se nas diversas formas do ideal, que, para as almas mais simples, se resume no problema da sorte dos filhos. (TORRES, 1978, p. 111).
[...] resulte de um instinto da própria nacionalidade, isto é, de certo número de hábitos gravados hereditariamente nos organismos, transmitidos pela tradiçâo, que conservam o vínculo do interesse coletivo, a consciencia dos perigos comuns, o senso do auxilio mútuo, da solidariedade e da cooperaçâo, fixados de maneira secular, entre individuos relativamente semelhantes habitando a mesma terra. (TORRES, 1982, p. 130).
[...] o ensino primário e o profissional agrícola, no campo, serâo gratuitos, sendo condiçâo do exercício dos direitos políticos e civis a posse de um título conferido pelas escolas primárias e o exercício de uma profissâo, com a necessária habilitaçâo técnica. Nenhum indivíduo será declarado maior, para os efeitos da capacidade civil e política, sem exame que prove sua idoneidade física e mental e sem que satisfaça os requisitos deste artigo. (TORRES, 1978, p. 272-273).
A arte de governar tem de abandonar forçosamente o critério político, em suas classificaçdes, para adotar o critério social e econômico, e, nessa esfera, o péndulo que há de marcar as oscilaçöes do pensamento será o do móvel e o do objetivo da atividade. A noçâo da lei jurídica, como a concebem os governantes de hoje, deve suceder a da lei vital da sociedade; ao regime das normas e dos preceitos prescritivos e, sobretudo, repressivos e restritivos, a da lei do útil e da finalidade adaptativa (TORRES, 1978, p. 139).
O brasileiro nao encontra, em nosso meio, desde os primeiros dias da infancia, a escola de autonomia e inciativa, que o devia preparar para o trabalho; nao recebe a liçao de laboriosidade e resistencia; nao adquire a consciencia de que é um produtor, um agente dinámico da vida social. Nas classes inferiores, o pai, ex-escravo, ex-agregado de fazenda, ou assalariado, nao tendo criado amor a sua industria, habitua os filhos a prática rotineira dos atos mecánicos, de nossas culturas extensivas, quando os nao abandona a calaçaria e as portas das vendas. Nas classes médias e elevadas, os incapazes conservam a industria ou a propriedade paterna, assistindo, inconscientes, a desvalorizaçao das terras e a ruina das fortunas. Os que mostram, na infancia e no curso secundário, um pouco de memória e alguma sagacidade, seguem para os cursos superiores, onde ganham com o direito de pretender empregos públicos e cargos de eleiçao, um desprezo nauseoso pelo trabalho industrial e agricola. (TORRES, 1978, p. 131-132).
Em relaçâo ao território, o povoamento nāo é, por si só, nem um bem, nem um mal; mas no interesse do território, o objetivo político deve ser [...] o do seu aproveitamento útil, em beneficio geral, pela conservaçâo das fontes matrizes das riquezas, dos elementos primarios de produçâo, de correçâo e reparaçâo das condiçdes secundarias da produtividade. Povoar um território sem educar o homem para a produçâo económica, sem organizar o trabalho, é o mesmo que roubar a terra e causar mal ao homem, fazer das populaçöes infecçöes corroedoras da superficie do solo. Este povoamento nós o temos feito, como todos os povos novos; tal será o resultado da colonizaçâo como tem sido praticada. (TORRES, 1982, p. 108-109).
[...] as estradas de ferro nao entrelaçam as populaçdes do interior, umas com as outras; nao formam redes de relaçoes recíprocas, movimentando a circulaçao interna: sao vias de drenagem e de atraçao de povos e riquezas para as praças comerciais, para as capitais, para os portos, para os centros de negocio e de luxo. (TORRES, 1978, p. 192).
Recebido em 13/12/2017
Aprovado em 03/09/2018
2 Ambos os livros foram originalmente publicados como série de artigos na imprensa carioca. No caso de A organizaçao nacional, os artigos foram editados entre novembro de 1910 e fevereiro de 1911 na Gazeta de Noticias. Já O problema nacional brasileiro é uma combinaçao de um discurso proferido no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, em 1911, e alguns artigos publicados no Jornal do Commercio, em 1912.
3 Entre as principais associaçöes atuantes nos anos 1910 e 1920, contam-se a Liga de Defesa Nacional, a Liga Pró-Saneamento do Brasil, a Liga Brasileira Contra o Analfabetismo, a Liga Nacionalista e a Liga Brasileira contra a Tuberculose. Juntas, as ligas mobilizaram estratos superiores e médios em torno da formaçâo de uma agenda de assistencia social.
4 Diferentemente das técnicas de dominaçâo, que determinam a conduta dos individuos e objetivam os sujeitos, submetendo-os a certos processos e fins, o que é o caso das técnicas disciplinares.
5 Esta ascendencia aparece, pela primeira vez, no manifesto em forma de coletânea de artigos, coordenada por Vicente Licínio Cardoso e publicada em 1924, sugestivamente intitulada A margem da história da república, onde os autores rendem tributo ao mestre. Por fim, nos anos 1930, Alberto Torres alcançaria a mitificaçâo como "tema de uma geraçdo", na consagrada expressáo de Cándido Mota Filho. Sua obra sobre a "organizaçâo nacional" batizaria a agenda política que sucede a revoluçâo de 1930 e marcaría as publicaçoes mais relevantes, caso da Constituiçâo de 1934, em grande parte inspirada em seu projeto de revisăo da Carta de 1891.
6 Empregamos a noçâo de assujeitamento (assujettissement) no sentido formulado por Foucault (2008, p. 243), qual seja, o de "sujeiçâo"dos individuos a redes continuas de obediencia e o de subjetivaçâo pela identificaçâo analítica de seus méritos e pela extraçâo das verdades que lhe sâo sugeridas por estas mesmas redes.
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Abstract
O artigo investiga a obra de Alberto Torres sob o ponto de vista da introduçao de uma razao governamental no pensamiento político brasileiro, pautada pela lógica da prevençao e da estruturaçao do campo de açöes possíveis. Parte das reflexðes de Michel Foucault sobre a governamentalidade para examinar a visao torreana de modernizaçao e procura mostrar que a arquitetura do Estado desenhada em A organizaçao nacional e O problema nacional brasileiro é inseparável das medidas destinadas a produzir o "homem novo" como sujeito ético capaz de enfrentar os riscos da vida social, o que constitui um marco de ruptura na tradiçao do pensamento político e social. A razao governamental é analisada quanto aos seguintes aspectos: a influencia da sociabilidade da escravidao na concepçao de populaçao, baseada na lógica afetiva e nas inte^ðes comunitárias; a reforma do regime jurídico e a formaçao de um regime de opiniao, na direçao de um governo das percepçðes; o lugar da política racial e do povoamento territorial na expansao da capacidade administrativa do Estado e na regulaçao da agencia humana.