Resumo: O objetivo do presente artigo é analisar o comportamente dos motoristas frente ao cumprimento das leis de transito, em particular o Código de Trânsito Brasileiro (CTB). O artigo transita através dos conceitos de norma, lei, regra, princípios, anomia e comportamente social e se propoe a analisar aspectos do comportamento social de motoristas nao só em uma perspectiva histórica bem como no contexto atual, considerando o conceito de anomia que possibilita a compreensao dos descumprimentos da lei e dos desajustamentos psicossociais. Trata-se de um ensaio que pretende reunir as ideias e contribuir para estudos no ámbito do diálogo entre Direito e Psicología.
Palavras-chave: Normas e leis. Comportamento social. Anomia.
Abstract: The purpose of this article is to analyze the behavior of drivers in relation to the enforcement of traffic laws, in particular the Brazilian Traffic Code (CTB). The article transits through the concepts of norm, law, rule, principles, anomie and social behavior and It proposes to analyze social behavior aspects of drivers not only in a historical perspective as well as in the current context, considering the concept of anomie that allows the understanding of the breaches of the law and psychosocial misfit. This essay get to gather ideas and contribute to studies in the dialogue between Law and Psychology.
Keywords: Norms and laws. Social behavior. Anomie.
1. Introdução
O estudo das normas legais do transito toma-se mais enriquecido quando associado seu cumprimento ao comportamento social dos motoristas. A pessoa aprende a se comportar de acordo com o tipo de sociedade em que está inserida e as leis, em especial o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), influenciam o impacto destas normas no contexto pessoal e social das pessoas. As leis, em especial as de transito, possuem a finalidade de manter a organização e a regulação do ajustamento social, para desfrute de uma vida em sociedade mais harmoniosa, mantendo, com isso, uma estreita ligação com o estudo do comportamento social das pessoas.
2. As Normas e a Lei
As normas passaram a ser criadas, inicialmente, com o intuito de se evitar confrontos decorrentes do convivio social e hoje, possuem um sentido mais amplo, de regulação e funcionalidade da complexa máquina social.
O Brasil quando colonia de Portugal, de 1500 a 1822, foi regido pelas primeiras leis escritas provindas do governo portugués, portanto de aplicabilidade portuguesa, chamadas Ordenações (Ordenações Afonsinas de 1446, Manuelinas de 1512 e Filipinas de 1603). De certa forma, os dispositivos nao eram aplicáveis em sua integralidade a nova colonia, por falta de referencias ou necessidade de adaptação, com exceção das Filipinas, que "ao oposto das anteriores, foram largamente aplicadas no Brasil" (PEDROSA, 2002, p. 307).
No Brasil, nao apenas as Ordenações portuguesas regravam a vida na colonia, mas também outras regras e comandos diversos como as capitanias-hereditárias, governos-gerais, elevação de colonia para Vice-Reino, elevação de Vice-Reino para Reino Unido de Portugal e Algarves, Monarquía (periodo que surge a primeira Constituição Brasileira, em 1824), República (fase em que surge a primeira Constituição Republicana, em 1891), Revolução Militar com os Atos Institucionais, e, finalmente, a atual Carta Política de 1988 (PEDROSA, 2002), sem deixar de mencionar as leis extravagantes durantes esses periodos.
A elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarves se deu pela chegada da familia real em fuga por conta das invasoes napoleónicas, em torno do ano de 1800. Neste momento histórico e importante para o desenvolvimento do país, diversos órgaos administrativos e judiciários foram criados, os portos permaneceram abertos e as leis locais se multiplicaram ao lado das Filipinas. A separação do Brasil de Portugal estava próxima, pois a estruturação política administrativa, o desenvolvimento das demais áreas do território e as ideias do liberalismo vindas da Europa contribuiriam para esse desligamento. Esse fato teve como marco a negativa de D. Pedro em retornar a Portugal junto com a família real, declarando a independencia do Brasil em 1822 (PEDROSA, 2002).
No ámbito legal, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) constitui norma máxima do regramento da vida de um país. A República Federativa do Brasil foi criada em 1889 por Marechal Deodoro da Fonseca e abarcou, desde entao, sete constituições, sendo, conforme leciona Padilha (2012, p. 14), "tres impostas de maneira autoritária (1824, 1937, 1967/1969) e quatro de origem democrática (1891, 1934, 1946 e 1988)".
A Constituição brasileira é chamada de Lei Maior, porque de suas premissas se extraem as demais normas conhecidas como infraconstitucionais. Segue-se, portanto os ensinamentos de Hans Kelsen (1987), jurista austríaco, que apresentou a teoria da hierarquia das normas, um escalonamento de leis desde o vértice de uma pirámide até sua base, servindo para solucionar validade e fundamento a todas as normas existentes.
No topo se posiciona a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88) como norma constitucional contra a qual nenhuma outra norma pode ir de encontro. O advento da Emenda Constitucional n° 45 (EC n° 45/2004) estabeleceu um duplo grau de compatibilidade no qual as normas infraconstitucionais devem se submeter: além da própria CRFB/88, aos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos. Abaixo da Lei Maior e dos tratados mencionados acima estao posicionadas as normas infraconstitucionais, como as leis complementares, leis ordinárias, medidas provisórias e leis delegadas e, por último, as resoluções e demais normas.
Em relação as regulamentações, cumpre destacar, preliminarmente, a diferenciação dos termos norma, lei, regra, principios e anomia para fins de uma compreensao mais completa do estudo ora desenvolvido, visto que no tránsito o cumprimento e descumprimento de regras se dá tanto no contexto de norma, de lei ou mesmo se caracteriza por anomia.
Conforme McDavid et Harari (1980, p. 114), "leis e estatutos sao modelos formalizadores que fornecem o castigo para os atos que violam os melhores interesses da sociedade". Tal aspecto é encarado como forma de controle social durante os processos de socialização pelos quais passam as pessoas. O mesmo autor, ainda relata que "o grupo, a sociedade ou sistema social controla o comportamento de seus membros através de padroes, normas e regras de procedimento" (MCDAVID et HARARI,1980, p. 114).
DaMatta (2010), ao escrever sobre as raizes do comportamento social do brasileiro no tránsito, explica que determinadas atitudes ainda sao reflexos da época da aristocracia brasileira, principalmente no Rio de Janeiro, onde a corte portuguesa se instalou em 1808. Nesta época histórica, "o protocolo real obrigava os passantes [...] a reverenciar a corte [...] numa prova de respeito pela distância social e sacralidade [...] do poder real". (DAMATTA, 2010, p. 36).
Assim, a convivencia nos espaços urbanos, que deveria ser tendente a igualdade social, constata nos séculos passados um ponto de vista completamente oposto, que distinguía as pessoas como superiores e inferiores, o que ainda se percebe como vestígios no comportamento social atual, particularmente no transito, com a conhecida atitude de "dar uma carteirada".
Muito embora a lei possua um conceito diferente de norma, principio e regra, estes termos tem uma interligação em suas aplicações. A maioria dos escritores (SECCO, 2001; NADER, 1998) da seara do Direito, consagram as normas como padroes abstratos de comportamento habitual de uma sociedade, como normas orientadoras da conduta entre as pessoas. O respeito mútuo a elas garante a paz entre os integrantes de um grupo social, mas sem força coercitiva para obrigá-los a respeitá-la. Diante desse fato e a importancia máxima de o Estado querer manter a ordem social, as normas funcionam como uma direção, uma vertente para o direito positivo, ou seja, normas legisladas provenientes dos costumes (SECCO, 2002).
No caso da normatização do transito, "o Código de Transito Brasileiro constitui a norma especifica - lei - reguladora deste contexto social e como lei tem em si as prescrições e punições para os ilícitos cometidos por motoristas e transeuntes em geral". (MOREIRA, 2018, p. 45).
Cotidianamente, nao é raro se deparar com infrações de transito como: desobedecer ao sinal vermelho/parada obrigatória; velocidade acima do permitido; condutor ou passageiro sem cinto de segurança; dirigir veiculo utilizando o telefone celular; estacionar veiculo sobre calçada ou faixa de pedestres; entre outros, que muitas vezes desencadeiam consequencias processuais, sejam administrativas ou judiciais.
Segundo José Arthur Rios, (1987 apud NETTO et al, 1987, p. 822), norma possui diversas acepções, mas uma delas interessa ao trabalho porque se refere ao termo no sentido de ser "um padrao social de referencia, em determinada sociedade, ou cultura que serve para aprovar ou reprovar comportamentos, ensejando sanções de vários tipos e de diversas intensidades". Esses interesses sociais imersos na sociedade é que dao origem a lei, que reprova ou aprova comportamentos, cominando sanções a quem desrespeitá-la.
Norma é o relato de uma situação de fato, e nao de direito, presente na sociedade, que disciplina comportamentos de cunho sociocultural e determina valores, nao há a cominação de sanção pelo seu descumprimento, posto que relata situações de fato presentes em uma determinada sociedade ou grupo social. Sao exemplos, como demonstra Silveira (2009): nao dirigir com problemas de saúde, estado emocional abalado, fadiga ou sono; nao criar situações de confronto; nao adotar atitudes agressivas e ofensivas em relação aos demais condutores etc. Segundo Nader (1998, p. 99),
Para promover a ordem social, o Direito Positivo deve ser prático, ou seja, revelar-se mediante normas orientadoras das condutas interindividuais.[...] A norma jurídica exerce justamente esse papel de ser o instrumento de definição da conduta exercida pelo Estado. [...] O Direito positivo, em todos os sistemas jurídicos, compoe-se de normas jurídicas, que sao padroes de conduta social impostos pelo Estado, para que seja possível a convivencia dos homens em sociedade. [...]. Em síntese, norma jurídica é a conduta exigida ou o modelo imposto de organização social.
As normas, ao se estabelecerem formal e materialmente no ordenamento jurídico, consolidando princípios, sao chamadas de leis. No tránsito, tem-se um vasto rol de exemplos, principalmente no CTB, como: "Art.28. O condutor deverá, a todo momento, ter dominio de seu veículo, dirigindo-o com atenção e cuidados indispensáveis a segurança do tránsito" (ANGHER, 2015, p. 657), trata-se de um dos dispositivos expressos no Código de Tránsito que é derivado da norma de que a segurança no tránsito depende de todos.
A lei, conforme Nader (1998, p. 168), "é ato do poder Legislativo, que estabelece normas de acordo com os interesses sociais. [...] traduz as aspirações coletivas. Apesar de uma elaboração intelectual que exige técnica específica, nao tem por base os artifícios da razao, pois se estrutura na realidade social." Estabelece mandamentos a serem seguidos coercitivamente por todos a quem se direcionar sob pena de sanção. Muito embora seja comum serem utilizadas como sinónimas, norma tende a ser mais abrangente que a lei, abstrata e desvinculada de penalidade. Pela característica expressa (escrita), a lei seria o ato que atesta a existencia de uma norma, por exemplo, o CTB é uma lei escrita que faz previsao de sanções quando desrespeitada, sanções estas que emanam o caráter imperativo do Direito.
Nader (1998) explica que há distinção entre norma jurídica e lei, sendo esta apenas uma das formas de expressao das normas, que se manifestam também pelo direito costumeiro. Regras, normas, leis, regulamentos e princípios incidem diretamente sobre o comportamento individual e social de pessoas. No caso do comportamento social, ve-se que é determinado em boa parte por estes modelos de regras.
De acordo com Pessoa (2006, p. 305), as regras sao vocábulos genéricos que podem substituir outros termos de significado específico como norma ou lei. Para o autor, regra "é o preceito, norma ou prescrição legal; o que o uso frequente determina".
Ao mencionar regra, Durkheim (1978, p. 5) é enfático ao redigir que "uma regra, com efeito, nao é somente uma maneira habitual de agir; é, antes de tudo, uma maneira de agir obrigatória, isto é, subtraída, em alguma medida, ao arbítrio individual".
Padilha (2012) se aprofunda mais e difunde a ideia de que as regras, além de comportarem subsunção (ocasiao em que o caso concreto se enquadra a norma legal em abstrato), porque descrevem situação de fato, sao utilizadas para aplicar as leis.
A mesma referencia explica que os principios sao os fundamentos das regras, servem para produzir, interpretar e aplicar leis, nao comportando subsunção. Neste caso, principios tem a função norteadora de dirigir o comportamento e no tránsito tem também a propriedade de servir como base educativa para nortear as atitudes de motoristas e transeuntes.
Para Carrazza (2003, p. 31), "principio é começo, alicerce, ponto de partida, pressupoe, sempre, a figura de um patamar privilegiado, que torna mais fácil a compreensao ou a demonstração de algo. Nesta medida, é, ainda, a pedra angular de qualquer sistema".
Na mesma linha, para Mello (2002, p. 807),
principio [...] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo lhes o espirito e servindo de critério para sua exata compreensao e inteligencia, exatamente para definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tónica e lhe dá sentido harmónico. É o conhecimento dos principios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema juridico positivo.
Um exemplo clássico de principios seria o principio da legalidade, onde os entes da administração pública e seus prepostos somente poderao atuar onde há lei permitindo (ou se absterao de atuar quando a lei assim prever), enquanto que aos particulares é permitido tudo o que a lei nao proibe.
Segundo Habermas (2012, p. 142), "do processo Legislativo se originam as leis", sendo o CTB uma delas. O CTB foi instituido pela Lei Federal 9.503/97, tem abrangencia em todo o pais e dispoe sobre regras gerais e especificas do tránsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional.
Embora seja disseminado por memorização nas autoescolas, Cristo (2012, p. 59) ensina que "saber as razoes das leis e das resoluções aplicadas ao tránsito é imprescindível para que o comportamento adequado surja." O mesmo autor ainda concluí que "o nao conhecimento da justificativa de uma norma pode ser o primeiro passo para que esta nao seja cumprida" (CRISTO, 2012, p. 57).
Desta forma, tanto normas, principios ou regras possuem algum tipo de ligação, seja direta ou indireta, com eventuais formações de leis.
Com relação a essas últimas informações, pode-se complementar que o ordenamento jurídico brasileiro é um complexo normativo formalmente desenvolvido para, dentre outras formas, regulamentar a sociedade, garantir direitos e deveres e disciplinar a convivencia entre seus membros. Muito embora o requisito formal esteja sempre presente, o ordenamento pode ter seu sentido material relativizado por alguns fatores, como, por exemplo, o desenvolvimento social, onde a evolução natural da sociedade faz com que suas crenças acerca de determinado assunto, do qual uma lei discorre, se enfraqueça, se torne sem importancia ou ultrapassado. O enfraquecimento normativo gera a anomia, que também pode ocorrer no transito.
3. Anomia
Um dos primeiros estudiosos que descreveu o fenómeno da anomia foi Emile Durkheim em 1893, na obra Divisao do Trabalho Social e desde Durkheim até os dias atuais, a anomia tem sido considerada através de diferentes óticas (SOUZA, 2003). Em relação a anomia, Durkheim (1978) utilizava o termo para designar o enfraquecimento das normas de uma determinada sociedade. Em relação a obra, o referido autor explica que uma sociedade que esteja em constante mudança está sujeita a desarranjos estruturais, posto que causa enfraquecimento das crenças, gerando falta de paradigma em algum aspecto e, por consequencia, abre-se espaço para condutas marginais praticadas pelos individuos. Anomia nao é classificada como ausencia de lei, mas a conduta anómica pode violar a lei. Souza (2003) elucida que no século seguinte, Merton continuou os estudos sobre anomia e apesar de hoje em dia o termo poder se analisado sob diversos contextos, a noção de anomia para a Psicología.
Souza diz que "a anomia existe quando há um desencontro entre as metas de sucesso socialmente prescritas (sendo tais metas aceitas ou nao) e da oportunidade legítima para atingir tais metas" (MERTON, 1968 apud SOUZA, 2003, pag. 56).
Baraldi (2008), explica que a relação entre anomia e Direito ocorre desde o mundo medieval, sendo mais visível quando da morte de um soberano, em que os súditos perdiam a referencia de obediencia as regras impostas por aquele ou durante os dias de festa, onde os folioes se fantasiavam e atuavam como outra pessoa, desencadeando em comportamentos delituosos que passavam a ser lícitos.
DAHRENDORF (1985, apud ADORNO, 1998, p. 23), relata que
A anomia é uma condição social em que as normas reguladoras do comportamento das pessoas perderam sua validade. Onde prevalece a impunidade, a eficacia das normas está em perigo. As normas parecem nao mais existir ou, quando invocadas, resultam sem efeito. Tal processo aponta no sentido da transformação da autoridade legítima em poder arbitrario e cruel.
Incorporando esses pensamentos ao tema deste artigo, supoe-se que a anomia se faz presente nas condutas dos motoristas, em geral no Brasil, e em particular em relação ao cumprimento das normas de tránsito na cidade do Rio de Janeiro, visto que no cotidiano urbano da cidade carioca experimenta-se, majoritariamente, insegurança e constata-se riscos de acídente, conforme se depreende de matérias exibidas na mídia em geral.
Durkheim (1978, p. 5) complementa que " se a anomia é um mal, é antes de tudo porque a sociedade sofre dela, nao podendo se privar, para viver, de coesao e de regularidade".
Assim, conforme ensina Souza (2003, p. 62),
Tanto Merton quanto Durkheim enfatizam principalmente a ruptura da regulação social, sendo que Merton considera que a anomia se refere as normas regulando a realização de metas, enquanto que para Durkheim, ela se refere a normas regulando o estabelecimento das próprias metas.
Para ilustrar o termo com um exemplo do art. 208 do CTB, "avançar o sinal vermelho do semáforo ou o de parada obrigatória: Infração - gravissima; Penalidade - multa" (ANGHER, 2015, p. 677), ve-se que o mesmo passou a ser mitigado pela sociedade, pois quando se está transitando após as 22h ou passando por uma localidade conhecida pelo seu alto índice de criminalidade, descumpre-se a norma com o intuito de garantir a segurança pessoal. A imperatividade da lei se relativiza, dependendo do contexto decorrente das necessidades naturais da sociedade. De outro lado, em algumas vias, o próprio radar informa o seu horario de funcionamento, favorecendo o descumprimento da lei.
Com relação ao sistema democrático de direito, Adorno (1998, p. 22) explica que "a autoridade exercida na sociedade post-capitalista é uma autoridade racional baseada na crença da legalidade das normas institucionalizadas e do direito de comando por parte daqueles que, através dessas normas, foram investidos com autoridade." Ocorre que, nao raro, em algumas sociedades, esta compreensäo por parte dos cidadaos é rarefeita e de outro lado, há também a percepção de impunidade que poe em risco, a todo o momento a credibilidade das instituições que possuem a legitimidade de zelar pelo cumprimento das normas.
Este contexto, por demais permissivo gera a sensação de perda da validade das normas - anomia, isto é, "a erosäo da lei e da ordem, cujo principal indicador é a atual incapacidade do Estado de cuidar da segurança dos cidadaos e de proteger-lhes os bens" (ADORNO, 1998, p. 22-23). Para Souza (2003), o estado de anomia se instaura quando a sociedade percebe a ineficiencia das leis.
Sob uma outra análise, Michener, DeLamater e Myers (2005, p. 555) explicam a teoria da anomia a partir do exame do comportamente desviante. Para estes autores, "o desvio é uma construção social e o comportamente desviante depende nas normas ou das expectativas em relação a esse comportamente na situação em que ele ocorre." A vida em sociedade "fornece, a seus integrantes, objetivos a que aspirar" (MICHENER, DELAMATER e MYERS, 2005, p. 556) e quando esses integrantes nao alcançam esses objetivos, tendem a ser anômicos, pois o compromisso com as normas é reduzido na busca dos objetivos, por exemplo, o motorista ao enfrentar um engarrafamento por conta de uma colisäo entre veículos, tem chances de chegar atrasado em seu trabalho e para que isso nao ocorra, o motorista tende a descumprir diversas normas de tránsito, como desrespeitar o semáforo vermelho, infringir o limite de velocidade, entre outras transgressoes.
De acordo com os ensinamentos de DaMatta, nao adianta a sociedade clamar por novas leis se nao houver quem as obedeça e honre. "Sem promover novas leis e desenhos institucionais em sintonía com a internalização dessas regras junto aos cidadaos que devem orientar e balizar, o avanço será muito lento". (DAMATTA, 2010, p. 12). O mesmo autor continua seu raciocinio ao conceber que "qualquer legislação está destinada ao fracasso caso a sociedade que a receba dela nao necessite ou esteja preparada para suas inevitáveis implicações doutrinadoras". (DAMATTA, 2010, p. 12).
A nova lei é inserida no contexto social muitas vezes para inibir comportamentos antigos, tidos pela população como costumeiros e permissivos. "A lei recém promulgada, quase sempre percebida como uma novidade negativa, promove uma clara consciencia dos velhos hábitos" (DAMATTA, 2010, p.12).
Motoristas sofrem, igualitariamente, a influencia da coercitividade normativa, tendo que lidar com um conjunto de leis, regras, normas e principios direcionados a todos indistintamente e capazes de gerar uma sanção pelo seu descumprimento. A percepção de uma lei através do ponto de vista do individuo, pode nao ser igual para todos, posto que as pessoas sao únicas e dotadas de crenças provenientes de sua cultura e experiencia do meio social, possuem visoes diferentes sobre um mesmo objeto, inclusive uma lei; o que pode explicar a existencia de numerosos comportamentos observados no dia a dia do tránsito.
Esse cenário de desobediencia as normas que sao direcionadas a todos, reflete a crença de que possuem os atores do tránsito sobre a impunidade e confirmação de um comportamento anômico intimo, além do reforço de um comportamento agressivo contra um cocidadao do tránsito, encarado como seu inimigo e nao parceiro, do qual depende nao só a pacifica locomoção como a diminuição das estatísticas de acidentes/punições no tránsito.
Por fim, estas perspectivas tendem a gerar um alto índice de desobediencia e no tránsito, principalmente, nao se torna diferente, pois é uma área abrangente em qualquer sociedade e os comportamentos de seus usuários estao baseados na cultura arraigada na sociedade.
4. Considerações Finais
O transito retrata a vida social de uma localidade e como tal, evidencia os comportamentos sociais que caracterizam a forma de viver daquela comunidade e da relação de seus integrantes com as normas, regras, leis e até mesmo princípios que sustentam a vida em sociedade. A normatividade legal de uma sociedade torna-se importante em função de sua complexa composição e estruturação social, sendo as regras necessarias para se manter a harmonia e organização do sistema político social, embora a anomia, muitas vezes, esteja presente na sociedade moderna pelo fato desta apresentar constantes mudanças decorrente do avanço natural da máquina social. A anomia é abordada como o enfraquecimento da norma, perdendo gradativamente sua relevancia social por conta da mudança de crenças e enfraquecimento de algumas, decorrentes do natural desenvolvimento e progresso da sociedade e o transito, nao se isenta disso.
O comportamento do motorista reflete sua relação com as normas do CTB no espaço social compreendido pelo transito e sua relação com a obediencia normativa porém, a anomia constitui, também, mais uma faceta de uma mesmo contexto no atual transito de algumas cidades. Compreender o comportamento social de pessoas, individualmente ou coletivamente, a partir de um contexto sócio histórico e psicossocial constituiu o objeto deste artigo, que admite existir muitas outras interfaces a serem incluidas, mas que priorizou parte destas no intuito de estreitar o diálogo entre o Direito e a Psicología.
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http:/ / seer.ucp.br/seer/index.php?journal=LexHumana
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* Artigo recebido em 29/09/2019 e aprovado para publicação pelo Conselho Editorial em 30/11/2019.
****** Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]. Curriculo lattes: http://lattes.cnpq.br/8330562093476420.
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Abstract
O objetivo do presente artigo é analisar o comportamente dos motoristas frente ao cumprimento das leis de transito, em particular o Código de Trânsito Brasileiro (CTB). O artigo transita através dos conceitos de norma, lei, regra, princípios, anomia e comportamente social e se propoe a analisar aspectos do comportamento social de motoristas nao só em uma perspectiva histórica bem como no contexto atual, considerando o conceito de anomia que possibilita a compreensao dos descumprimentos da lei e dos desajustamentos psicossociais. Trata-se de um ensaio que pretende reunir as ideias e contribuir para estudos no ámbito do diálogo entre Direito e Psicología.