Introdução
Produções científicas centradas na epidemiologia dos comportamentos de risco associados a doenças crônicas não transmissíveis (Morris et al., 1953; WHO, 2015), como inatividade física, dietas inadequadas, tabagismo e consumo excessivo de bebidas alcoólicas, colocaram o Estilo de Vida (EV) como tema prioritário nas agendas políticas contemporâneas, em especial no âmbito da saúde pública (Brasil, 2006; 2015 ; UN, 2016; WHO, 2015).
Tradicionalmente, a fundamentação teórica que apoia essas publicações concebe EV como um conjunto de comportamentos construídos por cada pessoa e, portanto, modificáveis individualmente, consoante as escolhas de cada sujeito. Essa forma de tratamento, ainda vigente, acompanha a abordagem do risco e da normatização dos comportamentos considerados “saudáveis”, ao favorecer uma regulação social que, no nível das práticas cotidianas, responsabiliza sujeitos e populações por seus problemas de saúde (Castiel; Guilam; Ferreira, 2010; Ferreira; Castiel; Cardoso, 2017), desconsiderando a dimensão subjetiva e o contexto sócio-histórico em que tais práticas se inscrevem.
Críticas a essa abordagem de EV decorrem, portanto, por não adotarem olhar complexo sobre o tema, de modo a permitir considerar aspectos sociais, como o modelo econômico e a cultura, incidentes na construção coletiva das práticas. Não obstante, muitas publicações reconhecem expressamente os efeitos que o contexto social pode exercer sobre o comportamento humano (Cockerham, 2014; Ferreira; Castiel; Cardoso, 2017; Menéndez, 1998). Contudo, grosso modo, não se considera EV como constructo derivado de processos dialógicos e históricos, excluindo-se das análises os modos de subjetivação dos quais derivam os diversos EV, assim como os processos de globalização e homogeneização de comportamentos, cada vez mais presentes na hipermodernidade (Cockerham, 2014).
Com vistas a superar tais limitações, o referencial teórico da Promoção da Saúde (PS) nos apresenta o conceito de determinação social, que agrega outros níveis ao modelo centrado no sujeito biológico para pensar a relação entre EV e saúde (Czeresnia, 2009; WHO, 1986). Evidencia fatores econômicos, políticos, ambientais e culturais como determinantes ou condicionantes dos processos de adoecimento e destaca o poder de coletividades “empoderadas” na construção de EV saudáveis (Czeresnia, 2009; Marcondes, 2004). Apesar de esse modelo nos ajudar a superar o discurso da culpabilidade individual centrada na abordagem de risco epidemiológico, e de destacar o papel social do indivíduo na construção de sua realidade cotidiana, ainda dá pouco destaque à subjetividade nas discussões sobre EV.
É nessa perspectiva que nos aproximamos do conceito de habitus, de Pierre Bourdieu (2011), cujo extenso trabalho tem sido reconhecido como contribuição altamente relevante para estudar as expressões socialmente incorporadas de práticas individuais (Assumpção; Golin, 2016; Cockerham, 2005; Montagner, 2006; Setton, 2002). Ancorado em reflexões teóricas da relação conflituosa entre estrutura e agência, e entre estruturas sociais externas e experiências subjetivas, seus estudos nos ajudam a desnaturalizar conceitos e compreender o EV como produto do habitus, colaborando para identificar e questionar as ideologias imbricadas nos modos de viver das pessoas (Bourdieu, 2011).
Tais considerações apresentam implicações nas concepções de saúde que orientam, não somente produções intelectuais, mas formações e práticas em saúde (Czeresnia, 2012). Sendo a atividade física e a alimentação fenômenos a que se emprestam normatizações “saudáveis” e objetos das práxis de diversas profissões da área de saúde, torna-se relevante construir tais aproximações de modo a enfatizar as subjetividades e transformações das condições de vida como centrais nos processos de PS, a fim de favorecer a superação dos discursos normativos e culpabilizantes de mudanças de hábitos, considerados de forma reduzida e redutora (Bagrichevsky; Estevão, 2012; Ferreira; Castiel; Cardoso, 2017).
Histórico no campo teórico: as concepções de estilo de vida e promoção da saúde
O termo EV e seus principais desenvolvimentos derivam do campo das ciências humanas e sociais, tais como Sociologia e Antropologia, a partir de referenciais como o marxismo, a sociologia compreensiva de Weber, a psicanálise e o culturalismo antropológico americano. Para essas ciências, os EV são padrões grupais, sobre os quais a estrutura social exerce influência significativa na produção dos comportamentos (Cockerham; Rütten; Abel, 1997; Menéndez, 1998; Montoya; Salazar, 2010).
Não obstante, no campo da saúde, EV é majoritariamente objeto de estudo da epidemiologia, numa perspectiva restrita e fragmentadora, na medida em que reduz o complexo a variáveis, com vistas a identificar comportamentos de risco e de proteção à saúde e de suas associações com doenças crônicas (Castiel; Guilam; Ferreira, 2010; Menéndez, 1998). A hegemonia desse enfoque favorece compreensões deterministas, fundadas em relações de causa e efeito, nas quais riscos de adoecer são associados preponderantemente às escolhas individuais, oferecendo fundamentos a discursos centrados na culpabilidade individual (Castiel; Guilam; Ferreira, 2010; Menéndez, 1998).
Ao omitir os determinantes sociais de seu modelo de análise, portanto, abstraindo a dimensão político-econômica, essa construção teórica funciona como instrumento ideológico que arrefece reinvindicações de saúde como direito social, fortalecendo a noção de saúde privada e da privatização dos serviços em saúde. Em adição, se distancia das interpretações originais do conceito de EV formulado pelas ciências sociais (Breilh, 2006; Cockerham; Rütten; Abel, 1997; Menéndez, 1998).
Uma parcela do campo da saúde liderada pelas ciências sociais e humanas aponta o referencial da PS como movimento que buscou discutir o EV, desde seus documentos iniciais - como o relatório Lalonde (1974) e sua visão da responsabilização do sujeito pela prevenção de doenças - até a superação desse enfoque com a Carta de Ottawa (WHO, 1986), documento síntese da I Conferência Internacional sobre PS, considerada um marco em sua perspectiva mais contemporânea, ao suplantar a visão preventivista e individualista de PS (Czeresnia, 2009; Marcondes, 2004; WHO, 1986).
Desse modo, a PS avança teoricamente priorizando a saúde, a construção de políticas públicas e de ambientes que favoreçam escolhas saudáveis. Dá destaque ao fortalecimento da ação comunitária, à reorganização dos serviços de saúde com foco na atenção primária, e ao desenvolvimento de habilidades pessoais. Passa a discutir e incorporar valores relacionados à cultura de paz, equidade e justiça (Czeresnia, 2009; WHO, 1986).
Tentando acompanhar a evolução conceitual da PS, EV passa a ser definido pela Organização Mundial de Saúde como o “conjunto de hábitos e costumes que são influenciados, modificados, encorajados ou inibidos pelo prolongado processo de socialização. Esses hábitos e costumes incluem o uso de substâncias tais como o álcool, fumo, chá ou café, hábitos dietéticos e de exercício” (WHO, 2004).
No Brasil, mudanças paradigmáticas em saúde foram fundamentais para a consolidação da reforma sanitária. A política de saúde definida na Constituição de 1988 e regulamentada na Lei Orgânica da Saúde de 1990 avançou na ampliação da noção de saúde considerando como seus determinantes e condicionantes a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais, entre outros (Brasil, 1988 ; 1990 ). O Sistema Único de Saúde legitima essa concepção ampliada ao centrar o modelo de atenção à saúde na sua promoção, em nível comunitário e primário, buscando deslocar a centralidade dos processos de saúde do médico para o cidadão, e dos tratamentos às doenças para a reformulação de ambientes em favorecedores da saúde (Brasil, 1990).
Com grande impulso a partir dos anos 2000, a PS no Brasil se fortalece com a publicação da Política Nacional de PS, em 2006. Nesse momento, a política faz introdução conceitual sobre PS em sua perspectiva mais contemporânea e destaca sete ações prioritárias: alimentação saudável; prática corporal e atividade física; prevenção e controle do tabagismo; redução da morbimortalidade por uso abusivo de álcool e outras drogas; redução da morbimortalidade por acidentes de trânsito; prevenção da violência e estímulo à cultura de paz; e promoção do desenvolvimento sustentável (Brasil, 2006). Mais uma vez, de forma ambígua, comportamentos saudáveis são indicados como aspectos de PS, sem que fiquem claras suas relações com aspectos macroestruturais da sociedade (Rocha et al., 2014). Visando a sobrepujar essa ambiguidade, a recente revisão da Política Nacional de PS publicada em 2014 retoma a discussão dos princípios, valores e diretrizes que devem subsidiar as ações em PS, entendidas como conjunto de estratégias e formas de produzir saúde, e tendo o princípio da equidade como base da distribuição de oportunidades, considerando especificidades individuais e coletivas (Brasil, 2015 ; Rocha et al., 2014).
Não obstante as limitações de qualquer representação esquemática, um modelo visual interessante das inter-relações entre fatores individuais e macrodeterminantes foi proposto por Dahlgren e Whitehead (1991), no qual escolhas, comportamentos e EV estão situados na camada intermediária entre determinantes socioeconômicos, culturais, ambientais e políticos, e aspectos individuais, como idade, sexo e genética (Figura 1). De acordo com o modelo, comportamentos são opções feitas por indivíduos, mas podem ser condicionados por acesso a informações e serviços, pressão dos pares e padrões culturais que moldam as chances de as pessoas serem saudáveis (Buss; Pellegrini Filho, 2007). Desse modo, pensar sobre escolhas e EV nos conduz a um território complexo que ainda demanda análises e, sobretudo, investimentos conceituais.
Figura 1 Os determinantes sociais da saúde: modelo de Dahlgren e Whitehead
Na perspectiva de enriquecer a reflexão sobre EV e PS, e buscando dialogar com e pôr em diálogo as duas abordagens vigentes - uma que responsabiliza o indivíduo pela adoção de comportamentos não saudáveis e outra que destaca a interação das pessoas com o contexto na definição dos comportamentos, hábitos e EV (Cockerham, 2005; Gómez, 2013) - apresentamos a seguir fundamentos que nos ajudam a fortalecer a visão de que, para além da materialização de uma narrativa especial de autoidentidade, o EV é construído social e coletivamente (Cockerham, 2005).
Habitus: uma abordagem complexa para a compreensão do estilo de vida
Habitus é um conceito central no pensamento do sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002) em seus estudos da relação indivíduo-sociedade, nos quais exerce forte poder explicativo e analítico. Cabe reconhecer a origem aristotélica de hexis e o longo percurso no pensamento ocidental, relacionado ao caráter moral que orienta os sentimentos, desejos e condutas, e a contribuição de autores clássicos da sociologia, como Durkheim, Marx e Weber para sua abordagem (Wacquant, 2007). Consoante Wacquant (2007), apenas no século XVIII o termo habitus foi traduzido para o latim por São Tomás de Aquino, e incorporado na Summa Theologiae, assumindo sentido de disposição durável e suspensa.
Segundo Bourdieu (2009, p. 87), o habitus pode ser entendido como
sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los.
O habitus deriva de condições de existência particulares. Assim, é, a um só tempo, individual e coletivo, significando que pode gerar e unificar práticas coletivas com características peculiares, resultando na aproximação aqui focalizada, em um EV único. Assim, EV pode ser compreendido como produto do habitus historicamente construído mediante as experiências que são modeladas e incorporadas “inconscientemente”, a partir das relações sociais que integram as condições de vida e a posição dos agentes (Wacquant, 2002). Noutras palavras, habitus é produtor de ações, ao tempo em que ele próprio é introjetado. Atualizando-se nas práticas e nas representações, ou seja, nos planos objetivo e subjetivo.
Ao analisar a trajetória intelectual de Bourdieu, percebemos centralidade na teoria da prática e foco na análise dos mecanismos de dominação da produção de ideias e da gênese das condutas. Na perspectiva do conhecimento que Bourdieu nomeia como praxiológico, o “objeto não é somente o plano das relações objetivas […] mas também as relações dialéticas entre essas estruturas e as disposições estruturadas nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las” (Ortiz, 1983, p. 40). Sua obra apresenta os conceitos de campo, habitus e capital, como conceitos-chave para a mediação entre agente social e sociedade (Bourdieu, 2011). Para os fins deste artigo, nos aproximamos dos contributos de Bourdieu, particularmente do conceito de habitus, para favorecer a compreensão da “determinação social dos EV”, em sintonia com a determinação social da saúde, ideário tão caro à PS.
A concepção de habitus, dado seu caráter dialético, converge a perspectiva pessoal do “livre-agir”, bastante disseminada e aceita na contemporaneidade, com a percepção da influência do contexto nas decisões e na reprodução dos comportamentos, considerando que a vontade do “livre-agir” mantém relações com os ambientes, também chamados de “estruturas estruturantes”, que podem ser favoráveis ou desfavoráveis a determinadas escolhas e mudanças de comportamento (Bourdieu, 2011), o que relativiza esses atos quanto à autonomia que desfrutam. Em acréscimo, é uma premissa que deve fundamentar o desenho de ações em saúde, não raro, descontextualizadas culturalmente na diversidade dos territórios e nas quais se observa a exclusão dos sujeitos, ou melhor, da intersubjetividade que não pode estar ausente nas políticas de saúde (Caliman; Tavares, 2013; Castiel; Sanz-Valero; Vasconcellos-Silva, 2011).
Também é importante considerar que a proximidade entre determinados grupos sociais corrobora para que tenham necessidades objetivas operadas pelo mesmo habitus, podendo apresentar semelhanças nos discursos e nos comportamentos, o que resulta em EV distintos e distintivos entre grupos ou populações (Bordieu, 2011). O conceito de habitus auxilia a compreensão do sentido de homogeneidade de alguns comportamentos e percepções de saúde de grupos que tenham compartilhado histórias de vida, mas Setton (2002) destaca a compreensão das complexidades e elementos cambiantes nas vivências em saúde que integram o EV dos agentes sociais indicando que habitus é um sistema em construção e mutação.
Assim, para compreender o habitus é necessário analisar a trajetória de socialização e subjetivação dos indivíduos ao longo da vida, e compreender práticas sociais a partir da integração histórica entre passado e presente. Ele se vincula a um processo socializador de longa duração, iniciado no que se denomina “socialização primária”, tendo a dimensão inconsciente, no sentido de adesão subliminar e isenta de reflexividade, como um de seus pilares (Setton, 2002). Em adição, é fundamental a clareza de que outros conceitos como o capital e sua desigualdade de distribuição, e o campo e o espaço social motivam práticas sociais, como bem explicitou Bourdieu (2011) em sua “teoria da prática”, assim como a tradição crítica. O espaço social é “essa realidade invisível, que não podemos mostrar nem tocar e que organiza as práticas e as representações dos agentes’’ (Bourdieu, 2011, p. 24).
Montagner (2006) frisa o caráter inovador do conceito, que possibilita a mediação teórica entre as estruturas e o contexto histórico em que estão inseridos os agentes sociais, e apresenta que o habitus funciona no limite de três lógicas distintas: a da retenção, que diz respeito à hexis corporal, o capital físico acumulado ao longo do tempo e que singulariza formas corporais e posturas que marcam o conjunto da trajetória do indivíduo ou de grupos de indivíduos; a de mediação, que se revela na visão de mundo que cada indivíduo forma a partir de sua vivência cotidiana; e a de classificação, na qual indivíduos projetam suas singularidades marcadas pela trajetória social, por sua vez construída em espaços sociais permeados por relações desiguais entre indivíduos que possuem diferentes capitais sociais. O conceito de campo, transversal à obra de Bourdieu, cuja análise não será aqui aprofundada, esclarece a acumulação de diferentes modalidades de capital.
A partir dessas concepções, alguns autores avançam na discussão das relações entre EV e habitus. Para fins de ilustração, citamos William Cockerham (2005) que combina a noção de habitus com a teoria clássica de Max Weber para analisar o fenômeno do EV a partir do pressuposto da relação dialética entre escolhas e oportunidades de vida. Para o autor, EV é formado por padrões coletivos de comportamento relacionados à saúde com base em escolhas de opções disponíveis para pessoas de acordo com suas chances de vida. Os humanos têm a capacidade de escolher seu EV, mas suas escolhas são limitadas por suas condições de vida. Breilh (2006, p. 46) vai além e afirma que “essa relação dinâmica entre modo de vida, EV e habitus, enraíza-se em uma poderosa influência dos gostos e opções de vida cotidiana, os quais, sempre dentro da margem das possibilidades e realidades factíveis do modo de vida, contribuem para determinar os estados orgânicos e as condições geno-fenotípicas”.
Considerações sobre habitus, estilo de vida e promoção da saúde atualmente
Já se passaram trinta anos desde que a Carta de Ottawa (WHO, 1986) adotou definição avançada de PS, considerando a perspectiva ampliada do processo saúde-doença-cuidado para além do enfoque preventivo e da “culpabilidade” individual. Diversas políticas públicas e programas reconhecem e preveem a criação de ambientes favoráveis à saúde, que atendam às necessidades de saúde através de medidas intersetoriais, do empoderamento comunitário e do desenvolvimento de habilidades pessoais favoráveis à saúde em todas as etapas da vida.
No entanto, a hegemonia de um modelo cartesiano e biomédico no setor saúde e os interesses a que se vincula segue dificultando a tradução dessa teoria, gerando documentos ambíguos e por vezes contraditórias com efeitos não apenas no plano teórico, mas na materialidade do sistema de saúde brasileiro, impedindo ou atrasando a transição das práticas em saúde para modelos mais integrais e participativos (Ceccim; Feuerwerker, 2004; Czeresnia, 2012). A fragmentação dos comportamentos e sua classificação como “fatores de risco” podem estimular mudanças nos comportamentos individuais, mas limita a compreensão em termos de EV. Análises e intervenções, por exemplo, sobre comportamentos de sedentários e obesos não devem ser reduzidas ao risco em si; devem considerar também as condições em que os sujeitos (re)produzem suas vidas (Castiel; Sanz-Valero; Vasconcellos-Silva, 2011; Menéndez, 1998) e as modulações subjetivas atinentes ao corpo e à alimentação.
Ao menos parte do problema reside na produção do conhecimento e na formação profissional em saúde, quando baseada na visão causal unilinear e numa compreensão da relação entre EV e PS que desconsidera a determinação social desses fenômenos (Ceccim; Feuerwerker, 2004; Chiesa et al., 2007; Haddad et al., 2010). Não se trata de negar o “livre-agir” que compõe o EV, mas de problematizá-lo, colocá-lo em perspectiva ante discursos que se constroem a partir de leituras simplificadoras.
Na contemporaneidade não faz sentido admitir análises que defendem a autonomia dos indivíduos sobre seus comportamentos de forma desconectada da realidade socioeconômica, em que mudanças de hábitos seriam, antes de tudo, fruto de decisões de foro íntimo e de “força de vontade”, não raro, desdobrando-se em atitudes geradoras de estigma no cotidiano da produção do cuidado (Caliman; Tavares, 2013; Castiel; Guilam; Ferreira, 2010). É preciso reconhecer que o EV atual é afetado por várias transformações sociais, desde a multiculturalização do conteúdo ofertado até o consumo de massa, ambos estimulados pela globalização e pelas novas tecnologias (Bauman, 2003; Cockerham, 2014).
Produções científicas hegemônicas na saúde ajudam a construir narrativas que culpabilizam indivíduos e privatizam soluções para problemas advindos de EV não saudáveis (Castiel; Sanz-Valero; Vasconcellos-Silva, 2011). Nesse cenário, as estratégias de educação em saúde e PS têm eficácia limitada, uma vez que a saúde e o EV da população, e a própria formação profissional em saúde, ficam sujeitas à mercantilização (Gómez, 2013). Isso traz à tona a relevância das discussões conceituais sobre “ser saudável”; do papel da ciência na produção desses conhecimentos; e da submissão da ciência e da política às leis do mercado (Cockerham, 2005; Caliman; Tavares, 2013).
A abordagem do risco individual favorece pessoas de classes socioeconômicas mais privilegiadas, com melhor nível educacional e fácil acesso aos bens de consumo. Por isso, é imperativo utilizar um paradigma mais integral, ético e moral, que atenda às necessidades das classes menos privilegiadas (Gómez, 2013). Políticas públicas em saúde devem, antes de tudo, acontecer por meio de ações coordenadas que considerem o princípio da equidade da distribuição de renda, das políticas sociais, e de acesso aos bens e serviços (Buss; Pellegrini Filho, 2007; Marcondes, 2004).
Este ensaio busca, portanto, recuperar um conceito que expõe algumas raízes históricas, epistemológicas e intrinsecamente políticas das tensões e lacunas em relação às teorias que embasam discussões como as que se desdobram sobre EV e PS, com extensos debates na literatura. Nessa perspectiva, a aproximação do campo da saúde ao conceito de habitus pode representar mais um subsídio para a compreensão sobre como condicionantes exteriores influenciam na escolha dos comportamentos das pessoas; quais rotinas pessoais apresentam as características específicas de um grupo ou classe social e como estão sendo formadas as percepções sobre o EV e a saúde. Ela também nos ajuda a pensar a relação e as mediações entre condicionamentos sociais exteriores e subjetividade dos sujeitos (Setton, 2002).
A reflexão realizada nos limites deste espaço pode representar heurística para compreender os padrões complexos e profundamente enraizados de determinados EV e comportamentos que cotidianamente são associados a problemas prevalentes na saúde pública e que são objetos das produções científicas e das práticas realizadas pelo campo da saúde. Nesse percurso ficam claras as diversas etapas e facetas envolvidas na construção de hábitos saudáveis e as dificuldades de modelos teóricos capazes de desvendar a complexidade e superar as dificuldades presentes na abordagem desse desafio no campo da saúde coletiva.
Compreender o EV como habitus significa reconhecer que o hábito tem um componente dinâmico e dialético, portanto, mudanças podem ser acionadas de diversas formas: os agentes sociais podem adotar novos comportamentos que contribuirão para a melhor gestão do seu EV e de suas condições de saúde (Setton, 2002), e que os processos de subjetivação não podem ficar fora do modelo.
Se quisermos realmente modificar as práxis em saúde sobre o EV, é imperativo que pesquisadores, professores, estudantes, profissionais e formuladores de políticas públicas em saúde compreendam a complexidade do fenômeno. Há referenciais teóricos que nos auxiliam, no campo da saúde a visualizar com mais acurácia os múltiplos aspectos que cercam a formação do habitus, notadamente ao exercermos processos de produção do conhecimento, e de “diagnóstico e prescrição” tão presentes nas práticas em saúde.
Este ensaio, longe de se pretender exaustivo, procurou sistematizar algumas aproximações entre os conceitos de EV, PS e habitus, como constructo possível para favorecer a construção da saúde em sua perspectiva individual e coletiva, de forma sustentável e duradoura. Procurou também indicar certas tensões subjacentes às estruturas que dificultam o avanço desses processos.
1 Apoio financeiro: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí (Fapepi).
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Francilene Batista Madeira Universidade Estadual do Piauí. Centro de Ciências da Saúde. Teresina, PI, Brasil. E-mail: [email protected]
Dulce Almeida Filgueira Universidade de Brasília. Faculdade de Educação Física. Brasília, DF, Brasil. E-mail: [email protected]
Maria Lúcia Magalhães Bosi Universidade Federal do Ceará. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Fortaleza, Brasil. E-mail: [email protected]
Júlia Aparecida Devidé Nogueira Universidade de Brasília. Faculdade de Educação Física. Brasília, DF, Brasil. E-mail: [email protected]
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© 2018. This work is published under https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ (the “License”). Notwithstanding the ProQuest Terms and Conditions, you may use this content in accordance with the terms of the License.
Abstract
Estilos de vida (EV) saudáveis são interpretados hegemonicamente como um conjunto de comportamentos individuais capazes de favorecer a saúde, entendida como fenômeno eminentemente biológico. O referencial teórico da Promoção da Saúde (PS), contudo, acrescenta o conceito da determinação social às discussões acerca das relações entre EV e saúde. Visando a favorecer a superação do modelo de culpabilidade individual centrada na abordagem de risco epidemiológico nas discussões sobre EV, recuperamos, na obra do sociólogo Pierre Bourdieu, o conceito de habitus. O propósito deste artigo é exercitar uma síntese das abordagens que, historicamente, permearam os discursos sobre EV e PS, introduzindo o conceito de habitus como mediador, o qual possibilita uma reflexão sobre o tema a partir das condições sociais existentes e das ações individuais historicamente construídas. A relevância dessa reflexão reside no fortalecimento conceitual do ideário da PS, e no favorecimento de ações integrais, inclusivas, participativas e de empoderamento social, como contraponto a ações prescritivas focadas na prevenção ou controle de doenças, ainda marcantes nas práxis em saúde.