Resumo
O conceito de Estética Relacional baseia-se em uma construçâo poética centrada nas relaçôes humanas e sociais e geralmente é pensada fora do ambiente das instituiçôes artísticas. Esta prática ganha força a partir da década de 1960-70 e se destaca na poética de Hélio Oiticica, principalmente na obra Parangolé. Contudo, a conceitualizaçao do tema acontece apenas em 1990 pelo crítico francés N. Bourriaud, que desconsidera o trabalho de Oiticica e foca suas análises em artistas europeus do final do século XX. Por fim, apesar destas intençôes poéticas remeterem à década de 1960, elas foram celebradas institucionalmente no cenário brasileiro apenas em 2006, na 27a Bienal de Sao Paulo. O artigo busca, desta forma, refletir sobre os desencontros conceituais e as temporalidades distintas que perpassam os trés eventos mencionados.
Palavras-chave: Arte relacional. Público de arte. Arte contemporánea. Campo artístico.
Relational Art and Audience Involvement: Poetic Approaches From 1960-70s at the 27th SÄo Paulo Art Biennial
Abstract
The concept of Relational Aesthetics is based on a poetic construction centered on human and social relationships, and it is usually thought outside the artistic institutions environment. This kind of practice gets stronger in the 1960s and the 1970s, and it stands out on the poetry of the artist Hélio Oiticica, mainly on his work entitled Parangolé. However, the conceptualization of this theme happens only in 1990, by the french critic Nicolas Bourriaud, who disregards Oiticica's work, focusing his analysis on the work of European artists from the end of the 20th Century. Finally, although these poetic intentions refer from the 1960s, they were institutionally celebrated inside the Brazilian scene only in 2006, at the 27th Sao Paulo Biennial. This article seeks, therefore, to reflect upon these conceptual mismatches and the different temporalities that runs through the three above-mentioned events.
Key-words: Relational art. Art audience. Contemporary art. Artistic field.
Preámbulo3
A proposta curatorial da 27a Bienal de Sao Paulo realizada em 2006 se apresenta como desenrolar de um processo artístico iniciado em 1960 por Hélio Oiticica. Este artista, entre outros do cenário brasileiro, apresentou como poética de trabalho os mesmo critérios defendidos por Nicolas Bourriaud para a Estética Relacional. Curiosamente, o conceito do crítico francés foi embasado em obras de arte realizadas por artistas europeus no período de 1990, ou seja, é bastante posterior ao trabalho de Hélio Oitica. O objetivo deste artigo é realizar aproximaçoes entre a poética de Hélio Oiticica como precursor deste discurso e o conceito de Nicolas Bourriaud referente à Estética Relacional.
Ainda dialogando com conceitos, a escolha da 27a Bienal de Sao Paulo como outro elemento de aproximaçao justifica-se pela inovaçao curatorial definida por Lisette Lagnado, o que garantiu grande repercussâo da exposiçâo e permitiu um confronto entre o conceito do crítico francés e as práticas realizadas no Brasil nas décadas de 1960 e 1970. Através da exposiçâo, vemos aproximaçoes entre os conceitos estéticos da Bienal e os discursos dos artistas, que buscaram estabelecer novos diálogos entre a arte contemporánea e o público, colocando-se como parte ativa das discussoes referentes aos novos papéis do espectador de arte e das instituiçoes.
Faz-se necessário lembrar que estes possíveis novos paradigmas da arte contemporánea remetem a práticas artísticas anteriores ao conceito de Estética Relacional de Nicolas Bourriaud e tais relaçoes conversam tanto com a 27a Bienal de Sao Paulo como também com as práticas artísticas do período de 1960-1970 de Hélio Oiticica. O fato de Bourriaud ter excluído de suas análises as obras do artista brasileiro serâo examinadas com o auxílio da teoria de campo do sociólogo francés Pierre Bourdieu. Este olhar para dentro do campo da arte mostra-se necessário pois traz à tona as disputas e jogos de poder, como no caso da menor importância dada às práticas de um artista periférico em relaçâo ao centro da produçâo artística mundial, num confronto binário entre centro e periferia, evidente no discurso de Bourriaud.
A partir das análises de Bourdieu (1996, 2003) sobre o funcionamento do campo da arte, entende-se que é na modernidade, quando a arte atinge seu auge como bem simbólico, que as analogias entre arte e vida e as relaçoes com o público se acentuam. Já mais contemporaneamente, as tensoes dentro do campo da arte levam a um afastamento entre receptor e arte, pois a própria arte passa a exigir das pessoas maior entendimento das trocas e dos códigos simbólicos para poder participar dos processos de fruiçâo. Este fator ajuda a compreender as diretrizes da curadoria da 27a Bienal de Sao Paulo e sua preocupaçâo com a preparaçâo de um material educativo voltado ao público, assim como a escolha da gratuidade no acesso à exposiçao, questoes que conversam diretamente com as preocupaçoes estéticas dos artistas que abordam esta temática e que procuram, se nao sanar, minimizar a elitizaçao da arte por meio das instituiçoes artísticas e de seus agentes. Ao privilegiar a açao educativa da exposiçao, a curadoria aposta na ideia de que um potente projeto pedagógico é peça central para que o evento atinga seus objetivos civilizatórios (OLIVEIRA, 2001, p. 27).
Seguindo a linha de pensamento da sociologia da arte de Bourdieu, o público nao inteirado das novas discussoes estéticas permanece à margem mesmo quando as práticas arísticas buscam estabelecer com ele uma relaçao mais próxima. Apesar da tal esforço, o contato do público com os objetos artísticos mantêm-se em um nivel muito raso de conhecimento, apoiando-se em questoes de gosto pessoal e beleza4, pela falta de familiaridade com os códigos internos, o que acontece principalmente no caso da arte contemporánea, dificultando a recepçâo da obra e a desmitificaçao do "cubo branco". Assim, a familiaridade com a "arte retiniana" da qual falava Duchamp, ou entao dos códigos artísticos anteriores ao modernismo, permitia uma fruiçao mais acessível às pessoas de um modo geral, tanto pela proximidade da mensagem com o público quanto pela existência de temas mais facilmente detectáveis.
Para Bourdieu (1996, p. 259), um objeto artístico se 'transforma' em obra de arte quando passa a ser "conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituída como obra de arte por espectadores dotados da disposiçao e da competência estéticas necessária para conhecer e reconhecer como tal". Mas, a partir da década de 1960 e de acordo com Bourriaud (2009, p. 24) a dinámica de relacionamento espectador - obra de arte passa a ser "regida por outros principios". Assim, "uma exposiçâo criará, segundo o grau de participaçao que o artista exige do espectador, a natureza das obras, um 'dominio de trocas' particular", relaçao que será proposta tanto nas obras de Hélio Oiticia, como no projeto curatorial da 27a Bienal de Sao Paulo, dispensando que o público seja conhecedor de critérios e discussoes formais e conceituais, elevando o contato com a arte ao nivel de relacionamento.
Ainda assim é importante destacar que, apesar desse novo jogo de trocas "é cada vez mais raro que o deleite nao tenha por condiçao a consciencia e o conhecimento dos jogos e das apostas históricas dos quais a obra é produto" (BOURDIEU, 1996, p. 280), e por maior que seja o envolvimento do público no processo de criaçao ou execuçao da obra de arte, a criaçao conceitual se utilizará de referencias internas que muitas vezes sao restritas ao campo. Assim, apesar de certas propostas inovadoras, a falta de conhecimento dos processos estéticos contemporáneos leva a "desencontros entre modernizaçao social e modernismo cultural, entre politica de elite e consumo massivo, entre inovaçoes experimentais e democratizaçao cultural." (CANCLINI, 2000, p.150). Logo, as constantes reorganizaçoes dentro do campo que aparentemente propoe interpretaçoes livres e tentam abrir fronteiras, podem ser percebidas pelo público nao consumidor de arte com algum receio.
Dentro de um diagnóstico contemporáneo da arte apontado por Nestor Canclini, "analisar a arte já nao é analisar apenas obras, mas as condiçoes textuais e extratextuais, estéticas e sociais, em que a interaçao entre os membros do campo gera e renova sentido" (CANCLINI, 2000, p. 151). É, portanto, "uma forma de arte cujo substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o estar-juntos, o 'encontro' entre observador e quadro, a elaboraçao coletiva do sentido" (BOURRIAUD, 2009, p. 21), uma estética de relacionamento. Assim, nestas açoes relacionais o público passa a agir sobre o campo e seu papel frente à arte se altera, completando-a como "um elemento de ligaçâo, um principio de aglutinaçao dinámica" (BOURRIAUD, 2009, p. 29), instável e dependente, que existe a partir e por conta de encontros aleatorios que envolvem de forma dinámicas as relaçoes humanas.
Os debates acima, embora desenvolvidos em outro momento, aproximam-se da estética desenvolvida nos anos 1960-1970 pelo artista neocontreto brasileiro Hélio Oiticica. Partindo das experiências e das novas formas de habitar o mundo, com novos modelos de sociabilidade, ele toma como ponto de partida as relaçoes humanas, atitude bastante vanguardista no contexto artístico no qual trabalhava. Na obra Parangolé, o artista propoe vínculos perceptivos e estruturais com o público. A cor, elemento formal da arte, é trazida por Oiticia para o ámbito estrutural, o que permite que as assimilaçoes sejam potencializadas, uma vez que este elemento que deveria estar contido toma o espaço e o tempo, fazendo com que seja percebido espacialmente como objeto, em um nivel de participaçao corporal direta.
Neste sentido o objeto/elemento só se transforma em arte quando a açao acontece. Assim, Oiticica torna ainda mais relativo o espaço e "transforma a tríplice perfomance-espaço-tempo na obra, ou como ele mesmo pontua, 'obra-açao'." No caso dos Parangolés, a necessidade de 'usar' a obra "é um ato que exige do espectador uma vivência e seu corpo se torna núcleo estrutural da obra. Ai se verifica a inter-relaçao espectador-obra e sua subjetividade nessa vivência" (MELO et al., 2012, p. 67), fazendo com que a improvisaçao permita uma fruiçao estética que nao exige um conhecimento específico do campo artístico, conectando indivíduo, coletivo e estruturando relaçoes. Estas ocorrem de forma menos mediada e mais espontánea, ao deslocar o objeto artístico para o espaços públicos, ao ar livre, sugerindo lugares que sejam livres à participaçao e invençao de uma criaçao que se concretiza como coletiva.
Desta forma, como salienta Bourriaud, o objetivo da estética relacional nao é o convivio simplesmente, mas o produto desse convivio, numa forma complexa que reúne estrutura formal e objetos postos à disposiçao do público refletindo o comportamento coletivo, gerando microutopias funcionais dentro do corpo social, com novos modelos de vida dentro da realidade e nao com a alteraçao do que já está posto.
Da Arte Relacional
... examinar a ciencia na ótica do artista, mas a arte na da vida.
- Nietzsche
Os livros de Nicolas Bourriaud sobre Estética Relacional foram publicados na França a partir de 1998, e embora suas traduçoes no Brasil tenham chegado apenas em 2009, muito antes desta data os conceitos de Bourriaud já eram conhecidos por aqui. Em Estética Relacional (2009) o autor teoriza a partir de trabalhos artísticos europeus dos anos 1990 sobre possiveis novos questionamentos e paradigmas da arte contemporánea, como interatividade e hibridizaçao das linguagens. Ao eleger trabalhos do final do século XX, ignora a produçao de Hélio Oiticica, que já explorava estes conceitos nos anos 1960, e que certamente eram conhecidos pelo autor. A justificativa de Bourriaud é que, ao contrário da produçao artística de 1960-1970, na geraçao de 1990 "a questáo nao é mais ampliar os limites da arte, e sim testar sua capacidade dentro do campo social global" (BOURRIAUD, 2009, p.43), justificativa que nao convenceu os críticos e artistas brasileiros5. Como aponta Fialho (2015), Bourriaud "faz muito pouca referencia aos antecedentes de sua estética relacional. [...] o problema mais grave nas propostas de Bourriaud nao se refere à estética que ele defende, mas a fragilidade de seus fundamentos teóricos. Existe no livro um certo eurocentrismo [...]" ou, em outras palavras, uma postura colonialista. Estes desencontros podem ser encarados como tensoes dentro do campo que sempre privilegiam o centro (arte internacional/europeia e americana) em detrimento da periferia (arte nacional/latino-americana)6.
Mas, a despeito disso e de acordo com Bourriaud (2009, p. 151), estética relacional é um "conjunto de práticas artísticas que tomam como ponto de partida teórico e prático o grupo das relaçoes humanas e seu contexto social, em vez de um espaço autónomo e privativo", ou seja, é um segmento da arte contemporánea que se concentra nas relaçoes diretas entre espectador e obra.
É certo que a arte esteve habitualmente, em graus distintos, relacionada às relaçoes humanas e a seus contextos sociais, podendo "ser lida como uma história dos sucessivos campos relacionais externos, que mudam de acordo com as práticas determinadas por sua própria evoluçao interna." (BOURRIAUD, 2009, p. 41-42), o que está de acordo com Bourdieu e as tensoes dentro do campo como espaço de trocas. No entanto, a partir de começo do século XX, com o avanço tecnológico vivenciado pela sociedade europeia e norte-americana, novas realidades pediam inovaçoes conceituais e os artistas passaram a explorar novos temas fazendo com que a arte ultrapassasse suas próprias classificaçoes. Ainda assim, as açoes permaneciam restritas ao meio e os discursos continuavam velados por barreiras institucionais e intelectuais que nao permitiam a um público mais amplo tomar parte destas discussoes, criando um buraco conceitual e estético entre apreciaçao e fruiçao da obra que só aumentava com o passar do tempo. A partir da década de 1950, o panorama artístico começa a valorizar, além da obra final, o processo de criaçao do artista. Esta nova abordagem poética foi o ponto de partida para uma mutaçao maior dentro da arte contemporánea que se iniciou com as performances até chegar à estética relacional, onde a discussao sobre o papel do artista e do público em relaçâo à obra de arte voltará a ser questionado:
Essa historia, hoje, parece ter tomado um novo rumo: depois do campo das relaçôes entre humanidade e divindade, a seguir entre humanidade e objeto, a prática artística agora se concentra na esfera das relaçôes interhumanas, como provam as experiencias em curso desde o começo dos anos 1990. (BOURRIAUD, 2009, p. 41-42)
Interessante observar como as teorizaçoes de Bourriaud, que o autor faz questao de circunscrever à década de 1990, podem ser observadas em práticas artísticas já a partir dos anos 1960 no cenário artístico brasileiro, onde se constata a preocupaçao dos artistas em realizar produçoes em que "a prática artística apareça como um campo fértil de experimentaçôes sociais, como um espaço parcialmente poupado à uniformizaçao dos comportamentos."(BOURRIAUD, 2009, p. 13), o que por vezes ocorre apenas conceitualmente.
Apesar dos desencontros entre tradiçao e modernidade, tanto nas práticas quanto nas conceituaçôes artísticas, as instituiçôes, de maneira geral, tem procurado se reestruturar e práticas artísticas relacionais têm sido pensadas para acontecer dentro de museus e galerias, mas também para além desses espaços. Isto pode ser interpretado como uma necessidade do mercado da arte e de seus agentes em ampliar sua rede de conexao, expandindo-se economicamente para criar novos públicos, mas também passa por uma ressignifiçao do papel socialmente criado para estes ambientes que faz com que a arte, a partir da estética relacional, rompa com certas barreiras internas de seu campo.
Os Parangolés de Helio Oiticica
Hélio Oiticica (1937-1980) é um dos principáis artistas da sua geraçao que desenvolveu um processo reflexivo sobre sua obra, construído de forma crítica, como se observa nos vários registros escritos deixados pelo artista. A partir de 1958, com o Grupo Frente do Rio de Janeiro e dentro de uma poética neoconstrutivista, sua trajetória foi se construindo até culminar no que o próprio artista chama de "construtivismo favelar". Através desta abordagem, Oiticica estabelece uma relaçao "imaginativo-estrutural" entre as construçoes e apropriaçoes feitas no ambiente das favelas e sua obra "na relaçao pluridimensional que delas decorre entre 'percepçao' e 'imaginaçao produtiva' (Kant), ambas inseperáveis, alimentando-se mutuamente" (OITICICA, 2011, p. 71), relacionando as questoes formais da obra com o espaço-tempo.
Partindo de uma dissidência carioca do movimento concreto, responsável pelas principais produçoes e debates artísticos daqueles anos, Oiticica dá o ponta-pé numa produçao em que "o espaço da obra, até entao contido nos limites da tela ou do volume escultórico, tendeu agora a derramar-se pelos espaços do mundo real" (FREITAS, 2013, p. 33) utilizando-o como referência e buscando na "constituiçao do mundo dos objetos, a procura das raízes da gênese objetiva da obra, a plasmaçao direta da mesma" (OITICICA, 2011, p. 68) em uma relaçao entre arte e vida.
Dentro deste contexto, a produçao artística de Oiticica constitue-se nao apenas em um parámetro conceitual e prático, mas abrange novas relaçoes formais de construçao, extrapolando as esferas tradicionais da arte. Isto significa, analogamente ao conceito de Bourriaud que,
[...] além do caráter relacional intrínseco da obra de arte, as figuras de referencia da esfera das relaçoes humanas agora se tornaram 'formas' integralmente artísticas: assim, as reuniöes, os encontros, as manifestaçôes, os diferentes tipos de colaboraçâo entre as pessoas, os jogos, as festas, os locais de convívio, em suma, todos os modos de contato e de invençao de relaçâo representa hoje objetos estéticos passíveis de análise enquanto tais (BOURRIAUD, 2009, p. 40).
Segundo Oiticica, "trata-se da procura de 'totalidades ambientais' que seriam criadas e exploradas em todas as suas ordens, desde o infinitamente pequeno até o espaço arquitetônico, urbano etc." (OITICICA, 2011, p. 68). Assim, mesmo nao tendo analisado a obra de Hélio Oiticica, as avaliaçôes de Bourriaud cabem para as práticas do artista por conta das bases poéticas de estruturaçao de seu trabalho, que toma a vida e as relaçôes humanas como elementos formais.
O tratamento estrutural, a transiçao da cor do quadro para o espaço ainda no inicio da década de 1960 e as experiencias extremamente vivenciais do artista com a realidade das favelas do Rio de Janeiro, principalmente da comunidade da Mangueira, tiram o espectador de seu papel passivo7 e colocam-no dentro da obra. Assim, "a arte parecia enfim pronta a participar do cotidiano que lhe rodeava. A 'representaçao', enquanto arranjo de elementos sobre um fundo simbólico, [...] objetos apresentados à experiência do espectador" (FREITAS, 2013, p. 34), transforma-se em propostas sinestésicas e nao mais contemplativas, num movimento de resistência à estetizaçao generalizada, criando microestruturas individuais ou coletivas.
A criaçao da 'capa' (já realizadas a 1 e 2) veio trazer nao só a questao de considerar um 'ciclo de partidpaçâo' na obra, isto é, um 'assistir e 'vestir' a obra para sua completa visao por parte do espectador, mas também a de abordar o problema da obra no espaço e no tempo nao mais como se fosse ela 'situada' em relaçâo a esses elementos, mas como uma 'vivênda mágica' dos mesmos (OITICICA, 2011, p. 73).
Neste período as discussoes relativas à figuraçao (entendida genericamente como a tentativa de representar o reconhecível) giram em torno da "arte na esfera pública, o que se traduziu, nos anos 1960 e 1970, numa vocaçao à reinserçao da 'arte' na 'vida', para utilizar termos da época" (FREITAS, 2013, p. 48). Esta prática, no entanto, antecede o período em que Bourriaud estabelece como inicio das produçoes relacionais e remete ao aumento da disponibilidade dos materiais utilizáveis na arte de uso cotidiano, percebidos em movimentos anteriores, como o dadaísmo e em técnicas de colagem, assembblage e o ready-made. Ainda assim, essas primeiras inserçoes da vida na arte podem ser compreendidas como parciais, pois nao consideram o espectador como partícipe deste processo. Para Bourriaud, a obra de arte dentro do conceito da estética relacional acontece
[...] quando coloca em jogo interaçoes humanas, a forma de uma obra de arte nasce da interaçao do inteligível que nos coube. Através dela o artista inicia um diálogo. A essência da prática residiria, assim, na invençao de relaçoes entre sujeitos. Cada obra de arte em particular seria a proposta de habitar um mundo em comum (BOURRIAUD, 2009, p. 30-31).
Esta proposta se concretiza quando Hélio Oiticica propoe os Parangolés. Estruturas que passam a confrontar os paradigmas da forma, a funçao do artista perante a obra, que deixa de ser criador para ser o motivador da relaçao entre arte e espectador e, até mesmo o papel do receptor, que passa a ser pensado como participante. Mas antes de chegar à construçao efetiva dos Parangolés, Oiticica já registra suas preocupaçoes em relaçao às conexoes da arte com a vida em seu trabalho. Segundo o artista:
Quanto mais nao-objetiva é a arte, mais tende à negaçao do mundo para a afirmaçao de outro mundo. Nao a negaçao negativa, mas a extirpaçao dos restos inauténticos das vivencias do mundo, corriqueiras. Só assim seria lícita a exclamaçâo diante da nao-objetividade da arte. "Que sensaçao de fim de mundo" ou "de nada". O que é preciso é que o mundo seja um mundo do homem e nao um mundo do mundo (OITICICA, 2011, p. 27).
O que o artista estabelece a partir daí é um diálogo entre sua prática e a matéria que expressa sua intençao poética. Desta forma, questoes formais da arte como o suporte tornam-se um problema a ser resovido. Para o artista, "há o intermediário entre o sentido de espaço e estrutura e o espectador que recebe a ideia" (OITICICA, 2011, p. 41) que nao cabem mais nas formas tradicionais de arte. Isto faz com que na obra de Oiticica a cor passe a ser estutura e nao elemento e o suporte é extentido ao mundo real. A estrutura plana, mesmo que no espaço e nao na tela como nos Núcleos, limita a forma que para o artista deve se confundir com a estrutura, assim como o espaço se mescla com o tempo. Nota-se claramente essa transiçao de suporte na obra do artista que leva a arte à vida:
É por volta de 1965 que os Parangolés se estabelecem no trabalho de Oiticica, em uma produçao que procura "estabelecer relaçoes perceptivo-estruturais" (OITICICA, 2011, p. 69) entre o espectador e a obra.
O Parangolé revela entao o seu caráter fundamental de 'estrutura ambiental', possuindo um núcleo principal: o espectador-obra, que se desmembra em 'participador' quando assiste, e em 'obra' quando assistida de fora nesse epaço-tempo ambiental. Esses núcleos participadorobra ao se relacionarem (numa exposiçao, por exemplo) criam um 'sistema ambiental' Parangolé, que por sua vez poderia ser 'assistida' por outros participadores de fora (OITICICA, 2011, p. 74).
Esta estrutura cria uma rede de conexoes e relacionamentos e "a proposiçao artística só se efetiva, de acordo com seu autor, se aquele que 'veste' os Parangolés estiver disposto, no ato de vesti-lo, a experimentar o espaço". A obra nao precisa mais de um lugar si, "o que evidentemente se opoe à comercializaçao do mercado e à institucionalizaçao dos museus, da mesma forma que impulsiona o homem - enquanto corpo e consenso - à condiçao de elemento 'figurado' no espaço que lhe envolve." (FREITAS, 2013, p. 62), tornando-se o próprio objeto da arte.
Assim, a proposta artística toma parte da vida e se coloca no mundo para acontecer, a instituiçao de arte nao fica mais confinada ao cubo branco e se manifesta na mundo, se materializando como uma "necessidade coletiva de uma atividade criadora latente, que seria motivada de um determinado modo pelo artista" (OITICICA, 2011, p. 79), mas pensada para a participaçao, sendo necessária a disposiçao por parte do participador, uma ativaçao, para que, enfim, o processo se conclua através de uma realizaçao criativa.
A participaçao do público para Oiticica a partir dos Parangolés "é uma 'participaçao ambiental' por excelência. Trata-se da procura de 'totalidades ambientais' que seriam exploradas e criadas em todas as suas ordens [...]" (OITICICA, 2011, p. 68) como um encontrar de elementos totais que excluem a classificaçao de vulgar e erudito na arte e transformam-na em experiencias. Este referencial está presente na produçao de outros tantos artistas deste período no Brasil, como Ligia Pape e Ligia Clark, e que portanto possuem os elementos centrais do que será desenvolvido no conceito de estética relacional.
A 27a Bienal de Säo Paulo
Uma vez que Bourriaud exclui a produçao brasileira dos anos 1960-1970 da sua análise de obras que engendram a construçao do conceito de estética relacional, tomou-se a 27a Bienal de Sao Paulo como parte deste artigo afim de aproximar a teoria do crítico francés e as práticas artísticas no contexto globalizado atual. Outros tres fatores também contribuíram para esta decisao: 1) possibilita um olhar para a arte contemporánea mundial a partir de um evento, que mesmo internacional, parte de uma concepçâo nacional; 2) pode ser visto como a consagraçao de uma poética que tem inicio na década de 1960 e que ainda hoje produz ecos na arte contemporânea e, 3) mostra a procupaçao da curadoria do principal evento de arte contemporánea do pais em nao ser apenas um lugar para guardar e preservar as obras, mas sim como espaço de trocas com intençao de maximizar a aproximaçao entre arte e público.
De forma geral, os modelos expositivos procuraram ao longo da história da arte adaptar-se às novas formas de produçao artística. Segundo Sant'anna (2010, p. 28) que faz uma análise da mesma 27a Bienal de Sao Paulo, "já no inicio do século XX, os procedimentos artísticos modernos exigiam das exposiçoes novos padroes que atendessem as necessidades de montagem, de modo que facilitassem as possiveis interpretaçoes do público". Assim, a açao da curadoria se apresenta como uma ferramenta facilitadora da experiencia estética, mediando a interaçao entre arte e público, mas também como propositora de novos conceitos. Para Lisette Lagnado (2006, p. 53):
A 27a Bienal aborda essa crise da representaçao com todas as forças que pôde conglomerar em torno de seu projeto conceitual. Se o primeiro passo foi abolir as chamadas representaçoes nacionais - sistema que minava a possibilidade de implantar um projeto independente da autoridade de gabinetes -, os demais passos também pertencem ao esforço determinado de conferir uma dimensao politica a uma mostra tao importante para a cidade, o Brasil e o mundo.
O discurso curatorial enfatiza, pois, um caráter politico no sentido de "tratar de princípios da lei, do poder e da comunidade" (RANCIÈRE apud LAGNADO, 2006, p. 54) alvitrando "distintos graus de viver-junto", nao apresentados como um manual de instruçoes, mas como um questionamento às inúmeras possibilidades de convivência. O titulo da 27a Bienal foi inspirado num conjunto de conferencias de Roland Barthes, nas quais ele discutiu o espaço público e seus conflitos de interesses.
Nascida na República do Congo, Lisette Lagnado é Doutora em filosofía pela Universidade de Sao Paulo, com tese sobre Hélio Oiticica, o que ajuda a compreendermos ainda melhor as conexoes entre o trabalho do artista e um dos eixos centrais do evento. Contudo, o projeto curatorial de Lagnado8 nao foi recebido sem críticas, como na ideia de que seu fundamento teórico barthesiano agrupou trabalhos de uma forma articifical, excluindo conflitos inerentes à vida social (VILLAS BÔAS, 2012, p. 42).
E aqui, retornamos ao Hélio Oiticica. A Bienal toma como critério de direcionamento os caminhos estabelecidos pelo artista, sendo suas pesquisas tomadas como "documento teórico-práticos (sic), patamar de estranha atualidade para acompanhar os fenómenos da cultura" buscando "reunir uma série de elementos para dar sentido a sua mais importante investida: liquidar a representaçao para superar o modelo de exposiçoes" (LAGNADO, 2006, p. 55) que ainda, nos dias de hoje, insistem no modelo tradicional. Para Bourriaud, as exposiçoes de arte passaram de "unidade de base da qual é possível pensar as relaçoes entre a arte e a ideologia geradas pelas técnicas em detrimento da obra individual" (BOURRIAUD, 2009, p. 100), para promotoras de encontros entre a arte e o espectador/participador e os espaços de convivencia.
Como dito anteriormente, as proposiçoes defendidas por Bourriaud já faziam parte das produçoes artísticas brasileiras desde o neoconcretismo dos anos 1960-1970 e é na estrutura presente na poética daquele período que a curadoria da 27a Bienal de Sao Paulo se apoia. Assim, segundo Sant' Anna (2010, p. 35) "a convergência conceitual entre a teoria de Bourriaud e a curadoria de Lisete Lagnado, nao pode ser aplicada como um aproveitamento prático das teorías do crítico francés", sendo visível no evento uma preocupaçao estética que enfatiza "as relaçoes de trocas, de tempo e espaço interpessoais, ou coletivas" (SANT'ANNA, 2010, p. 37) qual seja, a consagraçao da inter-relaçao arte e vida.
Bebendo da fonte conceitual de Parangolé que transforma o mundo em museu, redefinindo os conceitos de exposiçao e das instituiçoes de arte, discutindo a territorializaçao do individuo na linguagem de novos artistas, a 27a Bienal de Sao Paulo segue o raciocinio de Rancière sobre a "partilha do sensível" e propoe a "existéncia de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas" (RANCIÈRE apud LAGNADO, 2006, p. 59) refletindo uma nova realidade referente à arte, à vida e às interconexoes entre elas. A expografia do evento reflete estas metas, como na imagem a seguir. Além disso, a organizacao de seminários internacionais e residencias artísticas pela Bienal atestam para a importância das trocas e de produçao de conhecimento.
Desta forma, seja pelo viés de Nicolas Bourriaud ou pelo referencial teórico-prático de Hélio Oiticica, a 27a Bienal de Sao Paulo reflete sobre a aproximaçao do público na interaçao entre arte e vida e aborda esta temática a partir de trabalhos atuais que levam em consideraçao as novas formas de convivencia e as relaçoes políticas por trás desses rizomas identitários.
Nao foi apenas uma Bienal expositiva, mas uma exposiçao propositora, que reforça neste sentido o conceito de Bourriaud, em que a arte contemporánea nao se liga mais a forma, mas a formaçoes. Neste sentido, é importante ressaltar que como um evento que se propunha como, ou através da estética relacional, a 27a Bienal de Sao Paulo nao só cumpre seu papel como também dialoga perfeitamente com os trabalhos apresentados. Isso pode ser notado na forma como o público pode conduzir sua visita. Os caminhos sao propostos, nao estabelecidos, e desta forma, as possibilidades de trocas e relaçoes acontecem de forma independente.
Se a estética relacional parte do ponto inicial de trocas e relaçoes, todo o lugar torna-se possível para a arte. Segundo Bourriaud (2009, p. 83) "o que costuma chamar 'realidade' é uma montagem. Mas a montagem em que vivemos será a única possível?". A estética relacional sugere que nao, e a sua consagraçao através da 27a Bienal de Sao Paulo confirma que os caminhos têm se mostrado abertos, gerando e renovando sentido na arte. Ainda há, contudo, "oscilaçao entre a arte da desformalizaçao integral e uma arte da exposiçao da imagem fixada, do fetiche" (LADDAGA, 2012, p. 153), revelando que o entrelaçamento entre e arte e vida é apenas uma linha-guia da arte contemporánea.
Neste contexto, o papel do curador também se mescla e tornase coletivo, pois "na medida em que as bienais se tornam maiores e mais complexas, a curadoria coletiva surge como opçao de método de trabalho, [...] cria-se a possibilidade de um diálogo crítico com múltiplos pontos de vista" (PEDROSA apud LAGNADO, 2006, p. 83- 84), mostrando que os modelos expositivos, desde sua concepçâo, tem se preocupado em se adaptar às poéticas da globalizaçâo.
CONSIDERACOES FlNAIS
Tendo a estética relacional como eixo norteador, buscou-se aproximar a produçao poética de Hélio Oiticica dos anos 1960-1970, a conceitualizaçâo do tema pelo crítico francés Nicolas Bourriaud e a 27a Bienal de Sao Paulo como 'validadora' deste tema da arte contemporánea.
Partindo da análise dos trabalhos de Oiticica do período de 1960-1970, é possível pensar suas práticas como fundadoras da estética relacional. Em 1967, no catálogo da exposiçao coletiva Nova objetividade brasileira, o artista prescreve à vanguarda brasileira estas características:
1. Vontade construtiva geral; 2. Tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro e o cavalete; 3. Partidpaçâo do espectador: corporal, tátil, visual e semántica; 4. Abordagem e tomada de posiçao em relaçao aos problemas políticos, sociais e éticos; 5. Tendéncia para uma arte coletiva e consequente aboliçao dos ismos; 6. Ressurgimento e novas formulaçôes do conceito de antiarte (FREITAS, 2013, p. 67).
Assim, para Oiticica, estes termos se aplicavam ao que ele chamava de 'arte ambiental', mas conceitualmente os parámetros poéticos utilizados eram os mesmos da estética relacional, que seria sintetizado por Nicolas Bourriaud a partir de obras de artistas europeus dos anos 1990.
Ao estabelecer como critério de análise das produçoes relacionais uma "teoria estética que consiste em julgar as obras de arte em funçao das relaçoes inter-humanas que elas figuram, produzem ou criam (Cf. Critério de coexistencia)" (BOURRIAUD, 2009, p.151), fica clara se nao a divida, ao menos a exclusao deliberada de Oiticica e outros artistas brasileiros que compartilhavam destes preceitos dos exemplos inspiradores para a teorizaçâo de Bourriaud, numa atitude típicamente eurocêntrica.
A curadoría proposta por Lagnado para a 27- Bienal de Sao Paulo estabelece as mesmas relaçoes de julgamento de Bourriaud em uma proposiçao de "curar-junto", onde as inter-relaçoes de diversos curadores geram múltiplos pontos de vista e, por consequência, rizomas intermináveis de relaçoes, em uma assinatura conjunta que parte da questäo relacional da arte, buscando estabelecer um diálogo de aproximaçao com o público.
Desta maneira, no que se refere aos diálogos entre a 27a Bienal de Sao Paulo e os conceitos de Nicolas Bourriaud as aproximaçoes convergem a partir das questoes poéticas e estéticas conectadas por discussoes políticas, sociais, relativas ao grupo, ao coletivo e ao interpessoal. As obras projetam novos modelos de convivencia partindo de relaçoes e interaçoes, como uma espécie de reaçao ao mundo atual. Ao mesmo tempo, afastam-se do modelo de "informaçao que pode se dirigir a qualquer sujeito possível sem implicar em custo maior e só adquire sentido e valor para um sujeito capaz de decifrá-la e saboreála" (BOURDIEU, 2003, p.113), pois nao exigem do espectador uma contemplaçao passiva e sim uma fruiçao relacional.
O evento analisado cumpriu, pois, sua funçao mediadora, principalmente no que se refere ao diálgo com o público9, ponto chave de todos os questionamentos propostos, seja pela 'arte ambiental' de Oiticica, ou pela estética relacional de Bourriaud, colocando o agente receptor no centro dos diálogos e criando instrumentos que garantem o acesso à obra e a ampliaçao de repertório do espectador/participador. Há ainda uma extrapolaçâo de conceitos, quebra-se a formalidade do espaço expositivo ampliando os espaços de trocas, através de redes, "conjuntos abertos, cujos componentes se tecem entre si" (LADDAGA, 2012, p.161). A recepçâo da obra deixa de depender do "controle que o receptor tem do código" (BOURDIEU, 2003, p. 120) para estabelecerse através das relaçoes interpessoais com o objeto de arte e o contexto do lugar. Desta forma, a 27a Bienal contribuiu para o afrouxamento do controle do código, ao buscar compartilhar e dialogar com um público mais amplo.
A partir das aproximaçoes analisadas percebe-se que as relaçoes estabelecidadas entre a arte, suas estruturas formais e conceituais e seus agentes vêm sendo repensadas e a experiencia estética passa a ser um ponto central. Atualmente, o que se vê na arte contemporánea de maneira geral, sao obras que se realizam em proposiçoes que absorvem o entorno e ganham sentido em vários lugares, tornando a linguagem global e relacionando-se com a vida. De certa forma;
[...] o que estes projetos se propoem é conceber e instrumentar mecanismos para que uma coletividade mais ou menos vasta e diversa possa regular suas interaçoes ao mesmo tempo que se ocupa da construçao de imagens e discursos em um espaço que seu próprio desenvolvimento fabrica (LADDAGA, 2012, p. 164).
Sendo assim, novos valores sao introduzidos e a ausencia de familiaridade com os códigos da arte, que para Bourdieu condenaria o público a "importar, em seu exercício de percepçâo e apreciaçao da obra de arte, categorias e valores extrínsecos, ou seja, precisamente as categorias e valores que organizam sua percepçao cotidiana e orientam seus juízos práticos" (BOURDIEU, 2003, p. 82) passam a ser visto pela arte contemporánea como requisitos essenciais de apreciaçao.
Assim, como a visualidade torna-se um problema para os artistas dos anos 1960-1970 através da banalizaçao da reprodutibilidade técnica, a construçao poética volta-se para "experiência que envolve profunda e auténticamente o sujeito, criador ou espectador" (FREITAS, 2013, p. 167), criando-se "a vontade de dialogar com o processo de estetizaçao do cotidiano" (FREITAS, 2013, p. 171) e instituindo com isso novas formas de interaçao entre arte e público, entre arte e vida. Ao fazer isso ressignifica os processos da arte, "interroga o social e o político ao extrapolar a limitaçâo do 'objeto de arte'" (FREIRE apud LAGNADO, 2006, p. 109).
Desta forma, como a construçao da obra de arte passa a depender de trocas entre as pessoas, o espaço expositivo, seja este uma galeria ou um museu "também pode servir como material bruto para um trabalho artístico" (BOURRIAUD, 2009, p.52), pois "qualquer produçao, depois de ingressar no circuito das trocas, assume uma forma social que nao guarda mais nenhuma relaçao com sua utilidade original" (BOURRIAUD, 2009, p.58), fazendo com que os objetos estéticos tornem-se instrumentos de conexao. Portanto, as aproximaçoes entre Helio Oiticica, Nicolas Bourriaud e a 27a Bienal de Sao Paulo revelam-se através de "negociaçoes, vínculos, coexistências, [...] relaçoes possíveis entre unidades distintas, de construçao de alianças entre diferentes parceiros." (BOURRIAUD, 2009, p.63), onde a arte passa a existir através dessas trocas.
É a partir da postura confrontadora e experimental que emerge na arte dos anos 1960-1970, muito vinculada ao cenário político, que novas relaçoes sao propostas e a arte passa a criar novos mundos, fazendo com que as reflexoes deste período nao conduza para um estudo apenas estético, mas para uma reflexao de funcionamento deste objeto artístico na sociedade e suas relaçoes com a instituiçao de arte, deixando esta de ser uma totalidade em si, mas parte de um processo maior.
A obra como documento incorpora o transitorio do tempo e ensina sobre a fugacidade da vida. Como buscar a permanencia de algo que definitivamente escapa? Na relaçao entre o objeto e o registro, a obra se torna índice de algo ausente (FREIRE apud LAGNADO, 2006, p. 113).
Esse registro do atemporal pode fugir à sensibilidade do espectador, mas é parte da práxis do fazer artístico. Neste processo, a instituiçâo artística entra como legitimadora do processo e valida o que pode ser confundido apenas como processos do cotidiano. Entretanto, a instituiçâo näo está limitada mais aos museus e galerias, aos espaços físicos, mas passa a ser um "território vivencial, definido por espaços densos de sentidos, onde o psíquico e o social se fundem aos traços da memória individual e coletiva" (FREIRE apud LAGNADO, 2006, p. 114). É essa relaçâo que tanto o trabalho de Oiticica, o conceito de Bourriaud e a Bienal de Sâo Paulo estabelecem com a arte contemporánea. As ligaçoes e as relaçoes entre arte e vida permitem uma expansao poética para o artista e aproximam fisicamente a arte do público. Desta forma, a ausência de algumas definiçoes deixam lacunas que nâo podem ser preenchidas pelo modelo antigo, tanto da arte quanto das exposiçoes, propondo entâo novos lugares para serem experimentados.
3Costaríamos de agradecer a leitura atenta e cuidadosa e os comentários dos avaliadores deste artigo.
4Vale notar que a ideia de um "gosto pessoal" é uma crença de senso comum, que nao faz sentido na sociologia de Bourdieu (2007). O autor faz justo o contrário: desnaturaliza as preferencias estéticas individuais, revelando que elas derivam de disposiçoes internalizadas ao longo da vida, que compöem o habitus, e que a construçao do gosto leva à distinçao social.
5Essa polémica pode ser percebida através do relato da palestra de Nicolas Bourriaud no Seminário Internacional Trocas, 10 de outubro de 2006.(FIALHO, 2015).
6É oportuno remeter este modelo de análise a Ginzburg e Castelnuovo (1991), que apontam que esta relaçao nao é apenas de difusao, mas perpassa a esfera das disputas.Na mesma direçao, Alain Quemin (2001) tem problematizado este modelo mostrando que, mesmo no centro, há abismos e tensoes. Na referida pesquisa, o autor francés mostra que no que concerce às exposiçoes de arte contemporánea, os Estados Unidos tem um peso muito maior nos rumos do mercado que a Europa. Poderíamos pensar, entao, dentro do escopo deste artigo, a partir do conceito de "universais do norte" (North atlantic universals") de Trouillot (2002), para nos referirmos a um sistema de valores oriunos do norte e com grande influência no sul.
7A ideia de passividade do espectador, difundida a partir da Escola de Frankfurt, foi revista pelos Estudos Culturais que, a partir de pesquisas de recepçao, mostram que os produtos culturais sao assimilados, ou recebidos, de formas diversas pelos individuos, e que uma série de variáveis sociais afetam formas de recepçao. Desta forma, quando usamos o termo passivo neste artigo, o fazemos de forma um pouco caricata, com o intuito de marcar uma distinçao entre uma arte "retiniana" e outra "relacional".
8 Os co-curadores foram Adriano Pedrosa (Brasil), Cristina Freire (Brasil), José Roca (Colômbia), Rosa Martínez (Espanha) e Jochen Volz (Alemanha/Brasil)
9 Um dos resultados divulgados pela Fundaçao Bienal foi o comparecimento de mais de 100 mil estudantes na mostra. Mérito da açao educativa realizado em paralelo com a exposiçao, que mostrou a preocupaçao em nao só quantitativa, mas também qualitativa (http:// entretenimento.uol.com.br/27bienal). Este dado é o resultado de um dos pontos do projeto educativo que visava trazer "estudantes da periferia e estudantes do ensino fundamental e médio, aniosos por conhecimento e orientados previamente por professores das redes pública e privada" (COSTA apud LAGNADO; PEDROSA, 2006, p. 5).
Referencias
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Luana Haüptman Cardoso de Oliveira1
Amelia Siegel Correa2
1 Especialista em Historia Social da Arte pela PUC/PR e mestranda em Historia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil. [email protected]
2 Doutora em Sociologia pela USP e Pós-doutoranda em Sociologia pela UFPR, é também professora do curso de especializaçâo em Historia Social da Arte da Pontificia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR), Brasil. [email protected]
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Copyright Universidade Estadual de Londrina, Depto de Ciências Sociais Jul-Dec 2016
Abstract
The concept of Relational Aesthetics is based on a poetic construction centered on human and social relationships, and it is usually thought outside the artistic institutions environment. This kind of practice gets stronger in the 1960s and the 1970s, and it stands out on the poetry of the artist Helio Oiticica, mainly on his work entitled Parangole. However, the conceptualization of this theme happens only in 1990, by the french critic Nicolas Bourriaud, who disregards Oiticica's work, focusing his analysis on the work of European artists from the end of the 20th Century. Finally, although these poetic intentions refer from the 1960s, they were institutionally celebrated inside the Brazilian scene only in 2006, at the 27th Sao Paulo Biennial. This article seeks, therefore, to reflect upon these conceptual mismatches and the different temporalities that runs through the three above-mentioned events.
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