Introdução
A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda, desde 2011, a utilização do Near Miss Materno (NMM) como indicador de qualidade da assistência obstétrica (Souza et al., 2011) de uma instituição. O NMM ocorre quando uma mulher sobrevive, em virtude de atenção adequada dos serviços de saúde, após complicações clínicas graves que colocaram sua vida em risco durante a gravidez, parto ou puerpério (Pattinson; Hall, 2003). A extensão do “modelo dos três atrasos” (Thaddeus; Maine, 1994), inicialmente associado à mortalidade materna, introduz para o universo do NMM (Pacagnella et al., 2014) o debate sobre a peregrinação da gestante como fator associado aos desfechos desfavoráveis.
O modelo dos três atrasos propõe uma sequência estruturada para as demoras na assistência, em três fases: demora relacionada às pacientes; demora relacionada à acessibilidade ao serviço de referência; demora relacionada aos cuidados médicos (Thaddeus; Maine, 1994). A peregrinação de gestantes em busca de assistência ao parto é um dos componentes da segunda demora em intercâmbio com a terceira, porque diagnóstico e início da terapia adequada em uma instituição de menor porte são cruciais para o encaminhamento oportuno para a unidade de referência em casos de necessidade (Combs Thorsen; Sundby; Malata, 2012 ; Echoka et al., 2014 ; Lire et al., 2017 ; Mgawadere et al., 2017). Entende-se por peregrinação o fluxo de gestantes por pelo menos dois serviços em busca de atendimento obstétrico adequado no momento do parto (Menezes et al., 2006 ; Mgawadere et al., 2017 ; Andrade; Vieira, 2018). É importante destacar que, se uma gestante com complicação grave demora a chegar no hospital apto para atender sua demanda, sua probabilidade de morte aumenta, mesmo que a instituição de destino seja de nível terciário, com equipamento adequado e equipe qualificada (Menezes et al., 2006 ; Lotufo et al., 2012 ; Andrade; Vieira, 2018).
No Brasil, em 2011 , normatizada pela Portaria nº 1.459, de 24 de junho, surge a Rede Cegonha (RC), com o objetivo de ampliar o acesso e melhorar a qualidade da assistência ao pré-natal, parto, puerpério e à criança com até 24 meses de vida. Sua integração às Rede de Atenção em Saúde (RAS) visa a articulação dos serviços de saúde, possibilitando sua atuação cooperativa e interdependente com base em seus níveis de complexidade, aumentando a eficiência dos processos de assistência (Arruda et al., 2015). Contudo, apesar dos inegáveis avanços obtidos e da importância das RAS e da RC, superar a fragmentação da assistência à saúde materno-infantil ainda é um desafio (Freitas; Araújo, 2018).
Está bem estabelecido que informações detalhadas sobre os problemas enfrentados são fundamentais para a formulação de políticas e para a melhoria da qualidade da assistência obstétrica (Hogan et al., 2010). Desse modo, partindo do pressuposto que as trajetórias das gestantes fornecem corpo e materialidade para os lapsos nas redes de assistência, emergem os questionamentos: “quais os caminhos percorridos por gestantes e puérperas que evoluíram para quadros de NMM, desde a busca por assistência até a chegada à unidade de saúde de referência?”; “existe uma RAS hierarquizada e um serviço de regulação para organizá-la, por que a peregrinação das gestantes ainda é uma realidade?”.
Assim, objetivou-se neste estudo identificar os padrões relacionados a trajetória de mulheres que evoluíram para NMM, desde sua chegada em um primeiro serviço de assistência até sua admissão em uma maternidade terciária. Esta pesquisa se justifica diante da necessidade de identificação dos lapsos nos processos da rede de atenção à gestante, fornecendo subsídios para uma melhora efetiva da assistência.
Metodologia
Trata-se de um estudo misto, que adotou o desenho sequencial exploratório realizado nas três maternidades terciárias da Região Metropolitana de Fortaleza, no Ceará, entre 2010 e 2019. Dessa forma, cabe uma breve contextualização sobre a estrutura da assistência à saúde materno-infantil do estado.
O Ceará é o oitavo estado mais populoso do Brasil, com uma população estimada em 2017 de 9.020.460 habitantes, dos quais 75,5% residem em áreas urbanas e 24,9% em áreas rurais. Em termos de regionalização, o estado organiza-se em cinco macrorregiões - Fortaleza, Sobral, Cariri, Sertão Central e Litoral Leste Jaguaribe. Segundo o Plano Diretor de Regionalização das Ações e Serviços de Saúde do Ceará - PDR (2014), a macrorregião de Fortaleza, com seus 19 municípios, albergava em 2014 uma população de 4.560.149, correspondendo a 51,9% da população do estado no período. A Figura 1 mostra as macrorregiões do Ceará, as regionais de Fortaleza e a localização das maternidades terciárias, identificadas por triângulos vermelhos.
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Figura 1 Mapa do estado do Ceará e suas macrorregiões, com destaque para as regionais de Fortaleza e localização das maternidades terciárias
Tendo aderido ao Plano de Ação Regional da Rede Cegonha, o Plano Estadual de 2012-2014 inseria 11 municípios nessa política, cobertos por 20 hospitais, 10 dos quais encontravam-se em Fortaleza. Todos os municípios se comprometeram com a realização de partos de risco habitual. Embora dois tenham se comprometido com o suporte a partos de alto risco, estes são realizados, ainda hoje, em apenas três hospitais do município de Fortaleza (Ceará, 2012).
Em 2015, o Governo do estado do Ceará iniciou o Programa Nascer no Ceará (NC), visando reestruturar a linha de cuidado materno-infantil a partir da atenção à gestante de alto risco e da garantia da assistência qualificada a gestantes e recém-nascidos nos 184 municípios cearenses, por meio da regionalização e descentralização das ações e serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). Em suas etapas iniciais, o NC realizou o diagnóstico situacional da assistência à saúde materno-infantil, elaborou protocolos de atenção à saúde da gestante que contextualizavam os serviços de referência e de regulação, qualificou profissionais médicos e enfermeiros tanto em questões técnicas como nas dinâmicas da RAS e apresentou uma proposta de reorganização dos serviços, tendo por base o matriciamento e a regionalização1. Desde 2019, contudo, o programa está paralisado e suas propostas de reestruturação não foram implementadas. Cabe ressaltar que essa interrupção teve como contexto a emergência sanitária atrelada à pandemia da covid-19 e que em 2023 teve início um novo governo. Até a data de escrita deste manuscrito, as atividades do NC não foram retomadas, embora o programa não tenha sido oficialmente suspenso.
A etapa quantitativa da pesquisa consistiu em um estudo transversal e analítico de série histórica, realizado a partir da análise de prontuários e registros de internação de mulheres assistidas em três maternidades terciárias da Região Metropolitana de Fortaleza, no Ceará, entre os anos de 2010 e 2019.
Foram analisados 3.352 prontuários. Adotou-se como critério de inclusão ser gestante ou puérpera internada nas maternidades participantes em decorrência da gestação. Foram excluídos os prontuários que estavam indisponíveis e os de mulheres que ainda estavam internadas durante o período da pesquisa. Os dados foram obtidos por meio da análise de prontuários e registros de internação. Utilizou-se o instrumento específico preconizado pela OMS para a identificação das mulheres que preenchiam os critérios para NMM (WHO, 2011). Foram coletadas, ainda, variáveis sociodemográficas (idade, cor/etnia, situação conjugal e escolaridade) e dados sobre a gestação atual, intercorrências e complicações e modo de chegada à maternidade de referência.
Do total analisado, 1.703 mulheres passaram por pelo menos uma instituição de saúde antes de chegar a um dos três serviços terciários integrantes da pesquisa. Do seu prontuário, buscou-se identificar demoras relativas a três esferas: no diagnóstico na instituição de origem, no início da terapia na instituição de origem (após o diagnóstico) e na transferência. Estes últimos dados foram extraídos de bilhetes ou fichas de encaminhamento anexadas aos prontuários, do documento síntese da internação, das anamneses realizada na admissão - geralmente por acadêmico de medicina - e das admissões realizadas pela enfermagem.
Os dados foram analisados no IBM SPSS v. 25. A análise exploratória foi descrita com frequências e seus respectivos intervalos de confiança (IC95%). As variáveis quantitativas foram analisadas por meio do teste não paramétrico de Wilcoxon. Para avaliar associação das variáveis independentes aos desfechos caracterizando Near Miss (=1) e não Near Miss (=0), utilizou-se o teste de hipótese (exato de Fisher) e odds ratio (OR), adotando-se um nível de confiança de 95%.
Neste desenho, os dados quantitativos foram coletados e analisados antes dos dados qualitativos, que complementaram e contribuíram para a compreensão dos fenômenos analisados na primeira etapa (Creswell, 2007).
Para a etapa qualitativa, participaram 14 mulheres puérperas que preencheram critérios para NMM e estiveram internadas nas maternidades participantes entre janeiro e setembro de 2020. Para a coleta dos dados, foi utilizada a técnica de entrevista narrativa autobiográfica proposta pelo sociólogo Fritz Schütze (1983), que pode ser organizada em três etapas. Na primeira etapa, é solicitado à participante que forneça um relato espontâneo a partir de uma pergunta gerativa (Jovchelovitch; Bauer, 2002). Nesta pesquisa, adotamos o questionamento: “Estou pesquisando histórias de vida de mulheres que apresentaram complicações graves durante a gravidez, o parto ou após o parto. Para isso, peço que você conte a sua história do modo que achar conveniente. Me conte todo seu percurso, desde o seu pré-natal até a sua internação na unidade de terapia intensiva (UTI) e o que aconteceu depois da sua alta. Você pode levar o tempo que quiser, começar e terminar sua história como desejar, contando sua vida de modo que eu compreenda quem você é. Para que você conte sua história livremente, eu não vou interrompê-la. Você deve me dizer quando a história acabou e somente depois eu farei algumas perguntas para esclarecer o que não entendi bem. Certo?”. Na sequência, foram realizadas perguntas que visavam esclarecer ambiguidades, dúvidas e lapsos narrativos (“perguntas imanentes”). Na terceira etapa, desligou-se o gravador e realizou-se perguntas que demandavam da informante racionalizações e teorizações acerca do evento em questão (“perguntas exmanentes”) (Schütze, 1983; Jovchelovitch; Bauer, 2002).
Os áudios foram transcritos logo após cada entrevista, agregando-se ao material as notas obtidas com as perguntas exmanentes. Após as transcrições, os textos foram estruturados em narrativas, que foram reapresentadas a cada participante a fim de validar as informações e corrigir lapsos e imprecisões. Concluindo a construção de cada narrativa, iniciou-se a organização dos dados pela análise formal, como proposto por Schütze (1983). Os dados foram primeiramente divididos em material indexado (conteúdo racional e concreto, que pode ser ordenado cronologicamente) e não indexado (conteúdos subjetivos, como juízos de valor, sentimentos e reflexões) (Jovchelovitch; Bauer, 2002). O conteúdo indexado foi organizado de modo a reconstituir as trajetórias individuais, e o material não indexado foi incorporado às trajetórias e organizado em núcleos de sentido para fins de análise da saturação. A cada narrativa, os dados foram organizados de modo a permitir comparações entre as trajetórias e os núcleos de sentido emergentes, possibilitando a identificação de regularidades e contrastes (Jovchelovitch; Bauer, 2002). Considerou-se a saturação dos dados a partir do momento em que as regularidades se tornaram a regra.
Na sequência, os dados qualitativos foram interpretados em conjunto com os dados quantitativos. No final, foi construído um esquema gráfico que sintetiza os padrões encontrados em associação ao segundo atraso e à peregrinação de mulheres em situação de NMM. A fim de manter o anonimato, as participantes foram identificadas por nome fictício. Os três hospitais referência foram nomeados H1, H2 e H3. Os demais hospitais receberam identificações aleatórias com outras letras do alfabeto.
O projeto desta pesquisa obteve aprovação no Comitê de Ética da Universidade de Fortaleza com o número 027/2009, possuindo como patrocinadora a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), por meio do programa pesquisa para o SUS, chamada 01/2017.
Resultados
Das 1.703 mulheres que passaram por pelo menos um serviço antes de chegar à maternidade de referência, 7,6% evoluíram para NMM. A maioria era negra (54,7%), com idades entre 20 e 29 anos (47,4%), com ensino fundamental completo (40,9%) e residia com companheiro(a) (61,7%) (Tabela 1).
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Tabela 1 Perfil das participantes da etapa quantitativa, Fortaleza, 2010 a 2019
Participaram da etapa qualitativa 14 mulheres, cujas características estão sumarizadas na Tabela 2.
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Tabela 2 Características das participantes da etapa qualitativa, Cidade, 2010 a 2019
A Tabela 3 contém as chances de NMM associadas a demoras entre a chegada na primeira instituição e a chegada na instituição terciária entre as mulheres que passaram por pelo menos uma transferência. A demora no diagnóstico na instituição de origem aumenta em 3,3 vezes o risco em relação ao diagnóstico oportuno (IC 95% 2,2-5,2), a demora no início do tratamento aumenta em 3,1 vezes o risco em relação ao início oportuno (IC 95% 2,0-4,8) e a demora na referência do caso aumenta em 3,7 vezes (IC 95% 1,4-2,0) o risco em relação à referência oportuna.
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Tabela 3 Risco de desenvolver NMM associados a demoras na instituição de origem entre mulheres que passaram por pelo menos uma transferência e aos modos de chegada ao serviço terciário
As narrativas elaboradas contribuíram para a compreensão dos eventos encontrados na etapa quantitativa. A demora no diagnóstico na instituição de origem, por exemplo, ocorreu mesmo em casos cujo risco e conduta já são pacíficos na literatura, como os de pré-eclâmpsia e hemorragia pós-parto, não podendo justificar-se pela falta de estrutura. As narrativas abaixo trazem relatos semelhantes de mulheres atendidas em serviços e municípios diferentes:
A pressão estava 15x10. […] Não me deram remédio no soro, não. Disseram que era nervoso meu e que ia baixar. (Joana, 23 anos, branca, procedente de Guaiuba).
Quando eu cheguei no hospital, a pressão estava 14x9. A enfermeira anotou na ficha, mas o médico não viu ou não ligou, porque ninguém disse nada. Eu fiquei lá em trabalho de parto, até que a pressão subiu mais. Eu ouvi a enfermeira falando em 16 de pressão, mas o médico disse que era da dor. Só quando subiu pra 18 foi que me deram remédio pra baixar a pressão. (Jurema, 24 anos, indígena, procedente de Caucaia)
Eu estava sangrando muito. Minha mãe avisou um monte de vezes, mas disseram que era normal. […] De madrugada, eu desmaiei quando tentei me levantar. Eu estava branca. (Elisa, 15 anos, branca, procedente de Maracanaú)
Eu fiquei sangrando. Eu dizia pra enfermeira, mas ela dizia que era normal. De madrugada, eu comecei a sangrar mais. Fui me levantar pra ir no banheiro e desmaiei. (Lúcia, 20 anos, branca, procedente de Pacajus)
A demora no diagnóstico também ocorre por transferência da responsabilidade pela assistência, culminando em múltiplas transferências entre instituições, como narra Suelen, uma mulher operária em uma indústria têxtil, que reside com o marido, os três filhos e a sogra:
Foi tudo muito tranquilo na cesárea […]. O problema começou depois. Com dois dias eu estava com muita dor, muita dor mesmo. Fui no hospital em que fiz a cesárea e disseram que era normal. Aí eu fui pra segunda maternidade, mas também disseram que era normal. Eu voltei pra casa e comecei a ter febre. Meu marido achou por bem vir comigo logo pra Fortaleza. Fomos pro hospital do plano da empresa, mas o plano estava na carência. Aí eu fui pra maternidade mais perto. Lá disseram que eu tinha que ter ido onde eu fiz a Cesárea porque era complicação dela. Nós voltamos pro primeiro hospital, no meu município, e disseram que era normal. Aí a gente foi pro segundo hospital de novo porque não tinha condição. (Suelen, 39 anos, negra, procedente de Maranguape)
A transferência de responsabilidade, contudo, também pode ocorrer entre setores da mesma instituição, em um padrão circular, como nos mostra a sequência da narrativa de Suelen:
Chamaram o cirurgião pra ver. Ele veio, me examinou, mas não disse nada. Eu sei que eu ainda fiquei lá dois dias, indo do cirurgião pro obstetra e do obstetra pro cirurgião e terminei tendo uma sepse. Só aí que me mandaram pra cá. Aqui me operaram e eu estava era com apendicite. A barriga era só o pus. (Suelen, 39 anos, negra, procedente de Maranguape)
Esse processo de transferência por múltiplos serviços e/ou intersetorial coloca a paciente em uma situação em que nenhum profissional se responsabiliza por seus cuidados. A fala de Suelen evidencia ainda a falta de uma comunicação efetiva entre profissionais e pacientes, contribuindo para os atrasos diagnósticos e para a peregrinação. As mudanças de equipe durante os plantões fazem com que a cada retorno ao setor anterior, a paciente seja avaliada por um novo profissional, que chega a conclusões semelhantes ao anterior sem investigar a fundo o problema:
Toda vez que eu voltava era um médico novo. Um cirurgião novo e um obstetra novo. Eu já tinha decorado o que cada um ia falar, até a hora em que eu já tava fraca demais pra me lembrar de qualquer coisa. (Joana, 23 anos, branca, procedente de Guaiuba)
Mesmo após o diagnóstico, a demora para iniciar o tratamento ainda pode ocorrer, como nos mostram as narrativas de Joana (que já havia passado pelo atraso no diagnóstico) e Raquel (oportunamente diagnosticada com pré-eclâmpsia). Joana, 23 anos, branca, solteira, mora com sua mãe, irmã e um sobrinho, e trabalha como faxineira, ajudando a mãe. Raquel (32 anos, negra, solteira) mora com seus dois filhos e trabalha em uma lanchonete. Ambas relatam não terem recebido medicação endovenosa ou intramuscular, que são as vias de aplicação do sulfato de magnésio (medicação indicada para prevenção de eclâmpsia):
Quando a pressão chegou a 16x10 colocaram um remédio embaixo da língua pra baixar a pressão, mas não colocaram remédio no soro. (Joana, 23 anos, branca, procedente de Guaiuba)
Eu cheguei e a pressão estava 17x10. Disseram que era pré-eclâmpsia, que iam dar um comprimido pra baixar a pressão. Não colocaram soro. Eu fiquei esperando a vaga em um hospital com mais estrutura, mas a vaga demorou muito. Eu tive duas convulsões no hospital e tive outras na ambulância vindo pra cá. (Raquel, 32 anos, negra, procedente de Fortaleza)
O relato de Cícera, que apresentou complicações hemorrágicas, corrobora a narrativa anterior sobre o atraso na instituição da terapêutica. Cícera é uma mulher de 19 anos, indígena, procedente de Caucaia, solteira, que mora com a mãe e trabalha com a irmã em um comércio informal:
Eu fiquei só no soro. Era só soro, não tinha remédio, até que o plantonista clínico ligou para o obstetra e ele mandou colocar um remédio pra parar o sangramento. Isso demorou, porque era de madrugada e obstetra demorou a atender. (Cícera, 19 anos, indígena, procedente de Caucaia)
Mesmo após a decisão de referenciar a paciente para um hospital apto a realizar a assistência necessária, esta pode ser atrasada por diferentes fatores. Seguindo a narrativa de Cícera, evidenciamos três deles: a dificuldade de integração entre uma assistência privada precarizada e o SUS, a dificuldade de transporte e a utilização desvirtuada de serviços de emergência para remoção:
Meu parto foi particular, porque eu queria cesárea e fiz um pacote. Mas eles não conseguiam me transferir pelo SUS e não tinha mais remédio pra parar o sangramento. Também não tinha ambulância lá na hora. Aí chamaram o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), mas a ambulância demorou e chegou já de manhã. (Cícera, 19 anos, indígena, procedente de Caucaia)
A dificuldade de transporte também se associa a falhas atitudinais culturalmente naturalizadas em algumas localidades, como nos fala Clara (22 anos, branca, solteira, procedente de Cascavel), sem atividade laboral ou acadêmica no período da pesquisa: “A ambulância não estava lá. […] Lá é comum o motorista ficar com a ambulância em casa e só vir se for chamado”.
A falta de vagas nos serviços de referência também emerge como fator associado ao atraso na transferência, como observamos na narrativa de Vera (37 anos, branca, casada, procedente de Fortaleza), operadora de telemarketing. Apesar do diagnóstico oportuno, a conduta foi adiada em decorrência da indisponibilidade de vagas em instituições de referência. No relato abaixo, a instituição de origem é um hospital secundário, que estava com a equipe incompleta. Segundo esclarecimentos de Vera, o hospital contava com apenas um médico obstetra no dia de sua internação e não havia pediatra durante parte do dia:
Disseram que a pressão estava alta e que meu parto era de risco. Eu fiquei lá na emergência, tomando o remédio na veia pra baixar a pressão e não ter convulsão. […] Minha mãe perguntou por que estava demorando pra fazerem o parto e a enfermeira disse que estavam esperando vaga pra outro hospital. […] Eu fiquei na emergência esperando essa vaga bem um dia todo. […] Aí complicou o coração do bebê (cardiotocografia mostrando sofrimento fetal). […] Fizeram a cesárea, correndo. […] Eu tive uma convulsão na hora da cirurgia e não lembro mais. Quando eu acordei, já estava na UTI. (Vera, 37 anos, branca, procedente de Fortaleza)
Tanto Vera quanto Jurema tiveram seus quadros agravados pela dificuldade de vagas nos serviços de referência. Contudo, nem todas as pacientes chegam às instituições terciárias via regulação. Transferências irregulares podem ser realizadas devido à falta de vagas ou demora na resposta da regulação, considerando-se a urgência do caso:
Iam me mandar pro H1, mas lá não tinha vaga. […] Então decidiram me mandar pra outro mesmo sem ligar. Disseram que como estava grave, eles não iam poder me voltar […]. (Joana, 23 anos, branca, procedente de Guaiuba)
Essa tentativa de transferência irregular, contudo, não reduziu o risco de NMM, como mostra a Tabela 3, que também apresenta o risco associado aos diferentes modos de chegada das pacientes nos serviços terciários pesquisados. Os riscos enfrentados pelas pacientes que passaram por pelo menos um serviço antes de chegar à maternidade de referência foram calculados em relação àquelas que procuraram diretamente uma das três instituições participantes da pesquisa. A única modalidade que apresentou risco aumentado de desenvolvimento de NMM foi exatamente a transferência intra-hospitalar não programada (OR=4,8; 3,1-7,4).
A sequência da narrativa de Joana contribui para a compreensão de alguns dos lapsos relacionados a essa alternativa de transferência não regulada:
[…] Disseram que não iam me voltar, mas voltaram, né? A ambulância foi primeiro pra um hospital. Eu nem desci lá. Tava lotado. […] Aí ele trouxe a gente pro hospital H3. Aqui eu já estava ruim. Eu tive duas convulsões na ambulância. (Joana, 23 anos, branca, procedente de Guaiuba).
Joana acumulou fatores de demora em sua peregrinação: seu diagnóstico de pré-eclâmpsia foi atrasado, apesar de já apresentar elevação pressórica na internação; o início do tratamento após o diagnóstico foi atrasado pela falta de insumos; a transferência regulada não ocorreu por indisponibilidade de vagas e a peregrinação se consolidou durante a transferência não pactuada com a central regulação ou com os demais serviços. Evidencia-se que os fatores relacionados aos atrasos podem ser cumulativos, contribuindo para o agravamento do quadro.
O encaminhamento sem regulação também provém de unidades não hospitalares, componentes da Atenção Primária ou Secundária. Fátima (mulher de 32 anos, casada, procedente de Fortaleza), que é auxiliar de Serviços Gerais, por exemplo, fazia seu pré-natal na Unidade Básica de Saúde (UBS). Embora estivesse vinculada a um hospital, foi orientada na UBS, durante uma consulta, a procurar imediatamente um serviço terciário, levando consigo apenas um bilhete escrito em receituário:
Eu estava com 7 meses e na consulta me mandaram pra emergência por que minha diabetes estava mais que 300. Fizeram um bilhete no receituário pra que eu fosse pra emergência. Eu fui primeiro pro centro, onde meu outro filho nasceu. Mas eu nem entrei com o bilhete. Disseram na porta que estava lotado […] e eu vim pra H1. No H1, primeiro disseram que eu não podia ficar porque estava lotado e eu não tinha encaminhamento. Mas meu marido conseguiu falar sobre a diabetes e quando a médica viu o bilhete, mediu meu açúcar no dedo e já me internou. (Fátima, 32 anos, negra, procedente de Fortaleza)
Algumas vezes, o encaminhamento para o serviço terciário ocorre por contato entre os profissionais, sem intermédio da central regulação, como exemplifica Elisa (15 anos, branca, solteira, estudante, procedente de Maracanaú), que mora com os avós e a mãe: “O médico que estava na hora do sangramento ligou pra médica que estava de plantão aqui, e ela me recebeu mesmo estando lotado. Eles chamaram de vaga zero”.
As narrativas evidenciam, ainda, tentativas de driblar as dificuldades de regulação por meio da transferência da responsabilidade do deslocamento para a paciente, agravando o processo de peregrinação, como observamos no relato de Letícia:
[…] o doutor do plantão disse que […] não tinha como eles me ajudarem lá e que se ele me internasse, ia precisar pedir a vaga em Fortaleza. E quando pede assim, é difícil eles darem. Ele perguntou se eu conhecia alguém em Fortaleza e me orientou a dizer no hospital que eu morava com ela. (Letícia, 32 anos, negra, procedente de Caucaia)
Essa transferência da responsabilidade para a paciente é agravada por condições de vulnerabilidade social, como percebemos na narrativa de Cícera, que apresentou um sangramento em área de sutura de episiotomia que se tornou um hematoma, evoluiu para uma fasciíte e culminou em uma sepse:
Eu voltei no hospital depois de uns dias da alta e a médica disse que precisava abrir o corte, que podia ser sangue ou pus, mas que ela estava sem anestesista e que era arriscado começar a fazer e depois não dá pra terminar. Ela disse que estava com duas pacientes graves esperando vaga há três dias e não aparecia […] então era melhor eu ir direto pro hospital em Fortaleza com as minhas pernas mesmo. Eu disse que não tinha como ir e ela meio que deixou a entender que se eu ficasse lá não ia poder fazer nada, porque não consegue vaga. Minha mãe saiu pedindo pros conhecidos ajuda pra pagar um transporte pra gente ir. (Cícera, 19 anos, indígena, procedente de Caucaia).
A Figura 2 agrupa os padrões relacionados às demoras encontradas na interpretação conjunta dos dados quantitativos e qualitativos.
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Figura 2 Padrões das demoras na assistência obstétrica encontrados após interpretação conjunta dos dados quantitativos e qualitativos.
Discussão
Os resultados desta pesquisa evidenciam como as falhas na assistência hospitalar retardam a chegada das mulheres com quadros graves às maternidades de referência, majorando o risco de NMM. Estes lapsos estão atrelados a questões assistenciais - como inobservância de protocolos e comunicação ineficaz e violenta - bem como a aspectos estruturais, evidenciando falhas nos processos de regionalização e referência/contrarreferência.
Chama a atenção que o atraso no diagnóstico e instituição da terapêutica adequada ocorre mesmo diante de agravos com protocolos clínicos bem definidos e com elevados riscos epidemiológicos, como a hemorragia puerperal e a pré-eclâmpsia. Vale ressaltar que estas são as principais causas de morte materna, sendo consideradas causas evitáveis (Pacagnella et al., 2014 ; Sheldon et al., 2014 ; Sotunsa et al., 2019 ; Zanette et al., 2014) que não deveriam ser negligenciadas.
As narrativas fornecidas situam esses atrasos na esfera da inobservância de protocolos estabelecidos e na transferência de responsabilidades, submetendo a paciente a transferências por múltiplos hospitais e intersetoriais até o diagnóstico. Esses achados dialogam com os de um estudo realizado em Ruanda, que encontrou atrasos no nível diagnóstico e terapêutico por erro humano ou má gestão presentes em 65,3% dos NMM (Benimana; Small; Rulisa, 2018). Um estudo multicêntrico realizado no Brasil, incluindo 6.706 mulheres com transtorno hipertensivo grave em 27 maternidades no país, encontrou que a maioria das mulheres com hipertensão grave sofreu algum tipo de atraso no atendimento (55,6%) relacionado ao sistema de saúde (OR 2,86; 1,89-4,33) ou aos profissionais de saúde (OR 2,45; 1,53-3,92) (Zanette et al., 2014), corroborando com os achados deste estudo. Quanto a hemorragia pós-parto, já é estabelecido que fatores relacionados ao sistema de saúde e à inadequação do atendimento obstétrico são importantes determinantes para a sobrevivência diante da ocorrência desta condição (Ronsmans; Graham, 2006). Ainda assim, ela segue como uma das principais causas de morbimortalidade materna (Hogan et al., 2010 ; Umashankar et al., 2013 ; Sheldon et al., 2014 ; Sotunsa et al., 2019), o que dialoga com os lapsos assistenciais encontrados neste estudo.
As inobservâncias dos protocolos nos relatos foram frequentemente acompanhadas de formas violentas de comunicação. Apesar dos estudos que evidenciam o papel das interrelações na continuidade da atenção e na qualidade do cuidado (Almeida et al, 2021 ; Jesus et al 2018), problemas na comunicação são reportados frequentemente na literatura, chegando a ter entre 40% e 66% dos relatos na assistência (Attanasio; Kozhimannil, 2015 ; Domingues et al., , 2016).
As situações narradas neste texto podem ainda ser enquadradas como violência obstétrica (VO). VO é toda ação ou omissão direcionada à mulher durante o pré-natal, parto ou puerpério, que cause dor, dano ou sofrimento desnecessário a ela, praticada sem o seu consentimento explícito ou em desrespeito à sua autonomia (Fundação Perseu Abramo, 2010). Esse constructo inclui, assim, tanto o tratamento desrespeitoso e abusivo das pacientes como outros elementos de cuidado de má qualidade, como a não aderência às melhores práticas baseadas em evidências científicas (Katz et al, 2020). Deste modo, as falhas na comunicação associadas a diferentes formas de violência obstétrica, como as evidenciadas nas narrativas, podem relacionar-se diretamente à ocorrência de NMM (Lansky et al, 2019).
Para além dos lapsos na assistência, os resultados obtidos neste estudo evidenciam problemas estruturais, como falhas no processo de regionalização e nos sistemas de regulação. A organização das RAS deveria responder a determinantes de efetividade baseados em uma lógica de economia de escala (EE). Para tal, a organização do território, a presença de mecanismos regulatórios efetivos e um qualificado planejamento regional são cruciais na determinação das facilidades e das dificuldades de acesso (Borsato; Carvalho, 2021). Um dos pontos chave nesse processo são os fluxos referência e contrarreferência, que estes demonstram como está estruturada a interlocução entre os níveis de atenção (Dubeux; Freese; Felisberto, 2013). Deste modo, as narrativas das mulheres nesta pesquisa evidenciam, através das falhas na regulação, importantes lapsos na integração da rede assistencial.
Os lapsos nos sistemas de regulação também se associam à má distribuição dos serviços. As narrativas evidenciam a falta de preparo de maternidades dos municípios periféricos em prover a assistência adequada. Estes estabelecimentos de menor porte são reportados na literatura como frequentemente apresentando baixas taxas de ocupação, falta de estrutura e de recursos humanos, tendo, consequentemente, uma má relação custo-efetividade, terminando por exercer localmente um papel que equivale ao da atenção primária em saúde (APS) (Rocha et. al, 2017). Esses estabelecimentos não alcançam EE adequadas, prestando uma assistência ineficaz e impondo às pacientes a necessidade de deslocamento (Borsato, Carvalho, 2021). Associa-se a isso uma assistência hospitalar terciária distribuída de modo inadequado, como evidenciado na Figura 1, e constrói-se um cenário propício para o estabelecimento de problemas de regionalização (Rocha et al, 2017 ; Borsato; Carvalho, 2021).
A este cenário, somam-se dificuldades de deslocamento e acesso aos locais essenciais, como aos serviços de saúde. Visto que isso é um direto constitucional, faz-se necessário considerar questões de mobilidade da população e o provimento de múltiplas formas de transporte que conduzam a essas instituições (Feitoza; Aredes, 2015).
Nossos achados corroboram, portanto, os de Borsato e Carvalho (2019) de que, apesar dos esforços para a efetivação do arcabouço legal referente às RAS, o processo de regionalização dos serviços de saúde ainda sofre vieses que impactam na integração e atividade da rede assistencial.
Outro problema emergente é a interseção entre o setor público e o privado. A discussão de ambas as questões requer considerar a implantação concomitante de projetos destoantes na área saúde. Se havia de um lado, no início dos anos 2000, o empenho em assegurar avanços no acesso aos cuidados propiciados pelo SUS, do outro havia estímulo ao crescimento do setor privado com foco nos segmentos de renda C e D. O manifesto subfinanciamento - que seria agravado nos anos seguintes - associado ao aumento progressivo de demanda - consequente à maior longevidade da população e às inovações tecnológicas na saúde - culminou em crescentes dificuldades no alcance da assistência. Essas questões produziram tempos de espera significativos para muitos procedimentos e a oferta insuficiente de leitos e vagas de internação (Cordilha; Lavinas, 2018), o que contribui para a dificuldade de transferência evidenciada nas narrativas.
Como efeito mais imediato dessa sobrecarga, o século XXI assistiu à expansão progressiva de empresas de serviços médicos, chamadas de “populares”, que concentraram a atenção em usuários insatisfeitos com o tempo de espera do sistema público - o chamado transbordo do SUS (Godoy, 2015). Ocorre que essa expansão do setor privado, de forma altamente segmentada, gerou uma acessibilidade potencialmente mais limitada, sem planejamento de linhas de cuidado e devolvendo o/a paciente ao SUS quando o custo de seu tratamento se torna elevado ou quando o cuidado se torna difícil de ser fornecido pelo valor pactuado para os segmentos mais vulneráveis.
Deste modo, os resultados mostram que os atrasos na assistência à gestante e à puérpera são multifatoriais e complexos. A peregrinação dessas mulheres associa-se a problemas nas estruturas das RAS e dos serviços, mas também está atrelada a importantes lapsos assistenciais, demandando da gestão maior controle acerca do seguimento aos protocolos estabelecidos.
Considerações finais
Este estudo evidenciou que a peregrinação de gestantes e puérperas é um fenômeno complexo, associado a múltiplos fatores, incluindo atrasos relacionados aos profissionais (como desconsideração de protocolos assistenciais, falhas de comunicação e violência obstétrica), ao sistema de saúde (lapsos no sistema de regulação, disponibilidade de leitos, fluxos de referência e contra referência, regionalização do SUS e relação entre rede pública e privada/suplementar) e às questões estruturais (como problemas de mobilidade urbana).
A melhoria da assistência obstétrica e a redução das peregrinações demandam um sistema de saúde que possua ferramentas de acompanhamento da qualidade do serviço prestado pelos profissionais de saúde, processos assistenciais bem estabelecidos, estruturas físicas e uma RAS que suportem o seguimento desses processos. Essas medidas só podem ser alcançadas mediante o fortalecimento do SUS e a superação do subfinanciamento e da dicotomia público-privada.
1 Disponível em.Acesso em: 6 mar. 2023.
Autoria SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS
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© 2024. This work is published under https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ (the “License”). Notwithstanding the ProQuest Terms and Conditions, you may use this content in accordance with the terms of the License.
Abstract
Este estudo, de caráter misto e sequencial exploratório, objetivou identificar padrões relacionados a trajetória de mulheres gestantes e puérperas que evoluíram para situações de risco, desde sua chegada em um primeiro serviço de assistência até sua admissão em uma maternidade terciária. A fase quantitativa analisou 1.703 prontuários e registros de internação de mulheres assistidas em três maternidades terciárias da Região Metropolitana de Fortaleza, no Ceará, entre 2010 e 2019. Na fase qualitativa, realizada entre janeiro e setembro de 2020, participaram 14 mulheres sobreviventes ao Near Miss Materno (NMM), por meio da Entrevista Narrativa Autobiográfica de Schütze. Os achados desvelam como atrasos relacionados aos profissionais e ao sistema de saúde contribuíram para a peregrinação de gestantes e puérperas e, consequentemente, para os quadros de NMM. A peregrinação destas mulheres associa-se a problemas nas estruturas da rede de atenção e dos serviços de saúde. Assim, fazem-se necessários o uso de ferramentas de acompanhamento da qualidade do serviço prestado pelos profissionais de saúde, os processos assistenciais bem estabelecidos, as estruturas físicas e as Redes de Atenção à Saúde (RAS), que suportem o seguimento desses processos.