Resumo: O mundo das encantarias com seus encantados na Amazónia fazem parte do imaginário e religiosidade dos habitantes locais. O estudo objetivou compreender a construção das representações artísticas sobre o tema no boi-bumba Garantido, de Parintins, Amazonas, Brasil, por meio de pesquisa etnográfica, focando-se no item Figura Típica Regional. O resultado evidencia a importáncia de visibilizar os saberes ancestrais conservados na região, mostrando, de modo espetacularizado, os curandeiros locais, que se engeram para curar em uma regiáo cuja caréncia da "medicina oficial" é evidente.
Palavras-chave: Encantados; Festival de Parintins; Boi Garantido.
Abstract: The world of enchantment with its enchanted characters in the Amazon is part of the imagination and religiosity of local inhabitants. The study aimed to understand the construction of artistic representations about the subject of the "boi-dbumbá" Garantido of Parintins, Amazonas, Brazil, through ethnographic research, focusing on the item Typical Regional Figure. The result highlights the importance of making visible the ancestral knowledge preserved in the region, showing, in a spectacular way, the local healers, who strive to heal in a region where the lack of "official medicine" is evident.
Keywords: Enchanted; Parintins' Festival; "Boi Garantido".
Introducáo
O Festival Folclórico de Parintins ocorre anualmente, geralmente no último fim de semana de junho. Os bumbás Caprichoso e Garantido já sáo brincadeiras centenárias e, na atualidade, disputam entre si o título de melhor do Festival, por meio da avaliação dos jurados que зао selecionados por meio de currículos, oriundos de diversas regiões do país, que náo o Norte, para que a proximidade com os bumbás náo influencie o julgamento. O Caprichoso é o boi negro de Parintins, com a estrela na testa, que defende as cores azul e branco. O Garantido, boi branco, tem na testa um coracáo e defende as cores vermelha e branca.
A brincadeira de boi é conhecida em todo o Brasil e celebrada em suas vertentes plurais. No norte do país, a brincadeira redefiniu-se e redimensionou-se, deixando de comportar-se e de apresentar-se como bumba meu boi. A manifestação originada no Nordeste Ihe serve de base, para consolidar-se como "boi-bumba da Amazónia", uma tradução original dessa modalidade de folguedo junino. Uma das grandes diferenças do bumba meu boi nordestino em relacáo a sua versáo nortista é a presenca acentuada do indígena, que integra seu contexto cénico desde a fase de brincadeira de terreiro até a que vislumbramos na atualidade (NAKANOME; SILVA, 2019).
Contudo, muitos estudos vêm apontando a presença negra no folguedo, desde suas origens (BRAGA, 2002; NAKANOME, 2019; LIMA JÚNIOR, 2022). Fato é que a brincadeira passa por constantes metamorfoses, ao se descobrir e redescobrir modos de apresentar a cultura amazónica. Este trabalho debruça-se sobre uma destas (re)descobertas, o aspecto religioso da cura por meio dos encantados, que se engeram em curadores e curadoras da regiáo, levando saúde para populacóes carentes do Poder Público, especialmente diante do fim do Programa "Mais Médicos", na época do sombrio Governo Bolsonaro, que deixou ainda mais desassistida as populações do Norte.
Diante deste cenário, a questáo que norteou o presente estudo foi: como a arte popular parintinense do Boi Garantido representou seus encantados e encantarias no Festival 2023? Para responder a este questionamento, o objetivo deste texto é evidenciar como se deu a construção das representações artísticas acerca do tema em 2023.
O artigo encontra-se dividido nesta Introducáo, seguido da Metodologia adotada, partindo-se para a discussáo do referencial teórico, no qual se apresentam as encantarias e sua aproximacáo com os seres humanos, chegando-se na discussáo dos resultados, em que se mostram as representações artísticas do Boi Garantido e, por fim, as considerações finais e referéncias utilizadas.
Metodologia
O boi-bumba, por ser um evento festivo e de profundas emoções, precisa ser vivenciado in loco para ser entendido. Por isso, optou-se pela metodologia etnográfica para compreensáo do fenómeno em análise, entendendo-se, junto a Geertz (1989), a necessidade de captar o sentido profundo construído em uma teia de significados "costurados" pela imersáo no campo de estudo. Trata-se, assim, de pesquisa participante e de caráter qualitativo.
Tal experiéncia foi desenvolvida pela autora e pelo autor de um local especial. Ambos faziam parte da Comissáo de Artes em 2023, equipe responsável pela criacáo e acompanhamento do projeto de arena. Assim, o que será apresentado foi fruto deste trabalho coletivo que procurou visibilizar náo somente o rico universo das encantarias amazónicas, mas seus principais protagonistas, sejam anónimos ou mais populares, como o grande Valdir Viana, curador conhecido na cidade de Parintins por seu "dom" de trazer alívio aos necessitados que o procurassem, sem nada pedir em troca.
Os dados apresentados correspondem ao ano de 2023, sendo o recorte da primeira noite de apresentacáo. Tendo em vista que os pesquisadores tiveram acesso total ao material, houve aprofundamento nas produções teóricas e artísticas do boi-bumbá Garantido. Infelizmente, por questóes de forte rivalidade que mobiliza a disputa, o outro bumbá náo foi investigado.
Dados os limites possíveis a um artigo científico, o foco recai sobre um dos momentos da apresentacáo, qual seja, o item Figura Típica Regional. ltem é como se chama, em Parintins, o elemento de avaliação dos jurados. Há vinte e um, ао todo, em julgamento nas trés noites. No caso da Figura Típica (item 15), sáo postos para análise da comissáo julgadora: como se expressam os símbolos da cultura amazónica, na sua soma de valores, por meio dos diversos grupos humanos que a compuseram e a сотрбет nos dias atuais. Seus méritos sáo a homenagem as raizes da terra, beleza e originalidade. E os elementos comparativos com o boi rival sáo: fidelidade ao item, acabamento, estética, porte e encenacáo (PARINTINS, 2022).
Vale ressaltar que os elementos "acabamento, estética e porte" fazem referéncia ao conjunto alegórico no qual se desenvolvem. Consoante Nakanome e Silva (2019), as alegorias foram inseridas no Festival Folclórico de Parintins no final da década de 1970, pelo artista Jair Mendes, influenciado pelos carros alegóricos dos desfiles das Escolas de Samba cariocas. Tornaram-se um dos principais atrativos do espetáculo dos bumbás e também uma das obras mais ambiciosas tanto do ponto de vista técnico e estético quanto da criatividade. As alegorias sáo produzidas com materiais leves, como o isopor e papeláo, mas também envolvem outros mais pesados e resistentes, como o ferro galvanizado, necessário para garantir a sustentacáo das estruturas. Em geral, suas enormes proporcóes descansam sobre rodas, as quais permitem sua locomocáo, que é impulsionada basicamente pela forca humana.
Encantados e encantarias na Amazónia: uma breve revisáo bibliográfica
Pensar os encantados, encantarias e suas incorporações é uma tarefa complexa e multifacetada. Nakanome e Silva (2023, p. 1701) veem no mundo das encantarias hibridismos entre fés indígenas, europeias e africanas, em uma regiáo colonizada pelos segundos e cujos primeiros e terceiros resistiram em processos de lutas e esconderijos no seio das matas. Ao analisarem como a arte pode se aproximar destas questóes, os autores apostam na decolonialidade como instrumento de análise e de como o que se retrata artisticamente pode ser arte-educativo, gerando conhecimentos com compromisso social, ou seja, fugindo de estereótipos e estimulando o pensamento crítico: "a arte convoca-nos a sensibilidade de tentar perceber como estamos "seguindo" neste Brasil que é luzeiro, mas também carrasco com seus filhos e filhas: precocemente somos apresentados aos desafios de busca pela dignidade humana em seu sentido mais pleno".
Para concretizar este feito, é necessário compreender "o que" sáo os encantados. Neste viés de decolonizacáo, optamos por autores da regiáo, com o intuito de melhor compreender o assunto. Há apenas uma exceção, а da norte-americana Candace Slater, justificada pela densidade do estudo empreendido.
Ainda seguindo o pensamento de Nakanome e Silva (2023), os pesquisadores salientam, contudo, que o "amalgama" citado precisa de cuidados interpretativos, no sentido de nao reproduzir um sincretismo "embranquecido". Como dito, é preciso compromisso social, e este "encontro" entre brancos, negros e indígenas náo foi democraticamente racializado, tal qual aparece nos clássicos como Gilberto Freyre (1933), em "Casa Grande & Senzala".
No sentido de Ferreti (2013), entende-se que o sincretismo ocorrido foi um mecanismo de ressignificacáo possivel da religiáo do opressor. Ao invés de posicionar um sincretismo como uma "vitória" do catolicismo, Ferreti (2013) propde que, em verdade, о catolicismo é que se africanizou, o que nds, da regiáo amazónica, entendemos que também aconteceu em relação à catequizaçäo do indígena: é o catolicismo que se indigeniza. Nas relações entre identidade, religião e sincretismo, o autor salienta que membros de religiões nao católicas usaram o sincretismo como fator de preservação da identidade étnica, do grupo, mesmo que se encontrassem sincretizadas com outras tradições, uma vez que predominaram as religiões subalternizadas, subvertendo a ótica judaico-cristá. Cosmovisóes afro-indigenas de mundo podem ser vistas como fatores de resistência cultural e de preservação das citadas cosmovisoes.
Segundo Bárbara Palha (2021), a invisibilidade negra na Amazónia é argumento ultrapassado e insustentável. Analisando a presença africana no Pará, a autora observa uma dinámica de crescimento e de estabilizacáo, configurando-se como o segundo grupo de habitantes em Belém, entre 35,6% e 36,2% da população da capital, ao longo dos anos 1773-1793. Palha (2021) pontua que, neste grupo, estáo presentes escravizados e escravizadas negros/as oriundos/as do tráfico transatlántico, organizado pela Companhia do Comércio ou por particulares, nos levantamentos populacionais de 1773 a 1783, levando em consideração aqueles/as nascidos/as na capitania.
Nos moldes do pensamento de Bárbara Palha (2021), Patrícia Sampaio (2011) ilustra que a participação africana no Grão-Pará era ativa e coloca em movimento questões mais amplas que não podem ter suas dimensões avaliadas apenas por números de escravizados/as disponíveis, porquanto o que está em primeiro plano é a propria articulação e reiteragáo de uma sociedade escravocrata, cuja lógica de reproducáo náo se limita ao número de seres humanos disponíveis nos plantéis, mas antes se traduz na reiteraçäo de relações de subalternizaçäo que alimentam este sistema. Esta realidade, para a pesquisadora, deve ser adequadamente avaliada.
Isto posto, pode-se seguir o debate, sem que o leitor e a leitora estranhem a relação dos encantados com negros e negras resistentes e residentes na Amazônia. Alias, no clássico estudo de Eduardo Galvao (1955, p. 90-91), Santos e Visagens, o autor já percebia a influéncia africana na visáo religiosa de Ita, cidade que foi objeto de sua investigação. Segundo ele: "algumas crenças derivam de tradições europeias conservadas ou transmitidas pelos colonos dos primórdios do povoamento ou mesmo por imigrantes recentes, outras trazidas pelos escravos africanos e, finalmente, muitas que se atribuem ao ancestral ameríndio [...]?. Ou seja, desde este estudo, considerado um dos pioneiros sobre a vida religiosa, negros e negras com seus saberes já produziam pedagogias em formas de curar e de crer.
Ainda para Galvão (1955), os encantados são vistos como tudo que se refere ao sobrenatural, desde que não sejam confundidos com os santos católicos. Ainda que destaque a forte origem indígena, o autor não pode ignorar a influência negra sobre a crença:
Na cidade [Itä, onde se realizou o estudo na região amazónica], como se depreende da descrição das festas de S. Benedito e S. Antônio, a dissociação de elementos é flagrante. As orações e atos religiosos são realizados na igreja, a orientação geral da festa depende do conselho do sacerdote visitante. Conceitos de profano e de sagrado se impõem ao participante ao classificar os diferentes aspectos da festa. Distingue-se, assim, como atos religiosos, as ladainhas realizadas na igreja em contraposição ao divertimento profano oferecido pelos bailes. Alguns sacerdotes se opõem vigorosamente à realização destes últimos. Mesmo permitidos ou organizados à revelia da autoridade, têm lugar em residências particulares onde se cobra ingresso dos participantes. Na festa de S. Benedito em que ainda se conserva o baile público na ramada de santo, a frequência é recrutada entre a gente de segunda. A direção do samba cabe aos foliões ou "escravos" do santo. Os "brancos" podem frequentar e dançar o samba na ramada, mas em geral preferem divertir-se em locais exclusivos dessa classe. Os bailes "de primeira" ou de "segunda" são inteiramente profanos. (GALVÃO, 1955, p. 169)
Pode-se perceber explicitamente a divisão social entre gente "de primeira" ("brancas") e de segunda ("negros" que faziam samba). Vale ressaltar que São Benedito, por ser negro, era bastante cultuado pelas populações africanas, nomeando, inclusive, muitos quilombos da regiáo (como os de Viseu, no Pará, e о da Praca 14 de janeiro, em Manaus, Amazonas).
Sobre а participação indígena em processos subversivos, Schweickardt (2002), conta que a visáo religiosa jesuítica trazia uma ideia herdada do período medieval, com forte dualismo entre Deus e o Diabo, preocupando-se em levar aos povos originários estas concepções religiosas e teológicas da Igreja. Para os membros da Companhia de Jesus, os indígenas eram idólatras e/ou ateus. Contudo, os povos da regiáo eram ateus em relação a fé cristã, o que nao significava que não havia outras formas de adoração. Nao obstante, os jesuitas acabaram absorvendo parte da cosmologia originaria, pois os primeiros também possuíam uma visáo mágica da vida, principalmente quando se tratava de combates as enfermidades, sendo aí que adentram os encantados, seres extrafísicos fundamentais no processo de cura entre os originários da terra.
De acordo com Slater (2001), os encantados estáo ligados a uma miríade de guardiães da floresta, as vezes chamados de "encantes da mata" ou "encantados da floresta". Sáo mencionados em seu estudo a Matinta Perera, o Juma, o Mapinguari. Para a estudiosa:
Os Encantados, por sua vez, vivem as margens da sociedade humana. Sua residéncia náo é o céu distante, mas as águas e, menos frequentemente, as florestas sombrias por onde homens e mulheres costumam se aventurar. Enquanto os santos ficam a vontade, tanto em casebres isolados quanto na cidade, a confusáo e o movimento urbano sáo incompatíveis com essas personificaçôes das forças naturais. (SLATER, 2001, р. 112)
Em entrevista com um organizador de boi-bumba e pai de santo, Slater (2001) entende os encantados como seres que saem dos rios е andam pela noite vagando. Sao motivados por desejos carnais, somente os curandeiros xamanicos devem invocá-los.
Por sua vez, Aldrin Figueiredo (2008), após debrucar-se sobre uma série de autores que tratam da temática da pajelanca e dos encantados, incluindo o já citado Eduardo Galvão, conclui que, para este estudioso, por trás das crenças dos pajés, está o indígena tupi. Esta conclusáo, para Figueiredo (2008), resulta das experiéncias de Galváo com os Tapiripé do rio Pindaré. No entanto, ao analisar outros teóricos, Figueiredo (2008, p. 208, grifos no original) percebe uma verdadeira encruzilhada das concepções religiosas na Amazónia, entre а "pajelanca indígena" e a "pajelanga afro". No meio de encantados como Curupira, Cobra Grande, Anhangá, fato é que "[...] nenhum intelectual conseguiu retirar nem da pajelanca, nem da mina, nem do batuque, nem do babassué, a necessidade dos pajés (ou pais de terreiro) de visitarem a cidade dos encantados [...]". Era preciso encontrar os "companheiros do fundo", fosse ele uma cobra, um boto, um velho indígena ou algum moco fidalgo portugués.
Ou seja, o elemento católico perdia sua forca, mas os indígenas e africanos seguiam firmes e fortes nos rincóes amazónicos.
Os encantados rompem o dualismo presente em divisões fixas e estanques tais quais bem e mal, típico do pensamento judaico-cristáo, conseguindo ter as duas predicacóes. Segundo Maués (1995), as entidades podem ser "do fundo", como oiaras e caruanas (guias ou cavalheiros), e "da mata", como Anhangá e Curupira. Nesta versáo, podem provocar doenças como mau-olhado, flechada de bicho, corrente de fundo, e, quando se manifestam como botos, seduzem mulheres. É possivel também atrair as pessoas para suas moradas no fundo. A acáo maléfica dos encantados gera dores de cabeça, enjoos, vómitos, dor localizada em alguma parte do corpo, possessões descontroladas dos caruanas e falta de menstruacáo.
Do lado "bom", quando devidamente controlados por pajés e demais curadores/as, via Xamanismo, que consiste na incorporacáo do pajé no transe ritual, os encantados sáo trazidos para curar os doentes, realizando seus "trabalhos" nas sessóes xamanísticas, ocupando-se, nelas, principalmente, com o fim do sofrimento humano (MAUÉS; VILLACORTA, 2011).
Os praticantes do culto aos encantados, cujas representações "sacerdotais" Maués (2008) equivale aos "pajés caboclos", não devem ser identificados apenas com as práticas exercidas (curativas ou de outro tipo). A pajelanca cabocla, além de canto e danca, tem implicacóes religiosas, trazendo uma сопсерсао de mundo em que se mesclam saberes indígenas, especialmente dos Tupinambá, católicas, kardecistas e umbandistas. Todavia, para o professor da Universidade Federal do Pará, náo implica, como na umbanda e no kardecismo, uma religiáo a parte. Seus praticantes costumam se ver como católicos, o mesmo ocorrendo com os pajés e curadores/as que váo a igreja, participam das festas de santos, fazem promessas, ladainhas e seguem procissões. Maués (2008) considera como uma forma também de "medicina náo oficial" ou "alternativa".
Para finalizar este tópico, nada melhor do que trazer Zeneida Lima, primeira pajerana do Norte. Para Lima (2002), habitante da regiáo do Marajó, os caruanas sao descritos como homens da pele azul que vinham das aguas. Ao ser tomada por eles, sumiu por dias e, ao ser encontrada, descreve a experiéncia: "livre dos cipós notaram que eu estava com o corpo completamente tatuado. Eram manchas bem definidas com figuras de peixes, pássaros, cobras, flechas, máscaras primitivas. Meus cabelos estavam emaranhados, transformados em enormes maçarocas enlameadas" (LIMA, 2002, р. 140). Na obra, Zeneida Lima também reconhece os saberes africanos, ao lado dos indígenas, como componentes fundamentais para refletirmos acerca das incorporações dos encantados caruanas.
Encantarias e Encantados: a Figura Típica Regional em 2023
O desenvolvimento do momento da Figura Típica Regional foi apresentado como uma reveréncia a imagem de curadores e curadoras do povo, promotores/as da saúde em locais que a medicina "oficial" sequer sonha chegar. Com saberes ancestralizados de encantarias, de negros e negras, indígenas, caboclos e caboclas, exaltaram-se homens e mulheres possuidoras/es do "dom" de curar. Segundo o livro dos jurados:
O Curandeiro da Floresta representa a mais completa figura tipicamente amazónica, porque carrega em si os conhecimentos ancestrais dos povos originarios, que vivem em conexáo com a floresta e dela sempre extrairam as ervas para a cura das doenças, aliados a sabedoria dos povos africanos, que aqui chegaram com seus conhecimentos de ervas e saberes religiosos, filosóficos e científicos. São mantenedores/as da vida. Na medicina da floresta, o Curandeiro e a Curandeira sáo, sem dúvida, opcöes recorrentes, ungindo ervas em defumacáo, usando chá de aguapé, de ayahuasca e tantas outras plantas, além de conhecimentos ancestrais que curam os males do espírito e da mente. Sáo herdeiros/as da tecnologia ancestral de cura dos povos tradicionais, que náo podem ser mais ignorados, pois, inclusive, suas contribuições têm sido comprovadas cientificamente. Também chamados de "curadores populares", os/as Curandeiros/as da Floresta estão nos mais distantes rincões da Amazônia e, em Parintins, estão catalogados mais de 250, que atuam paralelamente ao atendimento médico "oficial". (SILVA; RODRIGUES, 2023, p. 36)
Como se pode ver na imagem, o destaque é para as figuras humanas que, sob as bênçãos dos encantados, realizam curas por meio daquilo que a floresta fornece. Ao centro da alegoria, a figura de Valdir Viana, um dos mais conhecidos curadores de Parintins, ladeado por uma benzedeira e por um indígena, estudando ao microscópio. A ideia, como se pode visualizar no jaleco, é mostrar que os povos indígenas podem, eles mesmos, estudar seus conhecimentos na Universidade, se assim o quiserem, ainda mais após o fortalecimento da entrada dos originários da terra nas Universidades públicas, por meio da implementacáo da política de cotas.
A parte de trás da alegoria é um imenso Sáo Benedito, santo preto, representando a devocáo africana presente em muitos quilombos, como aqui já visto anteriormente. No dia da realização, o "sincretismo" subversivo foi realizado com a presença do orixá Ossain, encenado pelo artista Demerson D'Álvaro, que se consagrou no Carnaval carioca ao interpretar Exu, na Escola de Samba Grande Rio. A ideia foi mostrar como os próprios encantados e demais figuras de devocáo precisaram ser "catolizados" para, a posteriori, voltarem a ser o que originalmente sempre foram: objeto de culto de povos indígenas, africanos e seus descendentes.
O desenvolvimento na arena deu-se mediante a participação dos corpos cênicos que teatralizavam cenas de cura pelo engeramento dos curadores e curadoras, ao som da toada (ritmo específico da festa), além da participacáo de benzedeiras, puxadores de desmentiduras, pajés, pajeranas, entre outras figuras humanas que cénicocoreograficamente procuravam retratar fidedignamente os modos de curar típicos da região amazónica, especialmente aqueles mais afastados dos centros urbanos.
Ao som dos tambores do Apresentador, que iniciou a cena com um ponto cantado a Ossain, a Figura Típica Regional procurou dar visibilidade a elementos significativos das práticas como acontecem no meio de nossas matas, em aldeias, quilombos e terreiros, onde ervas se tornam remédios, fumaças de tauari trazem a cura por meio dos pajés caboclos e pajeranas. É assim que até hoje fazem nossos povos indígenas e descendentes de africanos: plantas específicas são batidas no corpo de modo a "espantar" mau-olhado, caruanas e bichos-do-fundo.
Neste sentido, pensa-se que o Festival Folclórico de Parintins carrega uma poténcia arte-educativa sem igual, ao se apresentar para os imensos públicos que assistem a festa das arquibancadas de Caprichoso e Garantido, ou mesmo por meio televisionado ou demais mídias sociais, especialmente o YouTube, onde as apresentações podem ser visualizadas integralmente, no horário que o espectador puder. Presenciou-se, assim, a forca do povo que se mistura enquanto actante e experenciador destas vivéncias, as quais podem parecer estranhas para os grandes núcleos urbanos, mas que, para nós, amazónidas, sáo corriqueiras e se conservam em banhos, garrafadas e "consultas" com estes "anjos de luz" como sáo comumente chamados nas regides em que sáo a única esperança de qualidade de vida e saúde física e mental.
Consideragoes finais
Concorda-se com Nakanome e Silva (2019), quando afirmam que o boi-bumba de Parintins tem função educativa na arte e, sobretudo, na restauração da cultura indígena, especialmente ao fazer uma autorrevisáo da identidade por meio do espetáculo, recriando e materializando, dando sentido, até mesmo sinestésico, aos brincantes que, no subconsciente, vivem uma catarse renovada a cada ano, como herança adormecida e existente em um bairrismo e no orgulho caboclo. Acrescente-se a isto outros tipos humanos, como os africanos e ribeirinhos, e ter-se-á um mosaico da diversidade em uma terra que acolheu tantas pessoas diferentes em diásporas para o meio da floresta amazónica.
Neste sentido, a expressáo da Figura Típica Regional aqui comentada via etnografia possibilitou compreender mais profundamente náo somente o que sáo os encantados, como se apresentam e como podem ser "classificados", mas também como se dáo os processos criativos da maior festa folclórica do país, realizada no meio de uma pequena ilha do Amazonas. Isto ajuda а visibilizar o Norte, tantas vezes "regionalizado", quando não completamente esquecido pelo restante do país.
Levando-se em consideração o objetivo proposto, acredita-se que ele tenha sido obtido a contento, o que nos estimula a sugerir mais pesquisas acerca do tema, sob outros olhares e outros vieses que nao necessariamente о paradigma etnografico. Fato ё que a "festa da floresta" cumpre relevante função social, devendo ser estudada pelas Artes, pela Sociologia, pela Antropologia e demais Ciéncias Humanas, afinal, ela ensina muita coisa a quem se propõe visualizá-la com atenção.
Conclui-se, desta forma, que os tipos humanos presentes na Amazónia sáo uma fonte inesgotável de conhecimento e que merecem ser reconhecidos como os griós que são. Para tanto, além da teatralizacáo proposta na festa, é preciso que mais espaços de escuta se abram para que estes conhecimentos escoem. Se a funcáo da arte é inquietar, acredita-se que esta pesquisa instiga neste aspecto.
Recebido em: 17/04/2024
Aceito em: 31/07/2024
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Abstract
The study aimed to understand the construction of artistic representations about the subject of the "boi-dbumbá" Garantido of Parintins, Amazonas, Brazil, through ethnographic research, focusing on the item Typical Regional Figure. The result highlights the importance of making visible the ancestral knowledge preserved in the region, showing, in a spectacular way, the local healers, who strive to heal in a region where the lack of "official medicine" is evident. Ao analisarem como a arte pode se aproximar destas questóes, os autores apostam na decolonialidade como instrumento de análise e de como o que se retrata artisticamente pode ser arte-educativo, gerando conhecimentos com compromisso social, ou seja, fugindo de estereótipos e estimulando o pensamento crítico: "a arte convoca-nos a sensibilidade de tentar perceber como estamos "seguindo" neste Brasil que é luzeiro, mas também carrasco com seus filhos e filhas: precocemente somos apresentados aos desafios de busca pela dignidade humana em seu sentido mais pleno". Analisando a presença africana no Pará, a autora observa uma dinámica de crescimento e de estabilizacáo, configurando-se como o segundo grupo de habitantes em Belém, entre 35,6% e 36,2% da população da capital, ao longo dos anos 1773-1793.
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