Reçu le 30-09-2021 / Evalué le 12-10-2021 / Accepté le 18-11-2021
Résumé
Quarante ans après la fin de la Seconde Guerre Mondiale, Marguerite Duras décide de publier « La Douleur », témoignage de l'expérience féminine de la guerre. « La Douleur » raconte la douloureuse période d'attente du retour de Robert L., déporté dans les camps de concentration allemands. À partir du discours intime et hybride de « La Douleur », il s'agira de procurer une lecture des images insistantes d'une Europe en cendres et de la construction d'une mémoire collective, à partir de l'expérience individuelle du traumatisme européen. Cet article réfléchit également sur ce qu'il reste du continent européen et sur son destin, après avoir été le théâtre d'une des plus grandes atrocités que l'homme ait pu perpétrer.
Mots-clés : Douleur, Europe, Marguerite Duras, mémoire
Abstract
Forty years after the end of World War II, Marguerite Duras decides to publish «La Douleur», testimony of the female experience of war. «La Douleur» narrates the painful period of waiting for the return of Robert L., deported to the German concentration camps. Based on the intimate and hybrid tone of «La Douleur», this paper aims to provide a reading of the insistent images of Europe in ashes and of the construction of a collective memory, through the individual experience of the European trauma. This paper also reflects on what remains of the European continent and on its fate, after having been the scene of one of the greatest atrocities that human beings have been able to perpetrate.
Keywords: Pain, Europe, Marguerite Duras, memory
Introduçao
Marguerite Duras (1914-1996) nasceu na Indochina, ex-colónia francesa e atual Vietname. Prematuramente, lidou com perdas irreversíveis que acabaram por influenciar a sua escrita. Em criança, perdeu o pai. Aos dezoito anos, partiu para França para iniciar o seu percurso académico e deparou-se com um sentimento de falta de pertença a um lugar. Em vida, confessou nunca se ter sentido verdadeiramente francesa. Em 1939, casou-se com Robert Antelme (1917-1990), também escritor, e o filho de ambos acabou por morrer a nascença, em 1942. Nessa época, durante a ocupaçao de Paris, Duras pertenceu a Resistencia Francesa com Robert Antelme, na rede Mitterand. O marido acabou por ser deportado para os campos de concentraçao Buchenwald e Bad Gandersheim e, finalmente, foi para Dachau.
É no cenário da Segunda Guerra Mundial, perante uma Europa em ruinas, que Duras escreve diários sobre a dolorosa espera que enfrentou em Paris quando desconhecia o paradeiro do seu marido. Em 1985, uma revista francesa pediu-lhe alguns textos de juventude e Duras encontrou esses diários, que nao se lembrava de ter escrito. Quarenta anos depois reescreveu-os e publicou «A Dor», o primeiro dos seis textos que compóem a obra homóloga de 1985. Trata-se de um texto híbrido, com marcas autobiográficas e diarísticas, datado de uma maneira imprecisa, que evidencia a própria fragilidade da memória. Inserindo-se entre a narrativa testemunhal, a autobiografia e a autoficçao, "A Dor" é um dos exemplos paradigmáticos da «(...) busca identitária obsessiva (...)» (Coutinho, 2015: 123) que Ana Paula Coutinho encontra na obra durassiana.
«A Dor» narra a espera de uma mulher pelo regresso de Robert L., deportado para os campos de concentraçao. Duras coloca o leitor perante uma experiencia-limite provocada pelas monstruosidades que assolaram a Europa no final da primeira metade do século XX. Através de uma escrita elíptica e labirintica, o leitor experiencia o sofrimento profundo de uma mulher em busca do marido que lhe foi roubado pela prepotencia nazi. O desespero da espera é acompanhado pelo testemunho de uma Europa devastada pelos crimes que a humanidade foi capaz de cometer. A narradora dá-nos a ver, na primeira pessoa, um Continente onde o espetáculo da Morte assola a vida de todos. Tanto a descriçao das paisagens do espaço europeu, como as paisagens interiores das personagens sao imagens de uma Europa em cinzas. Assim, o presente artigo pretende demonstrar e refletir sobre as figuraç0es da Europa presentes no texto «A Dor» e sobre a importancia da preservaçao de uma memória coletiva dos acontecimientos. Ao mesmo tempo, também pretende evidenciar, a partir de «A Dor», o que resta desse Continente onde a humanidade parece ter perdido a esperança num futuro promissor.
1.A dor da escrita: um testemunho entre o esquecimento e a lembrança
Diante de «A Dor», o leitor depara-se com uma nota introdutória, na qual a autora afirma nao se recordar de ter escrito os diarios: «Encontrei este diario em dois cadernos dos armarios azuis de Neauphle le Château. Nao me lembro de o ter escrito» (Duras, 1985: 10). Apesar de nao se lembrar do lugar e dos momentos em que o escrevera, assume que: "Sei que o fiz, fui eu que escrevi, reconheço a minha escrita (...)" (ibidem). Deste modo, há um desfasamento entre a Marguerite Duras, autora em 1985, que reescreve os seus diários, e a Marguerite-narradora que vive, no presente e na primeira pessoa, os acontecimientos monstruosos que assolam a Europa em 1945. Perante a leitura dos seus diários, Duras afirma: «Encontrei-me frente a uma fenomenal desordem do pensamento e do sentimento, em que nao ousei tocar- e face a ela, a literatura envergonha-me» (ibidem).
Assim, «A Dor» reflete o complexo trabalho da memória, em permanente tensao entre a lembrança e o esquecimento. A autora sente-se envergonhada por nao se recordar dos momentos em que escrevera sobre o sofrimento profundo que sentira. Nao entende como foi possível sentir tamanha dor e nao se recordar dela. Assim, a literatura envergonha pela capacidade que tem de relembrar a vivencia de um tempo doloroso que tinha sido esquecido, passados quarenta anos.
Em A Memória, a História e o Esquecimento (2000), Paul Ricoeur (1913-2005) dá conta da inevitabilidade e da permanente ameaça do esquecimento e afirma que este: «(...) é deplorado da mesma forma que o envelhecimento e a morte: é uma das faces do inelutável, do irremediável» (Ricoeur, 2014: 435). Ainda chama a atençao para a «(...) ideia paradoxal segundo a qual o esquecimento pode estar tao estreitamente confundido com a memória, que pode ser considerado como uma das suas condiçöes» (ibidem). Na reescrita do passado, dá-se uma permanente mediaçao entre o momento vivido e a seleçao da experiencia, face a distância dos acontecimentos. A apropriaçao dos momentos distantes gera um discurso que oscila entre o factual e o ficcional, devido a impossibilidade de reviver efetivamente o passado e a presença permanente do esquecimento. Assim, justifica-se o estranhamento de Duras face aos seus textos de juventude.
Ao longo de «A Dor», o leitor encontra-se perante uma escrita que reflete o processo de representaçao da memória. A imprecisao das datas relativas aos acontecimientos revela o caráter fragmentário da construçao da memória. Ao mesmo tempo, o leitor depara-se com marcas de prolepse que geram uma confluencia incessante de tempos: «[Nem agora que transcrevo estas coisas da minha juventude consigo perceber o sentido dessas frases.]» (Duras, 1985: 26). Para Duras, testemunhar os acontecimentos passados significa também inserir marcas do tempo da reescrita, pois a visāo do passado encontra-se sempre condicionada pelo presente. Em «Escrever entre ruinas: Marguerite Duras e a dor da memória», Ana Paula Coutinho destaca que a presença de elementos do passado da narradora e a utilizaçâo do presente do indicativo na escrita de La Douleur: «(...) para além de prova da autenticidade dos factos por via da componente autobiográfica, funciona também como efeito de paradoxal autoridade para um tipo de escrita que sofre, sabe e partilha da sua condiçâo de absoluta fragilidade» (Coutinho, 2015: 126). Neste sentido, em «A Dor», assistimos a um filme interior de uma memória fragmentada da vivencia da dor, onde o intimo e o ficcional se confundem.
A originalidade do texto encontra-se na dimensāo lacunar e eliptica da reescrita da memória que a narradora utiliza para dar testemunho da experiencia-limite da espera. Apesar de nāo ter vivido na pele a violencia da guerra e dos campos de exterminio, o sofrimento da espera revela-se também muito penoso, tanto emocional como corporalmente. Segundo Ana Paula Coutinho, «Marguerite Duras deixou emergir alguns traços, até entāo quase sempre silenciados, que tem a ver com a versāo feminina do tempo da Ocupaçâo, em que muitas mulheres incarnaram, mais uma vez, o papel de expectantes e de feiticeiras míticas» (idem: 127). A narradora representa todas as mulheres que foram vítimas de um enorme sofrimento por desconhecerem as condiçöes de vida (ou morte) dos seus familiares, amantes ou amigos ausentes e pela sua incapacidade de mudar o rumo da História. A sua forma de combate era a espera. Assim, «A Dor» é um dos exemplos paradigmáticos na literatura da vivencia da melancolia sem fim, originada pelas sucessivas perdas que o ser humano foi capaz de provocar.
2.A escrita da dor: insistencia das imagens de uma Europa em ruinas
A narradora vive assombrada pelas imagens da morte de Robert L., num contexto de dor intensa, devido ao seu desaparecí'mento nos campos de concentraçâo: «Ele está dentro de uma vala a morrer com a cabeça voltada para a terra, as pernas dobradas, os braços estendidos. Está morto. Através dos esqueletos de Buchenwald, o esqueleto dele» (idem: 13). As imagens de Robert L. que povoam o seu pensamento sāo imagens da morte dele. Obcecada por essas imagens, a narradora esquece-se de viver, de se alimentar, nāo consegue fazer nada sem ser pensar no marido: «A Alemanha nazi está esmagada. Ele também, na vala. Tudo no fim. Impossível parar de andar. Eu também estou magra, seca como pedra» (idem:14).
A escrita, em «A Dor», funciona como uma arma para combater as imagens da morte de Robert L. Se lembrarmos a obra Écrire de Marguerite Duras, compreendemos o caráter salvifico da escrita durassiana. Para ela, escrever é: "se trouver dans un trou, au fond d'un trou, dans une solitude quasi totale et découvrir que seule l'écriture vous sauvera" (Duras 2019: 20). Mais adiante, afirma ainda que escrever: «c'est etre seule dans un abri pendant la guerre. Mais sans priere, sans Dieu, sans pensée aucune sauf ce désir fou de tuer la Nation allemande jusqu'au dernier nazi» (idem: 31). Deste modo, escrever é também a única maneira de combater as atrocidades que assolaram a Europa no final da primeira metade do século XX. Escrever acaba por ser um ato de resistencia contra as imagens da vala negra onde ela imagina Robert L., um combate contra as imagens de uma Europa em chamas: «Berlim arde. Mil cidades arrasadas. Milhóes de civis fogem: o corpo eleitoral de Hitler está em fuga. Em cada minuto cinquenta bombas partem dos terrenos de aviaçâo» (Duras, 1985: 34). Escrever, em Duras, é lutar contra a ameaça da morte e do esquecimento, contra o silenciamento da catástrofe que deixou uma ferida insarável nos sobreviventes. Assim, a narradora dá-nos a ver imagens violentas desse Continente em cinzas: «Estamos desse lado do mundo em que os mortos se amontoam numa inextricável vala comum. É na Europa que isto se passa. É na Europa que se queimam judeus, milhóes. É na Europa que se chora por eles. A América espantada ve o fumo dos crematorios gigantes da Europa» (idem: 46).
Para além de mostrar a Europa como um palco de violencia, guerra e morte, a narradora também dá a ver uma identidade europeia isolada e em ruinas, responsável pela doença da morte: «Pertencemos a Europa, é aqui que isto se passa, na Europa, é aqui que estamos fechados juntos face ao resto do mundo. Å nossa volta os mesmos oceanos, as mesmas invasóes, as mesmas guerras. Pertencemos a raça dos que foram queimados nos crematorios e dos gaseados de Maidanek, também pertencemos a raça dos nazis» (ibidem).
Para Duras, «pertencer a Europa» significa partilhar alguma culpabilidade dos crimes que se cometeram em todo o continente. A impossibilidade de um futuro pacifico depois das catástrofes que o ser humano foi capaz de perpetrar também se revela em «A Dor». Ainda a espera de Robert L., na incerteza da sua condiçao de vida, a narradora apresenta-nos Paris a mostrar os primeiros sinais de paz. Contudo, o desespero da espera é incompatível com o surgimiento de uma cidade que renasce das ruinas da guerra: «A paz surge. É como uma noite profunda que caísse, também é o principio do esquecimento. A prova disto já existe; Paris está iluminada a noite. A praça de Saint-Germain-De-Prés está iluminada como se fosse por faróis. [...] Sai, surgiu-me a paz, iminente. Voltei para casa rapidamente, perseguida pela paz. Pressenti que um futuro possível ia chegar, que uma terra estranha ia emergir deste caos e que aqui ninguém ia esperar mais. Nao tenho lugar em parte nenhuma aqui [...] A cidade iluminada perdeu para mim qualquer outro significado que nao seja este: é signo de morte, signo de amanha sem eles. Só para nós que esperamos existe algo de actual nesta cidade. Para nós, é a cidade que eles nao hao de ver» (Duras, 1985: 47).
Há um desfasamento entre o estado de espirito da narradora, que sofre um luto profundo, e o lugar onde habita. Para ela, os primeiros sinais da paz sao insuportáveis, pois os lugares de Paris encontram-se abalados pelas milhares de perdas irreparáveis de vidas humanas. A Paris que recuperará das cinzas nunca poderá ser um lugar de paz, pois terá sempre a marca da ausencia daqueles que foram as verdadeiras testemunhas do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial, isto é, aqueles que nao regressaram para contar as desgraças que viveram.
3.A possibilidade de reabilitar a Europa: a partilha da culpa e o papel da escrita
A grande questao que se coloca é como pensar na possibilidade de uma reabilitaçao da identidade humana se, nas palavras de Duras: «Sete milhóes de judeus foram exterminados, transportados em vagóes de gado, e depois gaseados nas cámaras de gás feitas para esse efeito e depois queimados nos fornos crematorios feitos para esse efeito» (idem: 48)? Como recuperar a humanidade anterior a industria da morte que teve lugar no espaço europeu? Para a narradora, a única possibilidade de reabilitaçâo do espaço europeu é assumir a culpabilidade total dos crimes da Segunda Guerra Mundial: «Se este crime nazi nao for alargado a escala do mundo inteiro, se nao for aumentado a escala coletiva, o homem concentracionário de Belsen que morreu sozinho com uma alma coletiva e uma consciencia de classe, a mesma com que fez saltar a cavilha do carril, certa noite, em certo local da Europa, sem chefe, sem uniforme, sem testemunha, foi traído. [...] A única resposta a dar a este crime é transformá-lo num crime de todos. Partilhá-lo. Tal como a ideia de igualdade, de fraternidade. Para o suportar, para se conseguir tolerar a ideia de crime, partilhá-lo» (idem: 49).
Nao partilhar a culpabilidade dos crimes significa trair aqueles que efetivamente testemunharam o inimaginável: a industria da morte provocada pela guerra e pelos campos de concentraçao. Assim, «A Dor» possui uma missao ética muito clara. Escrever sobre os acontecimientos catastróficos que tiveram lugar na Europa significa dignificar aqueles que morreram e ficaram privados de testemunhar a sua experiencia de morte. Só através do testemunho daqueles que sobreviveram as atrocidades vividas durante a Segunda Guerra Mundial é que os que desapareceram podem ser lembrados, tal como afirmou o escritor, sobrevivente de Auschwitz, Primo Levi (1919-1987): «Falemos nós em vez deles, por delegaçao. Nao sei dizer se o fizemos, ou fazemos, por uma espécie de obrigaçao moral para com os emudecidos, ou pelo contrário, para nos libertarmos da sua lembrança» (Levi, 2008: 83). Segundo Levi, o que leva alguém a testemunhar pode ser tanto um impulso altruista como egoista. Apesar de desconhecermos as razóes pessoais que levaram Duras a publicar o seu testemunho, podemos afirmar que o leitor de «A Dor» ganha consciencia da sua culpabilidade no crime nazi e também fica implicado na própria narrativa. Ele próprio é testemunha, através da leitura. Testemunhar, através da escrita para Duras, é assumir as culpas das desgraças que assolaram a Europa, mas também lembrar que discutir o passado pode ajudar na construçao de um futuro consciente e promissor.
4.Europa do pós-guerra: a imagem in(d)escritível
Neste sentido, pode-se ligar a escrita de Duras em «A Dor» ao conceito de pós-memória de Marianne Hirsch. A pós-memória é: «(...) la relation que la 'génération d'apres' entretient avec le traumatisme personnel, collectif et culturel subi par ceux qui l'ont précédée, avec des expériences dont elle ne 'se souvient' que par le biais d'histoires, d'images et de comportements au milieu desquels elle a grandi» (Hirsch, 2008: 114). Através da leitura de «A Dor», o leitor que pertence a uma geraçao que nao presenciou estes acontecimientos poderá desenvolver aquilo que a autora designa de «mémoire indirecte» (Hirsch, 2008). Com a leitura das imagens desta Europa em ruinas, o leitor que nao viveu esta época mortífera desenvolve uma relaçao com os acontecimientos históricos, ganha consciencia do que se passou e, ao mesmo tempo, de si próprio, pois faz parte dessa humanidade que foi capaz de matar o seu semelhante. Através da reconstruçao da memória em Duras, o passado age sobre o presente do leitor o que permite a tomada de consciencia de um passado que nao deseja que se repita. O sentimento de uma perda irreparável e inenarrável nao é apenas sentido pela narradora, mas sim por uma coletividade europeia. A missao de «A Dor» é transmitir um passado, para diminuir a probabilidade de que os mesmos erros venham a ser repetidos.
A imagem de Robert L., sobrevivente do campo de concentraçao de Dachau, é uma personificaçao da Europa em ruinas. Com o seu regresso, a narradora apresenta-nos o marido metamorfoseado pela violencia dos campos. Ela nao o reconhece e os seus amigos também nao o reconhecem: «aquela forma que ainda nao estava morta, flutuava entre a vida e a morte e ele tinha sido chamado, ele, o médico, para tentar fazer com que a forma continuasse a viver» (Duras, 1985: 53); «A transparencia via-se o desenho das vértebras, das carótidas, dos nervos, da faringe, e via-se passar o sangue: a pele transformara-se em mortalha» (idem: 55).
A imagem do sobrevivente irreconhecível, quase descrito como uma figura nao-humana é também uma imagem do continente europeu que nao se reconhece, em ruinas. Deixou de ser um lugar para viver tranquilamente para ser um enorme cemitério das vítimas da loucura humana. Todo o seu corpo demonstra as vivencias atrozes por que passou e demonstra também a impossibilidade de as ultrapassar. É o sorriso de Robert L. que permite a narradora identificá-lo: «É por causa deste sorriso que de repente o reconheço, mas de muito longe, como se o visse ao fundo de um túnel. É um sorriso confuso. Ele desculpa-se por ter chegado ali, reduzido a um dejeto. E depois o sorriso desvanece-se. E ele transforma-se outra vez num desconhecido. Mas o conhecimento surgiu, este desconhecido é ele, Robert L., na sua totalidade» (idem: 52).
Apesar de o reconhecer vagamente através do sorriso, a narradora ve-o como um desconhecido. Ele encontra-se físicamente presente, mas psicologicamente ausente. Robert L. nao é o mesmo depois de ter estado em Dachau e as cicatrizes com as quais regressou sao intransponíveis. A violencia dos campos deixou marcas insaráveis que a narradora nao consegue decifrar, pois ela nao sofreu esses acontecimientos na pele. No final do texto, a narradora assume a impossibilidade de falar sobre Robert L.: «Logo com o nome, Robert L., eu choro. Ainda choro. Chorarei toda a minha vida. (...) Todos os dias pensa que vou poder falar sobre ele, e eu ainda nao posso» (idem: 63). Esta declaraçao lembra o que Duras escreve no argumento de Hiroshima mon Amour: «Tout ce qu'on peut faire c'est de parler sur l'impossibilité de parler sur Hiroshima» (Duras, 1960: 10).
5.O que resta da Europa: o poder do nao-dito
As monstruosidades que tiveram lugar na Europa ou que foram provocadas pelos próprios europeus nao sao possíveis de ser representadas. Giorgio Agamben (1942-) deu conta da incomunicabilidade destes acontecimientos em O que resta de Auschwitz: «A testemunha comumente testemunha a favor da verdade e da justiça, e delas a sua palavra extrai consistencia e plenitude. Nesse caso, porém, o testemunho vale essencialmente por aquilo que nele falta; contém no seu centro, algo intestemunhável, que destitui a autoridade dos sobreviventes. As verdadeiras testemunhas, as testemunhas integrais sao as que nao testemunharam, nem teriam podido faze-lo.» (Agamben, 2008:43).
Apesar de Robert L. nao ser a testemunha integral de que fala Agamben, pois ele sobreviveu, a narradora afirma nao poder falar dele, pois ela nao viveu o que ele experienciou no campo de Dachau. O seu testemunho reside precisamente na impossibilidade de o poder fazer, na incomunicabilidade inerente a catástrofe do acontecimento Auschwitz. A autoridade do testemunho depende da possibilidade de poder dizer algo enquanto sujeito, mesmo sabendo que algo faltará no seu discurso. Há um pacto entre o dizível e o indizível, pois a testemunha parte sempre da impossibilidade de poder falar por aquele que nao sobreviveu.
Segundo Maurice Blanchot, «Écrire, c'est peut-etre amener a la surface quelque chose comme du sens absent (...)» (Blanchot, 1980: 71). «A Dor» de Duras traz o näo-sentido a superficie, pois nao haveria outro modo evitar o silenciamento através do testemunho destes acontecimientos. Os eventos catastróficos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial säo da ordem da ausencia de sentido, do inconcebível. O único modo de falar sobre esses acontecimientos é dar a ver a sua indizibilidade. Evocando Alexis Nouss em Récit et Connaissance: «Comprendre l'indicible nous est encore peut-etre offert grâce a une phrase d'un personnage de Bober dans Quoi de neuf sur la guerre ?: Raphael, photographe, comprend que l'essentiel est de 'photographier non plus ce qui existait, mais ce qui avait disparu puisque, me semblait-il, c'est le manque qui donne a voir' » (Nouss, 1998).
Deste modo, Duras dá-nos a ver a ausencia, a perda de um tempo que nunca mais poderá ser recuperado e a impossibilidade de superar a catástrofe do Holocausto. No final do texto, diante do mar, a narradora ainda nao acredita inteiramente na sobrevivencia de Robert L.: «Eu sabia que ele sabia, que ele sabia que a todas as horas de todos os dias eu pensava: 'Näo morreu no campo de concentraçao'» (Duras, 1985: 64). O regresso de Robert L. também nos parece ao mesmo tempo algo de inacreditável. Ao duvidar ainda da sua sobrevivencia, a narradora assume que se deu uma perda irreparável no intimo de Robert L. depois de ter passado pelas atrocidades dos campos de concentraçao. Neste sentido, a presença de Robert L., no final do texto, assume-se como uma ausencia impossivel de ser preenchida ou reparada, tal como a Europa.
Para Agamben, o que resta de Auschwitz näo é o testemunho dos que sofreram na pele a violencia dos campos e sobreviveram, nem as vítimas mortais da loucura nazi, mas «(...) o que resta entre eles» (Agamben, 2008: 162). Assim, o que resta da Europa é essa lacuna, o indizível, o irrepresentável, aquilo sobre o qual ninguém pode falar com certeza. Resta lembrar a insanidade dos acontecimentos para que aqueles que sofreram o exterminio na pele sejam lembrados e honrados.
A publicaçâo tardia de «A Dor» pode ser associada a dificuldade de representar o irrepresentável: o horror dos campos de exterminio. A necessidade de um distanciamento temporal face a vivencia traumática do periodo nazi justifica-se a partir da célebre afirmaçâo de Theodor Adorno: «escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro» (Adorno, 1998: 26). Muitos artistas e pensadores no pós-guerra se depararam com a dificuldade de evocar os horrores vivenciados, com o problema de como pensar e representar os acontecimentos monstruosos produzidos por um sistema cultural que permitiu a industrializaçâo da morte. Nao tendo a arte conseguido impedir as atrocidades das grandes guerras, nem a emergencia do Nacional Socialismo ou o acontecimiento Auschwitz, dá-se uma crise das representaçoes, da linguagem e do humanismo. Segundo Ana Paula Coutinho, tanto Adorno como Duras continuaram a escrever depois do Holocausto, mas defendiam «(...) a impossibilidade de escrever literatura como mera estetizaçao do sofrimento, como se nao tivesse existido esse plano monstruoso de destruiçao maciça, obrigando a repensar, a partir daí, todas as formas de representaçao do humano» (Coutinho, 2015: 124).
Conclusāo
Segundo Jakélévitch, « Lorsqu'un acte nie l'essence de l'homme en tant qu'homme, la prescription qui tendrait a l'absoudre au nom de la morale contredit elle-meme la morale. N'est-il pas contradictoire et meme absurde d'invoquer ici le pardon? Oublier ce crime gigantesque contre l'humanité serait un nouveau crime contre le genre humain» (Jakélévitch, 1996: 25). A luta contra o esquecimento e a imprescindibilidade moral e ética de registar a memória desses tempos desaguam numa escrita melancólica e frágil em Duras. Em relaçao as consequencias da Primeira Guerra Mundial, Walter Benjamin (1892-1940) deu conta de que: « (...) os combatentes voltavam mudos do campo de batalha nao mais ricos, e sim mais pobres em experiencia comunicável » (Benjamin, 2012: 28). O silenciamento dos protagonistas das atrocidades da guerra e dos campos e a impossibilidade de comunicar as vivencias sofridas na guerra é precisamente o que Duras pretende evidenciar através de «A Dor».
Através de um olhar clínico e escrutinador, Marguerite Duras alerta para a importancia da preservaçao da memória e para a necessidade de saber viver com ela. Mesmo que a memória seja dolorosa, Duras ensina-nos que a dor pode ser o agente catalisador de novos modos de ver o mundo através da arte. «A Dor» nao representa, mas apresenta uma perspetiva possível e aberta dos acontecimentos do final da Segunda Guerra Mundial, onde a potencia do nao-dito é o que confere a possibilidade de poder relembrar estes eventos. Através de uma escrita híbrida, cinematográfica, instável e frágil, o leitor penetra e perde-se na linguagem durassiana, no naufrágio doloroso das palavras que nos dá as imagens de uma Europa em ruinas. O que resta da Europa é a ferida aberta, insarável e indescritível que a Segunda Guerra Mundial e os campos de extermínio deixaram na nossa memória coletiva. Resta-nos aprender a viver com ela e nao permitir que os mesmos erros se repitam. Resta-nos combater a fragilidade da memória, compartilhar a culpa dos crimes nazis e testemunhar por aqueles que foram impedidos de o fazer. Assim, a literatura revela-se um refugio para o trauma de uma civilizaçâo em cinzas, lugar de resistencia contra o conceito arendtiano de «banalidade do mal» e contra a impotencia do ser humano face a morte.
Mafalda Pereira est étudiante en deuxiěme année de Master en Études Littéraires, Culturelles et Interartistiques (spécialisation en Études Comparatistes et Relations Interculturelles) a la Faculté des Lettres de l'Université de Porto (Portugal), ou elle prépare un mémoire sur le récit carcéral dans la littérature contemporaine. Diplômée en Études Portugaises a la Faculté des Sciences Sociales et Humaines de l'Universidade NOVA de Lisboa (2020), elle a suivi un programme de mobilité Erasmus+ a l'Université de Bologne (2018) et un autre a la Sorbonne Université (2019).
Bibliografia
Adorno, T. 1998. «Crítica Cultural e Sociedade». Prismas. Sao Paulo : Ática.
Agamben, G. 2008. O que resta de Auschwitz. Sao Paulo : Boitempo.
Benjamin, W. 2012. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa : Relógio D'Água.
Blanchot, M. 1980. L'Écriture du désastre. Paris : Gallimard.
Coutinho, A-P. 2015. «Escrever entre ruínas: Marguerite Duras e a dor da memória». In: Marguerite Duras: palavras e imagens da insistencia. Libreto 4. Porto : ILC Livros Digitais.
Duras, M. 1985. «A Dor». A Dor. Lisboa : Difel.
Duras, M. 1960. Hiroshima Mon Amour. Paris: Gallimard.
Duras, M. 2019. Écrire. Paris: Gallimard.
Hirsch, M. 2008. «The generation of postmemory». Poetics Today. vol. 29. n° 1. p. 103-128.
Jankélévitch, V. 1996. L'Imprescriptible. Pardonner? In: L'honneur et la dignité. Paris : Seuil.
Levi, P. 2008. Os que sucumbem e os que se salvam. Lisboa : Editorial Teorema.
Nouss, A. 1998. «Les récits de l'indicible». In: Récit et Connaissance. Presses Universitaires de Lyon, p. 199-214 [En ligne]: https://books.openedition.org/pul/11346#text [consulté le 17 juin 2021].
Ricoeur, P. 2014. A Memória, a História e o Esquecimento. Sao Paulo: Boitempo.
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Abstract
Quarante ans après la fin de la Seconde Guerre Mondiale, Marguerite Duras décide de publier « La Douleur », témoignage de l'expérience féminine de la guerre. « La Douleur » raconte la douloureuse période d'attente du retour de Robert L., déporté dans les camps de concentration allemands. À partir du discours intime et hybride de « La Douleur », il s'agira de procurer une lecture des images insistantes d'une Europe en cendres et de la construction d'une mémoire collective, à partir de l'expérience individuelle du traumatisme européen. Cet article réfléchit également sur ce qu'il reste du continent européen et sur son destin, après avoir été le théâtre d'une des plus grandes atrocités que l'homme ait pu perpétrer.