Résumé: Ce qu'on prétend ici est d'entrecroiser les diverses lignes tracées á partir du concept deleuzéen de pli, qui fonctionnera comme opérateur d'articulation entre les oeuvres suivantes : « Le Sermon de la Sexagésime » (1655), de Antonio Vieira, important inacien portugais du dix-septiéme siécle et la prose-poéme Galaxias - Les Galaxies (1984), du poéte et théoricien brésilien Haroldo de Campos. Partant des volutes du texte vieirien, de ses mouvements de va-et-vient entre les plans du fini et de l'infini, qui résonnent dans les multiples jeux verbaux qui composent la tessiture allégorique de ses semons, l'on arrive á la configuration babelbaroque du labyrinthe galactique haroldien, son art singulier de plier et de déplier les signes pour composer les différentes voix et vitesses de son texte-limite.
Mots-clés : Baroque - pli - Gilles Deleuze - Littérature brésilienne
Resumo : Este artigo pretende entrecruzar diversas linhas traçadas a partir do conceito deleuziano de dobra (pli), que funcionará como operador de articulaçâo entre as obras : « Sermäo da Sexagésima » (1655), de Antonio Vieira, relevente inaciano portugués do século XVII, e a prosa-poema Galáxias (1984), do poeta e teórico brasileiro Haroldo de Campos. Partindo das volutas do texto vieiriano, de seus movimentos de vaivém entre os planos finito e infinito, que ecoam nos múltiplos jogos verbais que compôem a tessitura alegórica de seus sermôes, chega-se á configuraçâo babelbarroca do labirinto galático haroldiano, sua arte singular de dobrar e desdobrar os signos para compor as diferentes vozes e velocidades de seu texto-limite.
Palavras-chave : Barroco - dobra - Gilles Deleuze - Literatura brasileira
Abstract : In this article, the Deleuzean concept of fold will function as an articulator between the following works : « Sermäo da Sexagésima » (1655), written by Antonio Vieira, relevant portuguese jesuit of seventeenth century, and the prose-poem Galáxias (1984), by Haroldo de Campos, contemporary Brazilian poet and critic. The starting point focuses on the volutes in Vieira's sermon, enphasizing the continuous movements between finite and infinite plans that constitute the allegoric fabric of his sermons. Finally, we will analyse the « babelbaroque » configuration of Haroldo de Campos's galactic labyrinth, his singular art of folding and unfonding litterary signs in order to compose the different voices and velocities in his text.
Keywords : Baroque - fold - Brazilian litterature - Gilles Deleuze
Em uma entrevista a Robert Maggiori, Gilles Deleuze, comentando seus próprios hábitos de pensamento, observa: "eu tendo a pensar as coisas como conjuntos de linhas a serem desemaranhadas, mas também cruzadas. Nao gosto dos pontos, pôr os pontos nos is me parece estúpido" (1992, 200). Nesta comunicaçao, pretendo entrecruzar diversas linhas traçadas a partir do conceito deleuzeano de dobra, que funcionará como operador de articulaçao entre o Sermâo da Sexagésima (1655), do relevante jesuíta seiscentista Antônio Vieira e a prosapoema Galaxias (1984), do crítico e poeta contemporáneo Haroldo de Campos. Partindo das volutas do texto vieiriano, de seus movimentos de vaivém entre os planos finito e infinito, que ecoam nos múltiplos jogos verbais que compôem a tessitura alegórica dos sermôes, destacarei algumas ressonâncias com a configuraçao babelbarroca do labirinto galáctico haroldiano, sua arte singular de dobrar e desdobrar os signos para compor as diferentes vozes e velocidades de seu texto-limite.
Em tal perspectiva, prioriza-se a teorizaçao deleuzeana acerca da dobra como modus operandi distintivo da criaçao seiscentista - hipótese funcional que nao visa a definir uma essencia do barroco, mas a buscar sua especificidade operatória. Deleuze, pensador da diferença, observa que nao há duas coisas pregueadas do mesmo modo, nem dois rochedos, nao existindo uma dobra regular para uma mesma coisa. Nesse sentido, encontram-se dobras por todo lado, mas a dobra nao é um universal. Cabe ainda destacar que, desde o préformismo do século XVII até a genética de hoje, a dobra mudou de natureza, de funçao, de sentido. O próprio Leibniz nao inventou tal noçao, já anteriormente conhecida nas ciencias e nas artes; ele foi o primeiro pensador a "liberar" a dobra, levando-a ao infinito; do mesmo modo, o Barroco é a primeira época em que a dobra vai ao infinito e transborda todo limite. Claro está, portanto, que esse conceito é sempre um singular, constituindo um "diferenciador", um "diferencial", que só pode ganhar terreno variando, bifurcando, se metamorfoseando (Deleuze, 1992: 195); com isso, pode dar conta nao apenas da especificidade do Barroco como também da possibilidade "de estende-lo para fora dos seus limites históricos, sem extensao arbitrária" (Deleuze, 1988: 48). Assim, a proposta deste trabalho é acompanhar algumas metamorfoses das dobras barrocas e das que se autodenominam neobarrocas, suas variaçöes em cada uma das obras mencionadas, destacando sempre, em cada uma delas, um dobramento próprio aos novos materiais que estao em jogo, ou seja, suas diferentes texturas e maneiras.
No paradigmático Sermâo da Sexagésima, escolhido por Antônio Vieira como prólogo da primeira ediçao dos vários volumes de seu sermonário, o jesuíta procede por meio de um duplo movimento de contraçao e de expansao que configura a respiraçao, o ritmo de seu discurso. A frase-núcleo retirada das Sagradas Escrituras - A semente é a palavra de Deus - sintetiza vários pontos de vista que sao aos poucos desenvolvidos, segundo modulaçöes diferentes, para, no final, se remeterem novamente ao tema central da prédica. Além de ser um eficiente recurso retórico, tal procedimento encontra-se diretamente relacionado a doutrina teológica professada pelo sermonista, que pode ganhar uma compreensao a luz das consideraçöes deleuzeanas acerca da filosofia barroca de Leibniz.
Tendo como ponto de partida a relevante obra de Wölfflin, Renascimento e Barroco, Deleuze pensa o estilo seiscentista em termos de sua funçao operatoria primordial: fazer dobras. Como já referimos, estas nao sao uma invençao da arte do século XVII: há todas as pregas advindas do Oriente, as gregas, romanas, góticas, clássicas (Wölfflin, 1985: 43). Todavia, o traço distintivo do Barroco é a dobra (pli, em francés) que vai ao infinito, curvada e recurvada, uma sobre outra, desenrolando-se em dois planos - a matéria e a alma -, ambos com infinitos desdobramentos. Chega-se, assim, a noçao de multiplicidade, que nao é apenas o que possui muitas partes, mas - a partir da propria etimologia da palavra, oriunda do termo latino plicare - o que é dobrado (plié/ multiplicité) de diversas maneiras (cf. Deleuze, 1988: 5-6).
A dobra, por sua vez, traz a cena a polarizaçao interior/exterior, tao cara a arquitetura do período em questao, segundo nos indicou o crítico francés Jean Rousset (1976: 256), com sua cisao entre a fachada e o lado de dentro, entre a autonomia do interior e a independéncia do exterior. Com isso, as dobras ganham amplidao, nao apenas por simples cuidado decorativo, mas para exprimir a intensidade de uma força espiritual exercida sobre a matéria. Da arquitetura transita-se - seguindo um longo caminho que nao caberia retomar aqui - para a filosofia e a teologia, nao separadas no pensamiento leibniziano: na medida em que Deus é envolvimento, tudo se encontra dobrado/envolvido nele mesmo; na medida em que é desenvolvimiento, ele mesmo está em cada coisa. Nas palavras de Deleuze:
O Uno tem um poder de envolvimento e de desenvolvimiento, ao passo que o múltiplo é inseparável das dobras que ele faz quando é envolvido, e dos desdobramentos, quando é desenvolvido. Mas os envolvimientos e desenvolvimientos, as implicaçöes e explicaçöes, sao ainda movimientos particulares que devem ser incluidos em uma universal Unidade que os "complica" a todos e complica todos os Unos. (Deleuze, 1988: 33)
O uso do vocábulo complica remete diretamente ao termo latino complicatio, empregado por Nicolau de Cusa (1401-1464) em referéncia a Deus, aquele em quem tudo se acha complicado e, ao mesmo tempo, aquele em que tudo se explica, por encontrar-se em tudo. Assim, enquanto a explicatio é um desenvolvimiento, a implicatio é um envolvimento - e ambas se completam nesse raciocinio. Em sentido geral e atendo-se a sua etimologia, o termo explicacao designa o processo mediante o qual se des/envolve o que estava envolvido, se faz presente o que estava latente, o que parecia obscuro e confuso aparece de modo claro e detalhado. Em suma: explicar - implicar - complicar, movimentos que seguem as variaçöes da relaçao entre o Uno e o múltiplo, formam a tríade central do pensamento de Leibniz (cf. Deleuze, 1988: 33), herdeiro direto da tradiçao filosófica medieval.
Porquanto Deus - a complicaçao universal, no sentido de que tudo se inclui nele - se expressa no mundo, este passa a ser a expressao/explica&ecedil;ao do Um que é, segundo nos indica Deleuze em seu estudo sobre Spinoza (1981: 103-105). Assim, tudo na natureza se plasma a partir da coexisténcia de dois movimentos: explicaçao e implicaçao. Sístole e diástole marcando o sopro divino no mundo, tais movimentos nao sao contrários, mas complementares, bem ao gosto da lógica barroca da coincidentia opositorum: tudo o que explica, por isso mesmo implica; o que desenvolve pressupôe o envolvimento; só se desdobra o que se encontrava previamente dobrado.
Tal desvio pelo cruzamento das filosofías medieval e renascentista com a barroca se revela de grande importancia para a compreensao do Sermåo da Sexagésima. Retomemos o texto. Partindo de uma parábola bíblica que compara o pregar ao ato de semear a palavra divina no campo do espirito humano, o predicante submete essa imagem a intermináveis variaçöes, desenvolvendo-a em "alegorías que se desatam segundo uma vertigem combinatória cara ao barroco", nas palavras de Adolfo Hansen (1979: 171).
Como correlato formal dessa dupla articulaçao entre uma substância infinita e as formas múltiplas e finitas em que ela se manifesta/explica, encontra-se, no sermao, uma tensao entre um centro ordenador e uma reiterada multiplicaçao de elementos que se superpôem. As repetiçöes, as sinonimias e as enumeraçöes se sucedem, permitindo ao orador retomar sua idéia central, examiná-la em todas as suas faces e acompanhá-la em prolongamentos distantes, segundo se evidencia no exemplo abaixo:
Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. [...] Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da missao do Maranhao de doze anos a esta parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na ilha das Arnas; houve missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocantins, mirrados da fome e da doença [...] (Vieira, 1907: 6)
Todavia, os elementos assim disseminados sao recolhidos posteriormente, numa sucessao plurimembre de termos que condensam todas as idéias expressas na composiçao, ordenando o que aparentava ser uma desordem inicial: "Para os semeadores, isto sao glórias: mirrados sim, mas por amor de Vós mirrados; afogados sim, mas por amor de Vós afogados; comidos sim, mas por amor de Vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de Vós perseguidos e pisados" (idem: 6).
Astuto orador, Vieira jamais se perde em meio ás numerosas bifurcaçöes dos seus argumentos, dado o método rigoroso da sua arte sermonística, que deve, seguindo os preceitos aristotélicos reciclados pela preceptiva retórica seiscentista, ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria, "pois quem levanta muita caça e nao segue nenhuma nao é muito que se recolha com as maos važias" (idem: 22). Mas, afinal, que caça se persegue com as redes tao engenhosamente tramadas no texto? Tratar-se-ia apenas de plasmar um meta-sermao, visando ensinar a sinuosa arte de pregar, reportando-se toda a aparente profusao de sentidos a um principio unificador que complicasse todas as diferenças? Reflitamos.
Já vimos que o eixo sobre o qual repousa todo o edificio do sermao é a parábola do semeador, da qual Vieira extrai o conjunto de imagens com as quais tece o seu discurso. Considerando-se que, em suas próprias palavras, "nesta pesca de entendimentos, só quem sabe fazer a rede, sabe fazer o lanço" (idem: 25), deve- se ressaltar a importancia estratégica do seu método de caçar. Submetendo a alegoria da semeadura da palavra divina a diversos desdobramentos, o texto examina possíveis causas para o malogro da colheita. Desse modo, nao só discorre sobre o ato de semear/pregar, mas traz a cena também o seu agente: aquele que semeia. De inicio, por abrir muito o leque das possibilidades aventadas, acaba por incluir elementos por demais heterogéneos, eludindose a captura: as malhas da sua rede sao tao largas que deixam escapar os melhores peixes. Em seguida, num movimento inverso, refutando uma a uma as hipóteses desenvolvidas anteriormente e cerrando cada vez mais a trama do seu discurso, o predicante - identificando-se com os "apóstolos pescadores de homens" (idem: 25) - fecha o cerco e eis que a presa se revela : os gongóricos dominicanos.
Ponto para o qual convergem todos os argumentos desenvolvidos pelo jesuíta, essa severa crítica as atuaçoes de seus rivais de púlpito se faz de maneira indireta - astuciosa estratégia retórica e política -, planteando-se por detrás da evidente intençao pedagógica de ensinar os procedimentos necessários para bem semear a palavra de Deus.
Em funçao do exposto, evidencia-se a órbita elíptica traçada pelo sermonário vieiriano, inscrevendo dois pólos entre os quais se desdobram muitas passarelas: o plano retórico-teológico, centrado na letra das Escrituras, e o plano político, configurado por sua destinaçao secular. Em síntese, ao lado da preocupaçao explícita em discorrer sobre a correta exegese bíblica e sobre a arte semonística exemplar, revela-se o intento de reforçar uma divisao excludente entre dois tipos de pregadores. Incluindo-se entre os verdadeiros pretendentes ao cargo, Antonio Vieira, de modo sutil e ardiloso, busca descaracterizar os falsos pretendentes: os dominicanos, vinculados ao Tribunal do Santo Oficio, que tanto perseguiu o jesuíta. Assim, em meio a embates retórico-teológico-políticos seiscentistas, o Sermåo da Sexagésima constitui uma arma extremamente eficaz, tendo em vista a perícia e a agudeza do orador.
Entremearei aqui mais um fio. Dentre os autores brasileiros contemporáneos que se dedicaram a uma reflexao acerca do barroco destaca-se, certamente, Haroldo de Campos. No ámbito da crítica, desde 1955, ele definiu a obra de arte aberta como um neobarroco ou barroco moderno (Campos, 2000: 525). Além disso, dedicou um importante estudo a poesia de Gregório de Matos (Campos, 1989), nosso grande poeta dessa época, buscando resgatá-la do seqüestro efetuado por Antonio Candido, em seu já clássico livro Formaçâo da literatura brasileira. Igualmente, sua obra literária tem dialogado bastante com diferentes manifestaçoes do estilo seiscentista, segundo veremos.
Desde a publicaçao dos primeiros fragmentos de Galaxias, em 1964, vários críticos apontaram a presença de traços barrocos na poiesis haroldiana. Registre-se a seguinte observaçao de Severo Sarduy:
As Galáxias concluem, de certo modo, a trajetória na poesia concreta [...]. O barroco frondoso, selvático, furioso, se deixou decantar numa geometria legível, despojada até a transparéncia do projeto, como as fachadas mineiras do Aleijadinho. (Sarduy, 1979: 125)
Sánchez Robayana (1979: 138) identifica igualmente como barroca a estrutura parassintética do texto em questao, bem como o uso dominante da elusao do tema e a obliteraçao do sentido. Na mesma direçao, Costa Lima postula a tese de que tal obra opera um desvio da escrita de linhagem mallarmaica, com a escolha da "deriva barroca no magma impuro do cotidiano". E acrescenta: "O riso e a voracidade rabelaisianas criam em Galaxias um desvio significativo. O legado barroco nao faz por menos. O traço ibérico interage na recepçao de Mallarmé e modifica seu perfil ascético" (1989: 342-43). Cabe ainda destacar que o próprio Haroldo de Campos forneceu a pista para uma leitura de sua obra na clave de uma reciclagem do barroco, ao defini-la como "um texto onde as fronteiras entre poesia e prosa sao abolidas e que recupera sincronicamente, por assim dizer, a "pré-história" barroca da minha poesia concreta" (apud Barbosa, 1979: 21)
Mais um importante entrecruzamento de linhas na tessitura que tento configurar aqui. Em artigo publicado no livro Gilles Deleuze: uma vida filosófica, Haroldo de Campos, do vasto espectro de temas abordados pelo filósofo francés, seleciona para exame a operaçao "barrocolúdica" deleuzeana, que retoma, em suas próprias palavras, "o pli mallarméano em paralelo a mónada de Leibniz, concebida a maneira de uma 'capela barroca', cujo mármore interior se deixa percorrer de venaturas dedálicas" (Campos, 2000: 527-528). Destaca, ainda, a radicalidade dessa proposta, que consistiría no gesto de "inventar o Barroco", ou seja, criar um conceito operatório capaz de estender o raio de incidéncia multidisciplinar e o ámbito historizável desse estilo (Idem, 530).
Para tentar esclarecer o que está em questao quando se emprega, segundo orientaçao do próprio autor, o adjetivo barroco em relaçao a Galaxias sem ficar apenas em um mero jogo de aposiçao de etiquetas, partiremos da teorizaçao deleuzeana acerca da dobra para destacar certa especificidade operatória da obra em foco. Para isso, tomemos dois exemplos:
o mar como um livro rigoroso e gratuito como esse livro onde ele é absoluto de azul esse livro que se folha e refolha que se dobra e desdobra nele pele sob pele pli selon pli (frag.12; grifos nossos)
desse espaço sem palavras de que o livro faz-se como a viagem faz-se ranhura entre nada e esta ranhura é a fábula a dobra que se desprega e se prega de sua dobra mas se dobra e desdobra como um duplo da obra (frag. 31)
Esses fragmentos evidenciam que o texto galático procede por um duplo movimento de contraçao e de expansao, de idas e vindas, que configura sua textura singular. Mais do que simples recurso retórico, tal procedimento de vaivém, de fazer e desfazer constitui um importante estilema da arte seiscentista, que, como vimos, se articula diretamente ao pensamento de Deleuze acerca de Leibniz. Assim, o conceito de dobra funcionará estrategicamente aqui como operador de aproximaçao entre a arte seiscentista e o texto de Haroldo de Campos. Entre esses dois pólos, insinua-se a presença da plicatura mallarméana, já inscrita em filigrana no fragmento citado de Galaxias, a partir da referéncia a composiçao de Pierre Boulez, "Pli selon pli", que dialoga com a obra do poeta francés. De fato, segundo Deleuze (1988: 43), "a dobra é, sem dúvida, a noçao mais importante de Mallarmé, nao apenas a noçao, mas, antes, a operaçao, o ato operatorio que o torna um grande poeta barroco".
Idéntica posiçao é assumida por Jean-Pierre Richard, a partir dos fragmentos e anotaçoes esparsas que constituíam o projeto do grande Livro, reputando a dobra como um tema que apresenta uma plurivaléncia particularmente fecunda na obra do poeta:
A figura mallarmeana da dobra, por exemplo, permitirá unir o erótico ao sensível, depois ao reflexivo, ao metafísico, ao literário: a dobra sendo, ao mesmo tempo, sexo, folhagem, espelho, livro, túmulo, todas as realidades que ela reúne em um certo sonho muito especial de intimidade (Richard, 1961: 28)
Dentro da constelaçao de imagens que se relacionam a esse tema no texto mallarmeano, ressalta-se a concha marinha, imortalizada no famoso "Soneto em ix" (Campos et alii, 1974: 64) e presente no seguinte trecho de Galaxias: "uma polipalavra contendo todo o rumor do mar uma palavra-búzio que Homero soprou e que se deixa transoprar através do sucessivo escarcéu de traduçoes encadeadas" (frag. 45).
O "aboli bibelot" de Mallarmé encontra-se mesmo denominado explícitamente em outros trechos: "pena que ela seja uma ptyx" (frag. 30) e "a borboleta-ptix escapa da ventarola do quimono" (frag. 46). Aliás, nesse fragmento da obra de Haroldo de Campos, evidencia-se com nitidez o processo operatorio da dobra, com uma superposiçao de imagens que a ele se referem direta ou indiretamente:
esta mulher-livro este quimono-borboleta que envelopa de vermelho um gesto de escritura e doura suas páginas dela a mulher-livro em papel-japao cada página que se compagina num fólio-casulo (...) isto tudo nasceu de um quimono que drapeja dobras como páginas (frag. 46).
No tear do texto, urde-se uma superficie plissada, em que os mesmos motivos se cobrem e se descobrem, a maneira do origami japonés ou arte de dobrar o papel, que, na concepçao de Deleuze, forneceria o modelo para a ciéncia da matéria. Num arabesco irónico, a escritura se volta sobre si mesma, leque a dobrar-se e desdobrar-se, desenvolvendo suas séries permutantes e suas estruturas circulares. Metamorfoseados, os mesmos motivos reemergem em outras passagens:
apenas uma dona contra o biombo de papel dum leque imaginário sussurrando coisas monogatari estórias de papel num leque (frag.7).
eu apenas lhes contei uma estória tchuang-tse asa pó-de-iris irisa a dobra da página que desdobra o livro a dobra (frag. 28).
Compreende-se, entao, que o efeito vertiginoso provocado pelo universo galático deriva da multiplicaçao reiterada dos elementos que se superpoem, esfumaçando os seus contornos, num jogo incessante de fazer e desfazer. Tomemos mais alguns exemplos do texto em foco:
o paraíso nao é artificial mas tampouco simétrico o compasso das coisas difere discorda dispauta isto vocé pode escrever neste livro seu de linde e deslinde de rumo e desrumo de prumo e desprumo neste livro que vocé alinha e desalinha (frag. 17).
caramujos quentam sob a pedra homens sobre requentam sol de holofote na cara e ocupamdesocupam pontos entramsaem portas sentamdessentam bancos (frag. 28).
Alquimista do léxico, Haroldo de Campos rompe o equilibrio estável do signo, num constante deslocamento dos corpos verbais - "planetas desorbitados que abandonam suas elipses para inserir-se em outras", segundo Severo Sarduy (1979: 121) -, criando um grande número de palavras fundidas, nas quais se integram dois ou mais significados independentes, ás vezes até antitéticos. Além dos exemplos citados, encontramos no texto uma proliferaçao de calembures - "alviagudos" (frag. 42), "publiexposto" e "escribalbuciando" (frag. 45), entre outros -, recurso estilístico tao caro a obra barroca, consoante nos indica Dámaso Alonso (1980: 150), em que duas ou mais raízes diferentes se combinam de modo que uma única palavra se torne um nó de significados, cada um deles podendo correlacionar-se a outros pontos de concentraçao semántica, abertos ainda a novas constelaçoes e probabilidades de leitura.
Com efeito, um exemplo significativo desse procedimento é a palavra-valise "caleidocamaleoscópico" (frag. 13), na qual se complicam - em dobras morfológicas, ainda o mesmo ato operatorio... - dois elementos básicos para a obra aqui examinada: o caleidoscopio e o camaleao. O primeiro diz respeito a multiplicidade de facetas do próprio texto, com seus fragmentos justapostos, nao numerados, permitindo uma combinatória diferente de acordo com o lance singular produzido pela leitura. Como cada fragmento em si mesmo também constitui um mosaico que reagrupa elementos advindos de diferentes contextos, reforça-se a construçao da obra em galáxias: estrutura móvel, em expansao e recriaçao continua1. E mais: um texto assim em rotaçao é regido pelo principio da metamorfose, o que remete ao segundo termo do calembur. Camaleônica, na verdade, é a criaçao barroca, com suas perspectivas cambiantes e diferentes recursos de trompe l'oeil.
Acerca dessa polissemia do significante, com razao afirma o renomado jesuíta seiscentista Baltasar Gracián que "uma palavra é como uma hidra vocal porque, além de sua significaçao própria e direta, se a cortamos ou a invertemos, de cada sílaba renasce uma sutileza de engenho e de cada inflexao um conceito" (Gracián, 1974: 186).
Outro ponto a destacar é que o barroco, em seu gosto pelos enigmas, emblemas, alegorias, em seus empréstimos estilísticos dos textos preexistentes e em sua tendencia á fragmentaçao do discurso, nao cessou de praticar o método inventivo do palimpsesto.2 Mais uma vez, esse motivo torna-se recorrente na obra de Haroldo de Campos, como se verifica nos seguintes exemplos:
um corpo em linha d'água se transparenta quando o papel encorpa e deixa ver esta epiderme (frag. 46).
tudo isto nasceu de um quimono que drapeja dobras como páginas e a mao que o manuseia e que descerra suas folhas e fileta de ouro cada folha por isso posso rasurá-lo agora e deixar no branco vacante este risco iminente de outro escrito de outro branco de outro resto incesto palim que é o nome de uma constelaçao psesto (frag. 46).
Christine Buci-Glucksman, em seu estudo acerca da arte seiscentista, retoma uma alegoria da memória, figurada na iconología de Cesare Ripa, como uma mulher de duas cabeças, vestida de negro e segurando uma pena na mao direita e um livro na mao esquerda. E observa: "Potencia da pena (escrever) e do livro (ler), a memória tem duas faces. Tal como Janus, ela conserva e esquece, torna presente e ausente, reúne o nada e o tudo" (Buci-Glucksman, 1986: 195). Assim, na condiçao de signo de memória, o signo barroco será caracterizado por essa ambigüidade quanto a reinscriçao do passado: repetiçao em diferença. Configura-se, portanto, uma "babel de línguas, de traços" nessa operaçao de escrever sobre textos já escritos, de passar do palimpsesto ao babelismo (Idem, 207), ou, na denominaçao de Haroldo de Campos, a uma escrita "babel barroca" (frag. 13). Tal estética do palimpsesto constitui outro ponto de articulaçao entre o barroco histórico e suas recriaçoes contemporáneas, segundo observaremos específicamente em relaçao a Galaxias.
Cabe citar novamente Christine Buci-Glucksman: "Ponto de encontro de uma hermeneutica dos signos e da metáfora do Livro, do teatro como livro, o topos do palimpsesto condiciona uma nova relaçao da obra com o passado histórico, uma nova concepçao da memória como rememoraçâo e interpretaçâo" (1986: 208). Em outras palavras, tudo já se encontra escrito, representado, nesse theatrum mundi, nesse mundo como biblioteca infinita - as duas grandes alegorías seiscentistas, reativadas em uma série de textos de épocas posteriores, dentre os quais se destaca o seguinte fragmento de Jorge Luis Borges: "O universo (que outros chamam de a Biblioteca) se compôe de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilaçao no meio, cercados por varandas baixíssimas" (Borges, 1944: 465).
Facilmente se verifica que uma reflexao acerca do jogo intertextual da literatura informa a perspectiva haroldiana. De fato, nos comentários a sua traduçao de James Joyce (Finnegans Wake), o autor refere-se ao "principio do palimpsesto", em que "um significado, um conjunto de imagens, é superposto a outro" (Campos, 1986: 21). Também ao refletir acerca da poesia concreta, manifesta uma preocupaçao com a memória estética e com a recriaçao dos traços do passado literário:
A arte da poesia, embora nao tenha uma vivencia funçâo-da-Hist0ria, mas se apóie sobre um "continuum" meta-histórico que contemporaniza Homero e Pound, Dante e Eliot, Góngora e Mallarmé, implica a idéia de progresso, nao no sentido de hierarquia de valor, mas no de metamorfose vetoriada, de transformaçao qualitativa, de cultomorfologia: "make it new". (Campos, 1975: 26)
Nas Galáxias, Haroldo de Campos pratica com freqüencia a citaçao, o transplante, a mixagem de textos. Há uma proliferaçao de referencias a escritores, obras, fragmentos de livros: "uma rosa é uma rosa como uma prosa é uma prosa" (frag. 44). Também é recorrente um movimento de auto-reflexao, quando a narrativa se dobra sobre si mesma e especula os seus próprios procedimientos intertextuais:
agora nao estou falando deste livro inacabado mas de signos que designam outros signos (frag. 35).
o postiço empastado do real como uma camada sobre outra camada o falso acasalado ao deveras como uma página velando outra página (frag. 6).
Conforme parece evidente, este último fragmento tematiza a própria estética do palimpsesto, da obra múltipla, que alephicamente, na esteira de Borges, complica várias outras obras. Trata-se da concepçao haroldiana da escritura, desenvolvida a partir de Mallarmé, como "operaçao de leitura": "dobragem, dobra, dobro, duplo, duplicaçao, daçao em dois, doaçao - dados" (Campos, 1975: 120). Galaxias, em sua própria síntese: "esse martexto por quem os signos dobram" (frag. 45).
Para concluir, façamos também o nosso recolho final. A reflexao deleuziana acerca do pensamento de Leibniz nos ensina que, no jogo do mundo, dentre infinitas séries que se desenrolam de uma singularidade a outra, há inúmeros conjuntos compossíveis, com suas regras de convergencia peculiares. Usando como ponto de liga o conceito de dobra na condiçao de ato operatório primordial do barroco seiscentista e de seus desdobramentos contemporáneos, procurei destacar, no emaranhado de linhas traçadas aqui, um certo acorde/acordo criado entre as obras em foco.
Notas
1 Segundo o próprio autor, "a metáfora cosmológica do título é, ainda, a melhor explanaçâo do seu processo gerativo" (Campos: 1992, 271)
2 Para maiores desdobramentos acerca desse método de criaçao a partir da reciclagem de textos preexistentes, cf. Oliveira: 2003, cap. 1.
Referencias Bibliográficas
Barbosa, Joao Alexandre. 1979. "Um cosmonauta do significante: navegar é preciso". In: Campos, Haroldo de. Signantia quasi coelum. Sao Paulo: Perspectiva.
Borges, Jorge Luis. 1974. "La Biblioteca de Babel". In: Obras Completas. Buenos Aires, Emecé.
Buci-Glucksman, Christine. 1986.La folie du voir; de l'esthétique baroque. Paris: Galilée.
Campos, Haroldo de. 1975. Teoria da poesia concreta. Sao Paulo: Duas Cidades. _. 1984. Galáxias. Sao Paulo: ExLibris.
_. 1989. O seqüestro do barroco na Formaçao da Literatura Brasileira: o caso Gregório de Matos. Salvador: Casa de Jorge Amado.
_. 1992. "Do epos ao epifânico (genese e elaboraçao das Galáxias)". In: Metalinguagem. 4a ed. rev. ampl. Sao Paulo: Perspectiva.
_. 2000. "Barrocolúdio deleuzeano". In: Alliez, E. (org.) Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Sao Paulo: Editora 34.
_& Campos, Augusto de. 1986. Panorama do Finnegans Wake. Sao Paulo: Perspectiva.
_et alii. 1974. Mallarmé. Sao Paulo: Perspectiva.
Costa Lima, Luiz. 1989. A aguarrás do tempo. Rio de Janeiro: Rocco.
Damaso Alonso. 1980. Góngora y El "Plifemo". 3 v. Madri: Gredos.
Deleuze, Gilles. 1985. Differénce et répétition. Paris: PUF.
_. 1988. Le pli: Leibniz et le baroque. Paris: Minuit.
_. 1981. Spinoza: philosophie pratique. Paris: Minuit.
_. 1992. "Sobre Leibniz". In: Conversacoes. Rio de Janeiro: Editora 34.
Grácián, Baltasar. 1974. Agudeza y arte de ingenio. Madri: Espasa-Calpe.
Hansen, Joao A. 1979. Vieira, estilo do céu, xadrez de palavras. In: Discurso 9. Sao Paulo: Livraria Editora Ciencias Humanas.
Oliveira, Ana Lúcia M. de. 2003. Por quem os signos dobram: uma abordagem das letras jesuíticas. Rio de Janeiro: EdUERJ.
Richard, Jean-Pierre. 1961. L'univers imaginaire de Mallarmé. Paris: Minuit.
Robayana, Andrés S. 1979. "A micrologia de elusao". In: CAMPOS, Haroldo de. Signantia quase coelum. Sao Paulo, Perspectiva.
Rousset, Jean. 1976. L'intérieur et l'extérieur: essais sur la poésie et le théátre au XVIIe siécle. Paris: José Corti.
Sarduy, Severo. 1979. "Rumo a concretude". In: Campos, Haroldo de. Signantia quasi coelum. Sao Paulo: Perspectiva.
Vieira, Antonio. 1907. "Sermao da Sexagésima". In: Sermoes, vol. I. Porto: Lello & Irmaos.
Wölfflin, Heinrich. 1985. Renaissance et baroque. Brionne: Gérard Monfort.
You have requested "on-the-fly" machine translation of selected content from our databases. This functionality is provided solely for your convenience and is in no way intended to replace human translation. Show full disclaimer
Neither ProQuest nor its licensors make any representations or warranties with respect to the translations. The translations are automatically generated "AS IS" and "AS AVAILABLE" and are not retained in our systems. PROQUEST AND ITS LICENSORS SPECIFICALLY DISCLAIM ANY AND ALL EXPRESS OR IMPLIED WARRANTIES, INCLUDING WITHOUT LIMITATION, ANY WARRANTIES FOR AVAILABILITY, ACCURACY, TIMELINESS, COMPLETENESS, NON-INFRINGMENT, MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR A PARTICULAR PURPOSE. Your use of the translations is subject to all use restrictions contained in your Electronic Products License Agreement and by using the translation functionality you agree to forgo any and all claims against ProQuest or its licensors for your use of the translation functionality and any output derived there from. Hide full disclaimer
© 2010. This work is published under https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/fr/ (the“License”). Notwithstanding the ProQuest Terms and Conditions, you may use this content in accordance with the terms of the License.
Abstract
Ce qu'on prétend ici est d'entrecroiser les diverses lignes tracées á partir du concept deleuzéen de pli, qui fonctionnera comme opérateur d'articulation entre les oeuvres suivantes : « Le Sermon de la Sexagésime » (1655), de Antonio Vieira, important inacien portugais du dix-septiéme siécle et la prose-poéme Galaxias - Les Galaxies (1984), du poéte et théoricien brésilien Haroldo de Campos. Partant des volutes du texte vieirien, de ses mouvements de va-et-vient entre les plans du fini et de l'infini, qui résonnent dans les multiples jeux verbaux qui composent la tessiture allégorique de ses semons, l'on arrive á la configuration babelbaroque du labyrinthe galactique haroldien, son art singulier de plier et de déplier les signes pour composer les différentes voix et vitesses de son texte-limite.