Resumo: Este artigo apresenta o Projeto Olhar Complexo, criado e dirigido pelo Fotógrafo Bruno Itan, como possibilidade do olhar estético do afeto, uma técnica desenvolvida durante o curso de doutorado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ), que buscou oferecer uma alternativa para o enfrentamento da violência no Rio de Janeiro a partir da hipótese que esta violência reflete uma dinâmica circular de comunicação, sendo possível alterá-la através da experiência perceptiva. É a possibilidade de transformar o padrão comunicativo em uma cidade cuja projeção de imagens rotuladas instauram um fluxo permanente de manifestações de violência entre dois territórios, entre morro e asfalto. Uma técnica que pretende não só fazer visível as formas dessa violência, mas alterar a percepção sobre aquilo que é comunicado como violência, tendo como referência metodológica a Fenomenologia da Percepção, de Maurice Merleau-Ponty. A experiência fotográfica pode ser o medium desta técnica que "faz ver" e "faz agir sobre", permitindo a reterritorialização da cidade e suas relações.
Palavras-chave: Comunicação. Educação. Estética. Fotografia. Violência.
Abstract: This article presents the Complex Look project, created and directed by Photographer Bruno Itan, as a possibility of the aesthetic look of affect, a technique developed during the doctoral course in Law at the Federal University of Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ), which sought to offer an alternative to face violence in Rio de Janeiro, based on the hypothesis that this violence reflects a circular dynamic of communication, being possible to change it through the perceptual experience. It is the possibility of transforming the communicative pattern in a city whose projection of labeled images establishes a permanent flow of manifestations of violence between two territories, between slum and asphalt. A technique that aims not only to make visible the forms of this violence, but to change the perception of what is communicated as violence, having as methodological reference the Phenomenology of Perception, by Maurice Merleau-Ponty. The photographic experience can be the medium of this technique that "makes you see" and "makes you act on", allowing the reterritorialization of the city and its relations.
Keywords: Communication. Education. Aesthetics. Photography. Violence.
1Introduçao
Entender a violencia por intermédio da estética é perceber como a violencia ganha formas, como é comunicada e significada. Uma comunicaçâo que modula as relaçöes em uma cidade conhecida mundialmente como maravilhosa, estruturada ao redor da violencia e dividida entre espaços de inclusão e outros marginalizados, entre as desigualdades que separam os dois territorios. Uma segregaçâo que reflete a própria circularidade de violencia, tal como Paul Watzlawick descreve o padrão de interdependencia comunicativa (WATZLAWICK, 1991, p. 93), entre o racismo escamoteado, a aporofobia despercebida, e outras formas de violencia que acabaram normalizadas. Esta dinámica comunicativa se reflete no comportamento do sujeito, o qual determina e é determinado pelo comportamento do outro, conforme observado por Watzlawick (Ibid., p. 93). A ordem é, então, fixada sob uma dinámica comunicativa de ameaça constante e recíproca, uma percepçâo disseminada pela mídia e pelo estado através do discurso da guerra e do terror, e assimilada pela sociedade, que passa a exigir mais proteçâo e segurança, legitimando medidas de contençâo e controle que retroalimentam a circularidade da violencia e potencializam esta violencia em ambos os espaços. Até mesmo a paz se apresenta como face da violencia da cidade, ao atrelar a percepçâo de segurança a imagem de uma polícia que carrega símbolos violentos, como o emblema do Batalhão de Operaçöes Especiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, uma caveira atravessada por um punhal, popularmente chamada de "faca na caveira", significada como "morte aos bandidos". Esta imagem da polícia acaba por substituir a imagem da justiça por uma ideia de justiçamento.
A realidade social carioca expöe como o problema da violencia se afasta de uma soluçâo possível por insistirem em formular unilateralmente esta soluçâo, restrita a contençâo seletiva daqueles que são considerados criminosos em razão de uma imagem fabricada, gerando ainda mais exclusão e marginalizaçâo, consequentemente, mais violencia. Ao deslocar o enfoque, buscando novas perspectivas de analisar e enfrentar a violencia, é possível articular a questão de outra maneira ao considerar esta violencia como uma circularidade que se retroalimenta e se autorregenera. A circularidade da violencia, portanto, é a forma como se estabelece a percepçâo e a construçâo da realidade, ou seja, como a cidade se comunica. É a forma como vemos o outro, como o outro nos olha, pontua Didi-Huberman. A partir do olhar do outro é possível estabelecer outra forma de comunicaçâo e construir uma imagem que não reproduza a comunicaçâo violenta. A Fotografia carrega a potencia desta experiencia perceptiva transformadora, que converte o ver em olhar a partir de outra perspectiva, capaz de afetar e fazer agir através do afeto.
Para construir o olhar estético do afeto, a "Fenomenologia da Percepçâo", de Maurice Merleau-Ponty, foi não só o principal referenciái teórico sobre estética, mas a metodologia desta pesquisa. A fenomenologia merleaupontyana é um método para descrevermos nossa percepçâo sobre o mundo a partir do nosso mundo interior, pretendendo uma descriçâo direta da nossa experiencia - vivida e diária, daquilo que nos afeta, das sensaçöes, das imagens mentais e das lembranças, localizando o observador do sujeito perceptivo como um sujeito perceptivo. Este método é um convite aquilo que é essencial na percepçâo: abrir-se a um outro e sair de si (MERLEAU-PONTY,1999, p. 571), dispondo o corpo no centro desta relaçâo com o mundo; afinal, "meu corpo é a potencia do espetáculo" (Ibid., p. 406) e "a percepçâo é a iniciaçâo ao mundo" (Ibid., p. 346). O mundo percebido é aquele revelado a partir da experiencia do sujeito, do seu olhar sobre o mundo através do seu "mundo humano", do seu intermundo, explicam Lopes e Pimentel (LOPES; PIMENTEL apud ROCHA, 2011, p. 101-103). Por intermédio de uma fenomenologia da percepçâo é possível observar como se constrói a realidade e descrever a experiencia perceptiva. O mundo fenomenológico merleaupontyano nos permite ir além da empatia, ele desperta nossa simpatia pelo outro, conforme orienta Adela Cortina (CORTINA, 2017). Essa simpatia significa o nosso comprometimento com a vida desse outro. Rocha e Medeiros defendem que a fenomenologia como método é uma "alternativa a dialética já conhecida e que nâo se orienta necessariamente para o exame de um problema, mas para a contemplaçâo do objeto investigado" (ROCHA; MEDEIROS apud ROCHA, 2011, p. 39), além de promover o desvelar do invisível no objeto examinado. Por ser uma opçâo inserta no campo da significaçâo intersubjetiva, a abordagem fenomenológica autoriza e propicia a continua análise e reflexâo nos mundos dos quais se origina, constituindo-se em um método de apreensâo da realidade, de acordo com Rocha e Medeiros (Ibid., p. 23; 40). Para dar conta da atualidade, nâo se pode buscar reduzir a complexidade das relaçöes sociais, nem pensar na estabilizaçâo do ambiente, advertem Niklas Luhmann e Raffaele De Giorgi (LUHMANN; DE GIORGI, 2003); faz-se necessário experimentar a potencia da percepçâo, pois é esta que tem sido alvo de calibragem e disputas por seu controle e alteraçâo. O pensamento fenomenológico, centralizado no campo da filosofia, torna possível a libertaçâo do ver e da experiencia perceptiva.
A fenomenologia merleaupontyana é um método de abordagem que nos dá o ser presente e vivo, aplicável a relaçâo do homem, seja com o próprio homem ou com os mais diversos campos da vida e do sensível (MERLEAU-PONTY, 2015, p. 50). Merleau-Ponty foca na experiencia perceptiva e nâo no objeto da percepçâo, o que justifica a importancia dada a perspectiva, decisiva para a percepçâo e nâo para o objeto percebido. Afinal, o objeto nâo possui apenas o lado que vejo, há a face nâo vista, "o lado oculto está presente a sua maneira. Ele está na minha vizinhança" (Ibid., p. 34). É no entorno do percebido que reside a possibilidade de "ver melhor o próprio percebido" (Ibid., p. 35), daquilo que é afetado por outras dimensöes. A percepçao é, portanto, um paradoxo, e a própria coisa percebida é paradoxal (Ibid., p. 37), "ela não existe senão enquanto alguém puder percebe-la" (Ibid., p. 37); logo, o visto não pode ser reduzido apenas a minha experiencia. A fenomenologia de Merleau-Ponty vai além do método, capaz de produzir autorrevoluçöes, porquanto vivemos o primado da percepçao, do paradoxo da imanencia e da transcendencia, do mundo complexo entre visível e invisível. O primado da percepçao é o convite para experimentar um mundo não dicotômico e maniqueísta, aquele desenhado a partir do olhar do outro, afinal, "estamos todos em uma experiencia do eu e de outrem que procuramos dominar pensando-a, mas sem jamais podermos nos vangloriar de fazelo completamente" (Ibid., p. 58-59). Para Merleau-Ponty, o primado da percepção seria o remédio para o ceticismo e para o pessimismo (Ibid., p. 51-52), a possibilidade da comunicação através de uma sensibilidade aberta (Ibid., p. 52).
Considerada a fenomenologia merleaupontyana como método de pesquisa que localiza a experiencia no centro da investigação, a sensação se configuraría como importante substrato de observaçao, pois, segundo o filósofo, ela pode "nos ensinar a relaçao viva daquele que percebe com seu corpo e com seu mundo" (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 281), levando-se em conta que a sensaçao "não é nem um estado, nem uma qualidade, nem a consciencia de um estado ou de uma qualidade" (Ibid., p. 281), mas qualidades sensíveis (Ibid., p. 281). Apoiada nesta perspectiva, buscou-se nesta pesquisa o duplo aspecto da fenomenologia, a atitude reflexiva da evidenc^ão e do consequente reflexo desta experiencia no mundo ao seu redor, conforme orientam Lopes e Pimentel (LOPES; PIMENTEL apud ROCHA, 2011; p. 29; 37). Os autores propöem uma metodologia de pesquisa voltada para a fenomenologia merleaupontyana, não só por buscar o significado da experiencia, mas por configurar-se em um método crítico por excelencia e precioso instrumento cognitivo (LOPES; PIMENTEL apud ROCHA, 2011; p. 93). Um método apontado pelos autores como adequado a pesquisa em razão do seu caráter descritivo, especialmente no tocante as percepçöes sobre as significaçöes. Neste sentido, há que se ressaltar tratar-se de uma investigação empírica, teórica, descritiva e propositiva, com o objetivo de refletir sobre as ideologias que sustentam e alimentam a circularidade, sobre as formas como a cidade torna visível a engrenagem e a (re)prod^ão da violencia, e sobre a possibilidade de rompimento da dinámica circular de violencia que marca a cidade e suas relaçöes. Entende-se como pesquisa empírica a inte^ão de codificar a face mensurável da realidade social, como também, interpretar a objetividade da realidade cultural, não perdendo de vista o objetivo desta proposta, qual seja, realizar "açöes transformadoras durante o percurso da invest&0131;gaçao ou aval&0131;açöes que se realizem para a const&0131;tu&0131;çao de novos rumos para a realidade social" (GUSTIN, 2010, p. 40). Essa perspectiva foi essencial para a construçâo do olhar estético do afeto; afinal, consoante José de Souza Martins, "a interferencia interpretativa do pesquisador se dá no desvendamento das conexöes entre o visivel e o invisivel, entre o que chega a consciencia e o que se oculta na alienaçâo da própria vida social" (MARTINS, 2017, p. 14). Diante desta perspectiva, o papel do pesquisador vai além da produçâo de conhecimento, defende Martins: "ao entrar na realidade investigada interage e, ao interagir, altera necessariamente o conhecimento do senso comum referencial das populaçöes estudadas" (Ibid., p. 14); sem desprezar o fato da informaçâo obtida restar contaminada pela presença do pesquisador, enfatiza o autor. Optar pela fenomenologia merleaupontyana implica, por conseguinte, nao só a possibilidade de compreensáo do amplo contexto no qual o objeto de pesquisa está inserto (ROCHA, 2011, p. 107), mas contemplar todos os aspectos levantados nesta introduçâo.
2O olhar estético do afeto
A imagem da violencia no Rio de Janeiro é uma imagem construida para ser percebida por intermédio de determinada lente, aquela imposta pelo asfalto, que enxerga o morro de forma violenta. Ao trocar essas lentes é possível alterar o olhar e construir outra imagem a partir de outra percepçâo sobre o outro, sobre o outro espaço. Um olhar que nao enxergará mais uma ameaça no outro - diferente. Desta maneira, o outro também deixará de olhar-me como ameaça, rompendo a dinámica circular de violencia. A Fotografia faz possível alterar este olhar e construir outra imagem, estabelecer outro padrao comunicativo. O afeto é a lente que transforma este olhar. O olhar estético do afeto oferece a possibilidade da construçâo de um novo olhar a partir da experiencia estética (BERLEANT, 2000), considerada por Arnold Berleant como a mais completa experiencia perceptiva (Ibid., p.121-122), capaz de incluir a experiencia afetiva. Vale lembrar que estética se refere aquele que nota, percebe, afeta e é afetado. A estética é a teoria do conhecimento sensível (estesiologia), do despertar; "é uma forma de qualificar uma propriedade emocional intrínseca de toda funçao visual" (CATALA DOMENECH, 2011, p. 28), comprovando que nos afetamos em diversas possibilidades de graduaçao, o que leva Catala Domenech a afirmar que "a representaçao visual seria, entao, uma forma de controlar nossas emoçöes diante do visível" (Ibid., p. 28). A partir da estética é possível investigar como se constrói a realidade, uma realidade violenta, e como as imagens podem afetar, seja para retroalimentar uma dinámica circular de violencia ou para rompe-la. Se estética é uma questão de percepçâo, é também uma questão daquilo que se constrói como realidade, conforme apontam Merleau-Ponty e Watzlawick; daquilo que se comunica como violencia - uma realidade violenta. A circularidade é a forma adotada pela violencia na cidade; a circularidade da violencia é a projeçao de um padrão de interdependencia que pode ser alterado pela perspectiva, segundo Watzlawick (WATZLAWICK, 1991, p. 44), dado que "nao existe uma realidade absoluta mas apenas concepçöes da realidade subjetivas e muitas vezes contraditórias" (Ibid., p. 127).
A funçâo essencial da percepçâo, segundo Merleau-Ponty, seria fundar ou inaugurar o conhecimento (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 40), considerando a experiencia perceptiva uma leitura dos mesmos dados sensíveis, mas de maneira mais rápida, a partir dos signos cada vez mais claros (Ibid., p. 210-211). O pensamento de perceber para Merleau-Ponty é fruto de uma experiencia (Ibid., p. 67), que se constitui em um método calcado na experiencia da vida e todos os mistérios que nela caibam, sem aprisionamentos, engessamentos ou apagamentos. A fenomenologia merleaupontyana é um método nao restrito a percepçâo como uma operaçâo intelectual, o que autoriza uma descriçâo direta da nossa experiencia - vivida e diária, daquilo que nos afeta, das sensaçöes, das imagens mentais e das lembranças. Este é o mundo sensível revelado através da percepçâo e projetado como realidade. Uma realidade observável através do método merleaupontyano, capaz de visibilizar o contexto deste mundo. A Fenomenologia da Percepçâo de Merleau-Ponty se configura em uma potencia crítica; ademais, a crítica e a reduçâo constituem meios para desvelar o mundo, acrescido seu caráter histórico e inclusa a compreensâo do significado da experiencia vivida, proporcionando a apreensâo de todos os aspectos que envolvem a questâo e, portanto, o entendimento do fenómeno de uma forma mais ampla (Ibid., p. 106-107). Neste sentido, o método fenomenológico de Merleau-Ponty sintoniza com a provocaçâo de Debord sobre uma teoria crítica radical, construida para descobrir e nâo encobrir. É em Merleau-Ponty que as respostas surgem com a perspectiva do despertar da experiencia perceptiva, considerando-se a percepçâo como iniciaçâo ao mundo (Ibid., p. 346). Respostas que levam em conta a retirada da causalidade, de uma comunicaçâo pelo seu sentido expresso no "olhar a distância" (Ibid., p. 349-350). Merleau-Ponty defende a renuncia da ideia de causalidade e de motivaçao, por acreditar que o "pretenso motivo nao pesa em minha decisâo, ao contrário, é minha decisao que lhe empresta sua força" (Ibid., p. 582), mas sem que isto signifique subtrair a possibilidade de "re-criaçâo ou re-constituiçao do mundo" (Ibid., p. 279), ratificando a percepçâo como instalaçâo do saber (Ibid., p. 280). O olhar de MerleauPonty é a essencia sobre a potencia de apreensâo, sobre a construçâo de entendimento e sobre a ilusâo referente a profundidade (Ibid., p. 353). Este é um método que coloca o observador do sujeito perceptivo como um sujeito perceptivo, destacando a percepçâo da maneira como é vivida pelo sujeito, o que acaba por desmentir seu pré-conceito sobre percepçâo, principalmente porque a perspectiva é interna e nao externa (Ibid., p. 279).
O mundo exposto por Merleau-Ponty é aquele que já está ali. Segundo o filósofo, a reflexâo nao pode ser plena nem um esclarecimento total de seu objeto; ademais, é preciso saber procurar o sujeito que buscamos conhecer, sem nos tornarmos inteiramente consciencia (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 98). É a partir desta perspectiva que o real deve ser descrito, e nao construido ou constituido, levando-se em consideraçâo que nosso campo perceptivo é preenchido de reflexos, de projeçöes, reflexöes e imaginaçöes, "que não podem ser ligados de maneira precisa ao contexto percebido" (Ibid., p.5), explica Merleau-Ponty. O real nao é uma realidade da minha percepçâo, nem esta é uma ciencia do mundo, nem este é "um objeto do qual possuo comigo a lei de constituiçâo" (Ibid., p.6), por esse motivo a opçâo por uma pesquisa que preconize a experiencia como espaço aberto. A experiencia fotográfica se apresenta como um meio para descrever este real. A partir desta forma de descriçâo é possivel modificar a percepçao sobre uma imagem comunicada como realidade e produzir outra realidade mediada pelo afeto. É a ampliaçâo do meu campo de visâo a partir do outro, de como o outro ve, pois é através da percepçao de outrem que eu posso me encontrar posto em relaçao com um outro eu; uma percepçâo realizada a partir de outra subjetividade (MERLEAU-PONTY, 2015; p. 39). É a partir desta experiencia perceptiva que se estabelece aquilo que Merleau-Ponty entende como "comunicaçâo verdadeira", uma comunicaçâo fundada nos elementos de uma descriçâo do mundo percebido (Ibid., p. 39), da sintese de um mundo fotografado.
Percepçâo é também o sentir, o afetar e se deixar afetar. O afeto carrega radicalmente a possibilidade para uma técnica que propöe ir além da observaçâo. O afeto seria, entâo, a essencia do ato perceptivo. Spinoza em seu livro "Ética" oferece inúmeras reflexöes sobre afeto, inclusive sobre a possibilidade de ruptura do padrâo circular, denominado pelo filósofo como "reciprocidade" (SPINOZA, 2017, p.126-128; 187; 203-204; 221). Para Spinoza a potencia dos afetos se reflete por intermédio do nosso comportamento, que acaba projetado no outro. Esta projeçâo é a imagem que construimos a partir da nossa percepçâo sobre o outro. É nossa percepçâo que atribui um valor negativo ou positivo, somos nós que depositamos ou debitamos valor sobre as coisas, que consideramos se as coisas sâo más ou boas de acordo com nossa percepçâo. Spinoza defende a percepçâo como a faculdade de conceber e estaria relacionada ao corpo, convergindo com a concepçâo merleaupontyana sobre percepçâo: o corpo como centro da experiencia perceptiva. É o canal perceptivo que nos permite afetar e sermos afetados, oferecendo a oportunidade de criar novas imagens e romper com outras imagens. O olhar estético do afeto amplia o campo perceptivo por intermédio do afeto, permitindo ver a partir de outras lentes e outros corpos. A câmera fotográfica seria um outro corpo capaz de produzir outra forma de ver, em transformar o ver em olhar, o olhar em agir. O que é o olhar senão um "apendice do corpo", uma extensão da síntese corporal (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 211212). O olhar, segundo Merleau-Ponty, "obtém mais ou menos das coisas segundo a maneira pela qual as interroga, pela qual ele desliza ou se apoia nelas" (Ibid., p. 212). Para o filósofo, a percepçao "nasce no berço do sensível e não vem de outro lugar" (Ibid., p. 45), considerandoa a tránsito da significaçâo. É no perímetro ampliado do campo visual que poderemos encontrar reflexos de superficies sensíveis para podermos olhar ao invés de só vermos (DIDIHUBERMAN, 2015; 2010). Através da criaçao de novos campos visuais é possível fazer novas representaçöes (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 58). A Fotografia carrega uma alternativa de síntese perceptiva. Se os objetos reais não fazem parte do nosso campo visual, há que buscá-los em imagens, recomenda Merleau-Ponty, para que seja possível encontrar suas "possibilidades permanentes de sensaçöes" (Ibid., p. 51). A fotografia pode ser o medium ideal deste instrumento para sensibilizar, criar um novo olhar e reterritorializar a cidade e suas relaçöes.
3A experiencia fotográfica como medium do olhar estético do afeto: o projeto Olhar Complexo
Para Merleau-Ponty, a Fotografia se apresenta como um meio para descrever a experiencia perceptiva, capaz de modificar a percepçao sobre uma imagem comunicada como realidade e produzir outra realidade mediada pelo afeto. De acordo com a fenomenologia merleaupontyana, a percepçao é minha porta para questionar e refletir sobre a estrutura daquilo que vejo, para que eu possa (re)construir o olhar. O mundo da concepçao merleaupontyana não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; em outras palavras, é minha experiencia que projeta aquilo que eu entendo de mundo. Esta é a experiencia fotográfica proporcionada pela obra do Fotógrafo Bruno Itan e promovida em seu projeto Olhar Complexo, criado pelo próprio Bruno com o objetivo de formar um novo olhar dentro do Complexo do Alemão. Um olhar que seja capaz de modificar o próprio olhar dos moradores da favela, como também daqueles que moram no asfalto, acostumados a ver a favela e seus moradores como retratos da violencia.
O projeto Olhar Complexo foi fundado em 2017, inspirado no "Foto Clube Alemão", projeto criado em 2011 por Bruno Itan, morador do Complexo do Alemão, e seu Mestre, Dhani Borges, como forma de "levantar a bandeira da fotografia no Complexo do Alemão, que sempre foi conhecido como o lugar aonde Tim Lopes morreu"1. Desde a sua fundação, o projeto ocupa uma sala no Centro de Referencia da Juventude, localizado no Complexo do Alemão, coordenado por Lohran Santos, também morador desta favela. Um espaço que abriga diversos projetos organizados para e pela comunidade, voltados em sua maioria para a juventude, compreendendo atividades esportivas e profesionalizantes, além de cursos para adultos e idosos. O projeto estava em seu segundo ano quando foi feita a pesquisa, tendo formado 30 alunos no ano de 2017, entre crianças, adolescentes e adultos, e, em 2018, somente jovens e adultos participaram, registrando-se significativa reduçâo da demanda infantil, atribuida, segundo Bruno, "a crescente violencia que está dentro das comunidades ", fazendo com que "as maes nao deixem mais seus filhos andarem sozinhos pela favela". Bruno ressalta que seu trabalho é voluntario, não contando com qualquer ajuda financeira, seja pública ou privada, ministrando quatro horas semanais, divididas em duas aulas, além das sessöes de fotografia ao ar livre e eventos, o que permite aos alunos conhecerem outras favelas e sua própria comunidade, muitas vezes desconhecida para alguns deles, considerando-se que o Complexo do Alemão tem proporçöes municipais. Cabe salientar que o CRJ é subvencionado pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, responsável por conceder a sala onde o curso é ministrado, aparelhado com mesas, cadeiras, projetor, computador e ar condicionado, todos em excelente estado de conservaçâo. O equipamento fotográfico é do próprio Bruno Itan, e são raros os alunos que chegam com uma camera que não seja a do celular, as exceçöes foram dois alunos adultos, uma moça e um rapaz que fotografavam antes de iniciarem o curso do projeto Olhar Complexo. Bruno salienta que não há exigencia dos alunos possuirem uma camera para participar do curso, justamente porque a inte^ão do projeto, como o próprio nome revela, é buscar esse olhar complexo: "agente tápraticando é o olhar", dando origem ao nome, explica Itan, "a câmera vem depois". Ainda que seja evidente a falta de recursos, surpreende como Itan consegue manter a qualidade do projeto, replicando o curso que o apresentou ao mundo da Fotografia. Itan deposita na própria experiencia afetiva a explicação para manter um projeto centrado em um objeto muitas vezes inacessivel para a maioria dos moradores da favela e considerado elitista: "sao oportunidades que eu acho que lá no final isso vai ser revertido pra mim com coisa boa, fazendo coisa boa, gerando coisa boa, sempre retorna pra voce coisa boa, né? É assim que funciona a vida, assim que eu acho que funciona". Bruno destaca que o curso não é profissionalizante, ainda que admita seja uma "entrada no meio da fotografia, porque voce sabe que trabalhar com fotografia é tudo caro, nenhum pessoal pode, voce sabe que as pessoas que moram nas comunidades, nas favelas nao tem essa tanta condiçao de comprar um equipamento bom, um equipamento profissional, entao primeiro a gente tem que mostrar o sentimento, através do sentimento que a gente criar é que eles vao correr atrás dos equipamentos, mesmo com a dificuldade, como eu também tive a dificuldade."
Além de representar uma porta de entrada para o mercado de trabalho, o projeto Olhar Complexo é um veículo para construçao da memória social, reconhecido pelo próprio Itan ao discorrer sobre seu projeto, ilustrando a importancia do processo de produçao de memória do Complexo do Alemão: "é importante a gente mostrar o lugar aonde a gente vive, porque daqui a vinte, trinta anos, as pessoas vão querer saber como eram essas favelas, como que era esses lugares. Então, olha como é bom, é importante ter este registro e mostrar futuramente como era este lugar e como pode ser mostrar, essas pessoas daqui a vinte anos, vão sentir esse mesmo sentimento, vão querer registrar e daqui a cinquenta anos elas vão fazer isso e é isso que a gente tenta passar esse sentimento um pro outro." O projeto permite aos alunos descobrirem suas raizes, o espaço onde vivem e constroem seus laços, promovendo a autoestima e a construçao de uma resistencia a partir da sensibilizaçao em relaçao ao próprio território e suas relaçöes, visibilizados pelo ver fotográfico. É a partir daquilo que veem e projetam que a consciencia da luta pelo direito a cidade é despertada, conforme preceituava Henri Lefebrve. Alguns alunos instintivamente percebem no projeto um meio de construçâo de memória, além da oportunidade da formaçâo professional e da inserçâo no mercado de trabalho, de acordo com a fala recorrente da maioria dos jovens matriculados no curso de Fotografia. Sāo vários os relatos sobre a ausencia de registros de infancia, quando os celulares com cameras fotográficas ainda nao tinham sido popularizados, e a repercussāo desta falta de memória fotográfica de suas histórias e da história do espaço onde cresceram, principalmente por considerarem importante possuírem imagens que os permitiriam comparar ou lembrar uma época das suas vidas. Essas imagens permitiriam acompanhar a evoluçao do próprio corpo, do seu território e da sua história. Essa ausencia de registro do espaço onde moram, segundo o relato emocionado de uma aluna adolescente, seria responsável por interferir no ambiente, o que remete a potencia da experiencia estética, aquela capaz de reunir afeto e percepçao e alterar o entorno. Itan defende o registro do cotidiano como forma de construir a memória do espaço onde vive, onde costurou seus laços de afeto, ou seja, suas imagens do Complexo do Alemao, os registros dos afetos da favela, vista pelo fotógrafo como um território de belezas, revelando o objetivo do Olhar Complexo, qual seja, desconstruir a imagem unilateral da favela, retratada como espaço de violencia. Bruno Itan entende as saidas fotográficas durante o curso que ministra como uma experiencia cultural e como registro de memória, pensando, inclusive, como material de exposiçao, nao como exposiçao da violencia. As imagens produzidas na favela se constituem como objeto cultural do cotidiano da favela. Sao imagens que nao refletem aquelas retratadas pelo asfalto.
O olhar complexo de Bruno Itan é um olhar de ruptura com a identificaçâo da favela como territorio de risco, o que ratifica a necessidade de expor as imagens feitas pelos moradores da favela para que se possa construir outra imagem da cidade. Bruno acredita que a fotografia contribui para alterar o ciclo de violencia urbana, pois "a fotografia ajuda aopovo a lutar com a imagem, mais do que lutar com a arma; acho que isto já diz tudo ". Ele dispara: "Um tiro voce pode matar uma pessoa, com uma imagem voce pode acabar com um monte de gente", enfatizando o poder destruidor que uma imagem pode ter e sobre a imagem como denuncia. É sobre esse distanciamento que os espaços são identificados em imagens sem palavras. Bruno busca sempre destacar que seu objetivo com o projeto Olhar Complexo é mudar o olhar sobre a favela, reprogramando o olhar negativo em positivo. Todavia, Bruno parece querer demonstrar não perceber a propria potencia do seu trabalho para romper a circularidade da violencia, ou, então, deseja afastar a responsabilidade do que para ele seria "resolver o problema da violencia"; declarando não intencionar nenhuma "mudança na questão da violencia, "nao vem de mim mudar essa questao, vem do meu trabalho ajudar", "e sim, mostrar umaperspectiva de vida diferente pras pessoas; oportunidades diferentes de emprego, de arte, de uma cultura diferente [...] Eu acho que eu consigo mudar a imagem de um lugar com a fotografia, mostrar uma perspectiva de vida, de oportunidades diferentes que voce pode ter de emprego, financeiramente ou culturalmente, é, pra essas pessoas. Mas acho que violencia, acho que a fotografia ela não, não a que eu tô fazendo, porque eu poderia usar aqui todas as fotos que eu faço, eu faço fotojornalismo."
O projeto Olhar Complexo ratifica a possibilidade de reterritorializaçâo através do afeto, expressa na narrativa dos alunos, que depositam no curso uma oportunidade para gerar outra imagem sobre a realidade da comunidade, onde "a gente leva outra imagem pras crianças. A gente já conheceu muitas crianças que a vontade era ser traficante e a gente trabalhando com elas, a gente conversando no dia-a-dia foi mudando a realidade e fomos mostrando uma outra perspectiva de vida. Entao através da fotografia isso pode ser mudado também.", relata um aluno. Para outro aluno, "afotografia consegue travar a violencia"; "afotografia, depois que voce clica, ninguém mais pode mexer, ninguém pode mudar aquela realidade. Então, quando o fotógrafo tá, tá numa, tá cobrindo uma operação policial, o policial talvez não pense em querer agir de alguma maneira mais absurda porque ele sabe que vai tá registrado, entendeu? Então eu acho que a fotografia vai inibir um pouco a, a visão assim, da forma que o policial age numa comunidade. Por isso trava, trava." Fica evidente na fala de alguns alunos que a visibilidade desses projetos e da propria fotografia é fator decisivo para promover a alteraçâo da modulagem de percepçâo social e a consequente ruptura do padrão circular de violencia que divide a cidade e marca suas relaçöes. Uma forma de reconstruir a memória da favela e projetar outra ímagem, abrindo cam&0131;nho para outras possibilidades de presente e futuro.
A própria história de Bruno Itan revela uma dessas memórias do Complexo do Alemão. Uma história que é quase um cliche, igual a de tantas outras crianças que migraram com seus pais do nordeste para o Rio de Janeiro buscando melhores condiçöes de vida; a história de inúmeras mães que assumem sozinhas a criaçao de seus filhos. Embora Itan reconheça o impacto da violencia em sua história, os laços de afeto costurados durante a infancia mostraram o outro lado da favela e redesenharam sua história, fazendo com que "crescesse gostando mesmo do Rio de Janeiro; eu me apaixonei pela favela." Um dos seus relatos mais marcantes é sobre o despertar deste afeto, quando a professora do colégio pediu para que os alunos pesquisassem imagens dos locais de suas moradias na internet ou fizessem colagem de jornais e revistas, mostrando "o lado bom" onde eles viviam. Em sua pesquisa, Bruno só encontrara imagens que retratavam o Complexo do Alemão como um espaço de violencia: "as imagens eram só de tiroteio, gente morta e violencia, que no Complexo do Alemão só tem bandido". Aquelas imagens não refletiam a realidade do cotidiano de Bruno. Onde estavam "o sol, as crianças jogando bola, soltando pipa, o sorriso dos moradores, churrasquinho na laje no final de semana, o campeonato de futebol, torneio de pipa, as crianças brincando de bola de gude, depião", que Bruno via no Complexo do Alemão? Foi aí que Bruno viu "que não se compra isso, que isso não é interessante pra ninguém ", referindo-se as imagens que tinham despertado sua paixão pelo Rio de Janeiro e pelo Complexo do Alemão e que não faziam parte das imagens divulgadas "pela grande mídia, jornais, revistas". Nenhuma daquelas imagens que Bruno encontrara refletiam "o lado bom do Complexo do Alemão", levando-o a concluir que só produziam imagens negativas sobre a favela, "fazendo com que ninguém conheça o lado bom, só conheçam o lado ruim, porque ninguém nunca mostra o lado bom". Foi neste momento que Bruno percebeu que a favela era vista como o lado feio da cidade, justamente porque só viam uma imagem da favela, aquela veiculada pelos meios de comunicação e que nunca mostravam o lado bonito daquele espaço. Uma imagem negativa que se reflete na favela e acaba por modular a percepção dos próprios moradores. Foi naquele momento que Bruno percebeu qual era o seu objetivo na vida: "um dia poder mostrar as flores que tem lá na minha rua e porque eu acho minha rua bonita, meu beco, a fiaçao, a arquitetura da favela, que pra mim, eu achava bonito, mas na minha opiniao eu também achava que o pessoal lá fora também nao achava bonito porque era feio e eu não entendía". Bruno despertara para a diferença e o desejo de comunicar aquilo que ele via e que muitos não viam na favela. Bruno queria que olhassem para favela por intermédio de outras lentes - suas lentes, as lentes de afeto. Como Bruno não conseguira encontrar imagens que retratassem sua realidade, desenhou as belezas que via, explicando a professora os motivos que o levara a tal decisão. A professora, desconcertada, foi obrigada a admitir que Bruno, o único aluno não residente na região próxima ao colegio, não tinha outra opçâo não fosse desenhar "o lado bom do Complexo do Alemao ", "aí eu desenhei flores, eu desenhei futebol, desenhei bola, eu desenhei coisas que na minha cabeça eu achava bonito"; "aíela me deu dez". Foi assim que Bruno tivera a certeza da necessidade em mostrar o lado bonito da favela, aquela imagem "que ninguém conhece". Tal como Barthes (BARTHES, 2015, p. 26), a re^ão de Bruno com a fotografia é baseada no sentimento; já a re^ão do espectador com a fotografia, entre studium e punctum, entre deixar-se ou não afetar (Ibid., p. 27).
Este relato de Bruno revela a violencia simbólica que os moradores das favelas são vítimas, principalmente as crianças. É uma assoc^ão entre favela e violencia que estigmatiza a vida, por uma vida inteira. O sujeito inicia sua vida sendo identificado - e se identificando - com a imagem da violencia, como indivíduo violento, morador de um espaço violento e que só é capaz de gerar mais violencia. As alternativas de descolar da imagem construida unilateralmente são mínimas, restringidas pela comunicação violenta. É este retrato que Bruno se recusou identificar e a ser identificado. O Olhar Complexo de Bruno Itan busca estimular a dissoc^ão da imagem da favela retratada como locus de violencia e desconstruir a representação da favela como emblema da violencia. Itan ve no ato de fotografar uma possibilidade de romper com o medo gerado em razão desta constr^ão imagética que impöe repressão e controle a favela. O ato de fotografar carrega a possibilidade de afetar, fazer afetar e promover identificaçöes. Fotografar é o seu "agir sobre", é a oportunidade de buscar transformar através do afeto. O medo experimentado pelos moradores do Complexo do Alemão se refletem nas manifestaçöes pelo desejo da pacif&0131;cação, conforme exposto pela maioria dos alunos do projeto Olhar Complexo. Uma aluna acredita que o afeto seja responsável por trazer essa paz: "eu acho assim, quando a gente tem este afeto, cria este afeto com aspessoas, [...] com o afeto a gente chegar mais longe, consegue fazer outras coisas, é isso gera paz". Muitos alunos do projeto acreditam que fotografar é transmitir afeto, uma forma de "passar a visao", pois a fotografia seria capaz de traduzir suas emoçöes em imagens, tendo o idealizador do projeto como paradigma para mudar suas imagens e a imagem da favela. Estas emoçöes se refletem nas imagens dos alunos, intensas e genuínas, puro punctum, demonstradas nas palavras que expressam o desejo de afetar e transformar através da imagem fotográfica. Um afeto transformador que eles encontram nas fotos de Itan: "Ele, através de uma imagem, ele conta uma história de quando aquela pessoa tinha bem antes até ela chegar ali, como ela chegou ali. Eu já foco meu tempo de imagem, já é aquele momento. Quando voce olhar vai enxergar aquele momento, aquela vivencia, aquela experiencia daquele momento, daquele instante, porque aquela imagem saiu assim." O olhar complexo de Bruno demonstra as camadas possíveis do tempo, os caminhos de chegada e partida das imagens, como elas podem afetar através do tempo, abrindo e fechando o próprio tempo, como Ranciere aponta em seu livro "O Destino das Imagens" (RANCIERE, 2012). Esta potencia do olhar restou verbalizada por uma aluna: "é o meu olhar, porque eu capto ali as emoçoes das pessoas, do momento que tá se passando e aí depois eu vou pensar nas outras pessoas que vao olhar as fotos. Eu nao consigo captar as imagens pensando no que o outro vai ver. Até porque as pessoas cobram muito isso. O fazer foto pra mim e nao pras outras pessoas. Mas eu capto de imediato o que eu tô enxergando, aquilo que eu tô vendo, as emoçoes que eu tô sentindo e aí eu vou e foco naquilo." Pergunto a aluna se acredita que seu sentimento é capaz de ser transmitido através das suas fotos, e se através dessa foto ela consegue atingir com o mesmo sentimento quem olha suas fotos; ela hesita em me responder: "ás vezes sim, a maioria das vezes sim, porque as pessoas veem emoçao nas minhasfotos".
O trabalho de Bruno Itan é este outro olhar, aquele que pretende revelar "aquela gente bonita, solidaria, inteligente, aqueles lugares lindos", a projeçâo daquilo que o fotógrafo ve no Complexo do Alemão e "que nunca serao revelados se a iniciativa nao partir daqueles que aqui vivem. Acho que o nosso papel é mostrar as favelas vao além do que é divulgado cotidianamente". O fotógrafo Bruno Itan admite a possibilidade de mudança de percepçâo através da fotografia ao "passar afeto", capaz de alterar a percepçâo de "quem ve a fotografia e de quem fotografa". Bruno declara que percebe mudanças na percepçâo dos alunos em relaçâo ao espaço onde vivem e na autopercepçâo. Esta é a experiencia que o projeto de Bruno Itan proporciona. Uma experiencia que representa a amplitude da mediaçâo oferecida pelo olhar estético do afeto. A experiencia do olhar complexo de Bruno Itan é a experiencia preconizada por Walter Benjamin de uma imagem dialética, voltada para aquilo que entendemos como tempo futuro, mas calcada numa construçâo do tempo passado. É esta possibilidade de diálogo entre uma imagem já formulada e uma imagem complexa, proposta por Catala Domenech. Um olhar sobre uma imagem capaz de afetar, provocar reflexöes críticas e alterar percepçöes do vivido na possibilidade do porvir. Este também é o olhar estético do afeto, como possibilidade de construçâo de uma memória percebida e aquela que se estrutura na abertura do tempo.
A Fotografia é uma interminável multiplicidade de imagens que portam a potencia de (se) transformar (AZOULAY, 2008, p. 145), uma espécie de guia, tal como é o meu próprio olhar, na medida que me permite diferenciar do outro/de outra paisagem, como também me identificar com este outro/esta outra paisagem (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 543). O punctum na ímagem seria aquilo que me toca, me afeta, me punge, desperta o meu olhar (BARTHES, 2015, p. 25), e pode me transformar porque provoca meu agir. O ato de fotografar é o mergulho na imagem da Fotografia através do meu olhar a partir do olhar do outro, para, assim, voltarme para mim - que percebo, como preconiza Merleau-Ponty. Ao fotografar eu me projeto no mundo e, ao mesmo tempo, eu mostro como eu vejo o mundo, eu construo um novo mundo, uma nova realidade. A experiencia fotográfica é uma oportunidade que todos ganham em ver através do olhar do outro (AZOULAY, 2008, p. 107). O olhar estético do afeto expöe essa prerrogativa da imagem, do despertar da experiencia perceptiva através do olhar do outro. As imagens produzidas no curso de Fotografia do projeto Olhar Complexo reconfiguram a visibilidade social daquilo que é determinado socialmente para ser visto, projetado como imagem da violencia, do imaginado como obstáculo para se alcançar aquilo que Itan e muitos moradores do Complexo do Alemão consideram a paz. A realidade daqueles Fotógrafos está projetada nessas imagens. É a partir do ponto de vista de Bruno e seus alunos que podemos olhar aquele espaço e estabelecer outro padrão comunicativo. Seria a reprogramaçâo dos afetos por intermédio da imagem proposta por Spinoza (SPINOZA, 2017, p. 216). É certo que todas as imagens tem a capacidade de despertar algum tipo de emoçâo no espectador (CATALA DOMENECH, 2011, p. 28) e o curso de Fotografia carrega a possibilidade de múltiplos despertares em todos os espaços, por isso emerge como medium de uma técnica para modular e calibrar a percepçâo; afinal, fotografar é poder mediar as relaçöes socials e políticas entre os cidadãos, como também as relaçöes entre os cidadãos e o poder (AZOULAY, 2008, p. 137138).
4Conclusão
Buscamos com este trabalho apresentar não só uma alternativa as políticas públicas que pretendem enfrentar a violencia com mais violencia, mas a oportunidade de retemtorializaçâo da cidade e suas relaçöes através da experiencia fotográfica. A Fotografia oferece uma forma de experiencia estética capaz de reunir a experiencia afetiva e a experiencia perceptiva. Esta experiencia exprime a essencia do olhar estético do afeto, uma técnica que busca ampliar a percepçâo e promover a emancipaçâo do ver para construir outros olhares, outras imagens. O projeto Olhar Complexo, criado e dirigido pelo Fotógrafo Bruno Itan, é um exemplo como o olhar estético do afeto atua e permite modificar o olhar e romper com um determinado padrão perceptivo. O olhar despertado por intermédio do projeto porta radicalmente a possibilidade de ir além da observaçâo, expressa na raiz da palavra afeto, afficere, que significa fazer algo, agir sobre algo. A experiencia fotografica pode reprogramar o olhar a partir de imagens que despertem outros afetos. A reestruturaçâo perceptiva permite processar a desestigmatizaçâo, tanto do sujeito quanto do espaço. É a possibilidade de reconfiguraçâo do padrão comunicativo a partir da ativaçâo do sensível. O projeto Olhar Complexo expöe a potencia de um curso de Fotografia gerado dentro das favelas para moradores da favela, oferecendo a chance de afetar as relaçöes em uma cidade desigual e comunicada como violenta em razão de um olhar unilateral e desafetado. Uma experiencia que pode auxiliar no processo de alteraçâo de percepçâo do morador do asfalto em relaçâo a favela, como também do próprio morador da favela em relaçâo ao espaço onde vive e a autopercepçâo, além da possibilidade de construçâo de memória social. Esta é a oportunidade de reterritorializar a cidade e suas relaçöes.
Para citar - (ABNT NBR 6023:2018)
TORRACA, Lia Beatriz Teixeira. As possibilidades do olhar estético do afeto: o projeto olhar complexo. Eccos - Revista Científica, Sâo Paulo, n. 53, p. 1-17, e16666, abr./jun. 2020. Disponível em: https://doi.org/10.5585/eccos.n53.16666.
1 Todas as entrevistas realizadas durante a pesquisa de doutorado foram gravadas e encontram-se arquivadas com a autora. As transcriçöes de trechos de entrevistas foram dispostas neste artigo sem ediçâo, entre aspas e em itálico, segundo as normas da ABNT para transcriçao de entrevistas.
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© 2020. This work is published under https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0 (the “License”). Notwithstanding the ProQuest Terms and Conditions, you may use this content in accordance with the terms of the License.
Abstract
Este artigo apresenta o Projeto Olhar Complexo, criado e dirigido pelo Fotógrafo Bruno Itan, como possibilidade do olhar estético do afeto, uma técnica desenvolvida durante o curso de doutorado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ), que buscou oferecer uma alternativa para o enfrentamento da violência no Rio de Janeiro a partir da hipótese que esta violência reflete uma dinâmica circular de comunicação, sendo possível alterá-la através da experiência perceptiva. É a possibilidade de transformar o padrão comunicativo em uma cidade cuja projeção de imagens rotuladas instauram um fluxo permanente de manifestações de violência entre dois territórios, entre morro e asfalto. Uma técnica que pretende não só fazer visível as formas dessa violência, mas alterar a percepção sobre aquilo que é comunicado como violência, tendo como referência metodológica a Fenomenologia da Percepção, de Maurice Merleau-Ponty. A experiência fotográfica pode ser o medium desta técnica que "faz ver" e "faz agir sobre", permitindo a reterritorialização da cidade e suas relações.