Resumo: A partir de referências da etnomusicologia, este artigo discute a abordagem da questão do hip hop e da música rap, enquanto estilo integrado no fluxo global de mercadorias, de idéias, estilos, ou como matéria linguística e cultural, que é central na vida de muitos jovens pertencentes aos subúrbios dos grandes centros urbanos, mas também apreciado por um público mais vasto.
Palavras-chave: Hip hop. Música. Cultura periférica. Etnomusicologia.
1 Hip hop e poesia
A cultura hip hop surgiu nos guetos nova-iorquinos, nos Estados Unidos, na década de 1970 (ainda que o ritmo do rap tenha origem anterior na Jamaica). Trata-se de um empreendimento coletivo, e abarca manifestações artísticas nos campos da música (RAP, sigla derivada de rhythm and poetry - ritmo e poesia, uma espécie de canto falado ou fala rítmica), das artes visuais (grafite) e da dança (break). Articulando elementos de matriz africana, história dos afrodescendentes e o cotidiano das ruas, da vida urbana, o hip hop difundiu-se em festas, criadas pelo DJ americano Afrika Bambaataa, que tinham o propósito de diminuir as brigas de gangues que assolavam os bairros pobres de Nova York e, ao mesmo tempo, reivindicar ações públicas estatais que garantissem a melhoria de vida dos negros e latinos, bem como denunciar a violência policial e as discriminações sofridas por essas pessoas.
Com efeito, concordamos com o filósofo americano Shusterman (2006) em sua análise do hip hop, na perspectiva da relação entre arte e política. Conforme esse autor, convencionou-se separar arte e realidade como se fossem esferas estanques e opostas. A verdade, o conhecimento da realidade, a ação prática e política só poderiam ser apreendidas via discurso científico ou filosófico. À arte caberia apenas o espaço da estética. O hip hop, em certo sentido, rompe com essa dicotomia, sendo que "[...] um dos mais maravilhosos e profundamente revolucionários aspectos do hip hop é o desafio de seu dualismo." (SHUSTERMAN, 2006, p. 67).
A cultura hip hop, caracterizada como uma prática social promovida pelos jovens pobres, principalmente pelos jovens negros, atua no sentido de dar visibilidade à população negra, no sentido da constituição da identidade e no crescimento da autoestima do negro-descendente, uma percepção de si mesmo menos estigmatizada. Assim, ao trazer à tona a problemática da desigualdade racial, propõem trabalhos de combate efetivo ao racismo e à baixa autoestima dos negros das periferias.
Nesse contexto, o sentimento de pertencer a uma identidade étnica, encontrase associado no hip hop, politicamente, a uma abordagem crítico-emancipatória de diálogo com o espaço público, de se compreender parte de uma história e de se territorializar no espaço de forma representativa. A questão da negritude ressurge como tema central no hip hop para se pensar, criticar e enfrentar a exclusão social, o que tem levado, por consequência, à racialização da discussão.
A possibilidade de entendimento dessa questão apresenta evidências empíricas para confirmar aquilo que os Estudos Pós-Coloniais e culturais têm apontado que as políticas de combate ao racismo seriam demandas emergentes da diáspora atuando como movimento social transnacionalizado.
Nesse contexto, foi na busca por abordagens diferenciadas dessa questão que encontramos, em estudos desenvolvidos por intelectuais Gilroy (2000, 2001, 2007), Hall (2002, 2003), Bhabha (1998a, 1998b ) e Appiah (1997), os elementos teóricos para essa tarefa.
O não-reconhecimento do outro como sujeito de interesses e aspirações representa nada mais do que uma forma de sociabilidade que por hora não se completa, porque regida por uma lógica de anulação do outro como identidade. Nesse âmbito, a cultura hip hop tornou-se a senha para a definição de novas formas de localidade identitárias (locais, regionais, nacionais) e de novas globalidades - identitárias - de africanidades que atravessam fronteiras.
O hip hop enquanto manifestação cultural associada à origem africanadiaspórica encontra-se vinculada naquile espaço imaginado e denominado por Paul Gilroy de Black Atlantic1. Por meio desse conceito, Gilroy (2001) confrontou as posturas comuns entre os pensadores da condição negra argumentando, de modo convincente, contra os discursos de inspiração nacionalista e romântica que têm a África como origem de uma cultura negra pura. Foi, pois, com a metáfora do "Atlântico Negro" que Gilroy demonstrou como as culturas africanas, na África e na diáspora, nunca viveram hermeticamente fechadas em si mesmas e nem são grupos homogêneos sem divisões internas de gênero e classe. O "Atlântico Negro" é concebido, portanto, nessa perspectiva, como uma formação rizomática e fractal que entrelaça o local e o global. Com a conscientização ou mudança da "forma de pensar", surge na cultura hip hop o reconhecimento e a valorização das raízes africanas ("da raça"), assim como uma forte identificação com aspectos relativos à "negritude". Contudo, "negritude", ou ser negro, não está associado essencialmente a aspectos fenotípicos, mas, sobretudo, a um processo de tornar-se negro. Assim, tornar- se negro implica um processo de reconhecimento e de percepção do pertencimento a um coletivo. Nesse sentido, os jovens constroem sua noção de "negritude" a partir da identificação de elementos comuns encontrados na história da diáspora africana e das experiências conjuntivas de discriminação e de segregação.
Nos lembra Stuart Hall (2003) que diáspora é um conceito baseado fundamentalmente nas noções de alteridade e diferença. Esta vista tanto da perspectiva do desigual colocada a partir de uma análise binária, quanto numa relação de posição e interação não binárias, explicitando "fronteiras veladas". Diáspora seria uma elaboração um tanto imprecisa, de difícil delimitação, uma vez que exposta a intercâmbios constantes com demais culturas em vigor numa mesma geografia, num mesmo tempo.
A diáspora africana pode ser dita, pela sua suposição de uniformidade e vínculo, como uma "nação" sem território e sem estado, muitas vezes em confronto com estes e seus elementos de afirmação cultural e produção de identidades, num constante processo de hibridização (CANCLINI, 2001) compreendida como aproximação, confronto e encontro de tradições recriadas à medida que a modernidade se instala.
Néstor García Canclini desenvolve o conceito de hibridismo, ou culturas híbridas, que parte do pressuposto de que não existe uma cultura pura, e que os processos de globalização tendem a intensificar a interculturalidade planetária - a unicidade cultural rompeu-se: desterritorializa-se. A identidade local estaria, neste caso, em um processo de tradução cultural. Diferentemente de se buscar a identidade única (do seu entendimento via tradições do passado), a identidade rearticularia as novas informações culturais (CANCLINI, 2001).
Como sua manifestação simbólica a cultura hip hop apontaria a existência de um contexto político-cultural transnacional que incorporaria e, ao mesmo tempo, inspiraria as manifestações que emergem nas fronteiras geográficas locais. Embora seja um produto da cultura norte-americana da década de 1970, a cultura diásporica do hip-hop é absorvida por jovens negros de comunidades periféricas em centros urbanos em escala global e transformada em produto nacional, associando-se a significantes da cultura local.
Em termos de "construção identitária", no âmbito da visão multidisciplinar dos Estudos Culturais, o embate entre "localização da cultura" -- para usar livremente a expressão de Homi Bhabha (1998b) -- e a questão da desterritorialização, introduzida pelos fluxos globais, (teorizada também por Stuart Hall), desencadeia uma lógica que não exige o fim das referências locais, mas as reinscreve num terreno em que estas não mais podem se definir pelo isolamento nem tampouco pela territorialidade.
A globalização (na forma da especialização flexível e da estratégia de criação de "nichos" de mercado), na verdade, explora a diferenciação local. Assim, ao invés de pensar no global como 'substituindo' o local, seria mais acurado pensar uma nova articulação entre 'o global' e 'o local'. [...] Entretanto parece improvável que a globalização vá simplesmente destruir as identidades nacionais. É mais provável que ela vá produzir, simultaneamente, novas identificações 'globais' e 'novas' identificações 'locais' (HALL, 2002, p. 77-78).
Nesse sentido, as culturas afro, desterritorializadas e suas manifestações culturais como o hip hop, nos apontariam para a existência de um contexto políticocultural transnacional. Do ponto de vista dos Estudos Culturais estamos vivendo a emergência de um "outro pensamento", um pensamento liminar que aponta para uma razão pós-ocidental, ou seja, razão subalterna lutando para afirmação dos saberes historicamente subaltemizados, a partir da tomada de uma consciência coletiva para pensar essas historicidades e dinâmicas transformativas, na ótica do sujeito protagonista (MIGNOLO, 1996). Então, estamos numa etapa em que as concepções de mundo até recentemente dominantes e universais vêm sendo questionadas.
Recentemente, esses trabalhos começaram a ser debatidos por teóricos como Costa (2003, 2006), Gilroy (1994, 2000, 2001, 2007), Hall (2002, 2003), Bhabha (1998a,1998b), Appiah (1997), Mignolo (1996), os quais têm procurado se distanciar daquelas concepções que lançam mão da metodologia e da narrativa histórica da sociologia moderna para ampliar o leque de alternativas conceituais disponíveis, deslocando-se para uma discussão que aponta não apenas os limites, mas também as possibilidades oferecidas pelos Estudos Pós-Coloniais, suas contribuições para a renovação da teoria social contemporânea.
Para Costa (2003; 2006), ainda que esses estudos não constituam propriamente uma matriz teórica, por tratar-se de uma variedade de contribuições com orientações distintas, apresentam como característica comum o esforço de esboçar, pelo método da desconstrução dos essencialismos, uma referência epistemológica crítica às concepções dominantes de modernidade.
Desse modo, para apresentar uma discussão a respeito da dinâmica desses fluxos comunicativos transnacionais que traga elementos novos para a análise dessas políticas, partimos desses estudos, embora não possuam uma metodologia rigorosamente unificada, têm um objeto de investigação bastante evidente: propõemse a estudar os confrontos entre culturas que estão numa relação de subordinação, ou seja, a marginalidade póscolonial, considerada segundo uma perspectiva espacial, política e cultural. Assim, teorização sobre questões relativas ao sujeito, nas suas dimensões de identidade social e de subjetividade se faz aqui presente.
Efetivamente, o hip hop como uma manifestação sócio-histórica-cultural que procura, num exercício permanente de metalinguagem, negociar entre as experiências de marginalização, opressão, escassez, estigma social, preconceito étnico, etc, vem exatamente de sua capacidade de tradução e ampliação do sentimento de injustiça presente entre populações que vivem a margem da efetivação de justiça social, ou seja, da inclusão e do reconhecimento dos princípios de igualdade.
Para tanto, o hip hop é uma arte reconhecida como ferramenta educativa e tem potencializado seu caráter político e transformador, de autorreflexão, como canal de participação e de pertencimento histórico (ligação com o passado) e social (ligação com o presente) capaz de viabilizar espaços de aprendizagem, conhecimento e de ampliação da cidadania. Significativamente, concluímos que a narrativa identitária na cultura hip-hop se constrói por meio de uma reflexividade que tem um papel muito importante no processo de (re)construção, (re)significação e compõem as subjetividades dos atores sociais, o sujeito que reflete sobre seu social e se torna o protagonista social de sua própria história.
Na tentativa de compreensão do hip hop como uma manifestação sóciohistórica-cultural que procura, nos dias atuais, num exercício permanente de metalinguagem, negociar entre as experiências de marginalização, opressão, escassez, estigma social, preconceito étnico, etc, torna-se interessante considerar a configuração da na nova fase atual da sociedade. Considerando a paisagem em relevo, especialmente os aspectos midiáticos e culturais, estamos diante de complexas e novas configurações que emergem da contemporaneidade.
Entre as inúmeras e variadas análises sobre o tema, citamos Fredric Jameson (1995, 2001) e a teoria sobre a pós-modernidade ou capitalismo tardio. Para o autor o avanço que o tecnológico alcançou a ponto do tecnologicamente novo passar a ser o próprio objeto do consumo cultural e cultura pós-moderna a expressão de uma danificação do sujeito histórico. Nessa concepção, Fredric Jamenson faz a reapropriação da teoria oriundas do marxismo adorniano, reconhecimento a atualidade de Adorno para a compreensão das atuais transformações da sociedade contemporânea mediante as categorias não-identidade e modo de produção (ADORNO ; HORKHEIMER, 1986). Para Jameson, a modernidade esgotou a sua possibilidade de forjar um sujeito autônomo, naquele sentido apontado pelo projeto do esclarecimento, na medida em que a reificação, expandida à era pós-moderna, impossibilita-nos de pensar o econômico e o estético como duas esferas distintas. Canclini (1997) e Bauman (1998, 2002), partindo de análises com suportes empíricos distintos, chamam a atenção para o fato de que o consumo poderia ser analisado como uma forma de tornar mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora. Assim, adquirir objetos, organizá-los pela casa ou no próprio corpo, darlhes um lugar em uma ordem, designar-lhes atributos passíveis de estabelecer uma comunicação com os outros, são os recursos para se pensar a instável ordem social e as interações incertas com os demais.
O fato é que vivemos num período histórico em que a valorização exacerbada do tempo presente não nos permite olhar o passado enquanto força instauradora, mas como algo que passou e é incapaz de fazer sua aparição e irromper no presente. Todas as perspectivas de transformações e mudanças, a espera por uma vida melhor, as promessas por dignidade, estão depositadas num futuro que nunca chega. O presente então, eterniza-se. A humanidade sofre hoje de uma amnésia paralisante: esquecemos saber olhar o passado como uma força instauradora. Impedimos assim, que essa força possa vigorar no presente e, desse modo, interferir no futuro.
Diante de certo do padrão mercadológico que vem influenciando o mundo contemporâneo, chamamos a atenção para o perigo da "unidimensionalização" do hip-hop, o que pode desembocar na supressão e redução da possibilidade de que este se constitua num meio de expressão espontânea das características individuais. Pode-se dizer que a mercantilização estandardizada da vida cotidiana constitui hoje um dos principais cânones de localização do próprio indivíduo no processo social, à medida que o consumo é visto como sinônimo de "real" existência e a identidade passa, então, a ser formada e transformada continuamente pelos sistemas culturais mundializados que nos rodeiam, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno até aqui visto como um sujeito unificado (HALL, 2002).
Percebemos, nos últimos anos, um aumento do espaço dedicado às populações de baixa renda nos meios de comunicação de massa. Seja nos noticiários embalados pela violência e a miséria, seja no cinema nacional contemporâneo que vem adotando a temática urbana e consequentemente, produzindo filmes que têm como personagens principais excluídos sociais marcados por um histórico de violência e miséria extremos. Os meios de comunicação de massa são capazes de tudo representar, desde que o fenômeno social se ajuste ao "olhar" de seus equipamentos da mídia, de forma que o resultado final, inevitavelmente, é modificado. É o que ele denomina penetrabilidade: os meios de comunicação penetram nos processos sociais, modificando-os em função de seus próprios modos operatórios (BRAGA, 2001). Diante deste quadro, alguns autores têm demonstrado preocupação quanto ao papel socializador (ou dessocializador) da comunicação de massa. Primeiramente, preocupam-se com o conformismo, a resignação política ou a passividade que estes meios parecem reforçar, como já discutido. Depois, alertam para o peso que a mídia tem tido na formação das novas gerações, na produção e reprodução da ordem simbólica, equiparando-se ou até superando os clássicos aparelhos ideológicos - família e escola, especialmente (SODRÉ, 1984; MARTÍN-BARBERO, 1987; MANCEBO, 2000).
A necessidade de teorização a respeito da alteridade na sua relação com a identidade emerge nos desdobramentos da cultura hip hop no diálogo com os meios de comunicação de massa, não apenas como um produto de entretenimento e diversão, consumo de massa, objeto de consumo cultural, ou como mercadoria cultural, mas partindo do pressuposto da produção que gera uma espécie de contrafluxo no movimento de um discurso pós-político por meio do intercâmbio com o resto do globo, seja sob a forma de palestras, eventos, seja nas parcerias musicais, irradiando na elaboração de novas identidades presentes na contextualidade social. Nesse sentido, alertamos para análises, dentro da tradição da cultural theory - como Mike Featherstone (1995), Robertson (1997), Appadurai (1977) - que não compartilham da tese da inevitabilidade da homogeneização cultural e dos homens. Para eles, a globalização não imporia uma unificação cultural; a produção de símbolos culturais e de informações em massa não conduziria ao surgimento de algo semelhante a uma "cultura global". Afirmam, sem descartar a possibilidade de processos desiguais de imposição cultural, que o processo de globalização, mais do que permitir o aparecimento de uma cultura global unificada tende a propiciar um cenário para a expressão e expansão das diferenças.
Afinal, trata-se de rever, criticamente, o processo global com todos os seus instrumentos midiáticos, a própria referência identitária, e as manifestações culturais artisticas presentes na sociedade.
2 Panorama Brasil e cultura periférica
No Brasil a primeira manifestação que temos do hip hop remonta a meados dos anos 1980 com a dança break. Contudo, a história inicia-se bem antes no final dos anos 1960 começo de 1970 com os bailes blacks e a composição, pelos seus freqüentadores, do visual black power: cabelo black, sapato mocassin ou plataforma, calça boca de sino; ao mesmo tempo em que esses sinais diacríticos os identificavam como membros de um grupo específico também indicava uma forma simbólica de resistência demonstrada pela tentativa de consolidação do ideário black power, da identidade étnica, no orgulho da raça, no fortalecimento dos traços negróides, na afirmação da beleza negra; em contraste ao modelo imposto por uma época escravocrata cujo modo pelo qual o "meio negro" se incluía na ordem social estabelecida que impedia sua livre manifestação ao dar lugar a decepções e frustrações incontroláveis, o que levou à deformação da personalidade do negro sempre apresentado como submisso, dedicado, servil, cônscio de seu lugar, laborioso. Desse modo com as expressões - cabelo de negro ou pixaim de negro, beiço rombudo, negro beiçudo, catinga de negro, sujo que nem negro, negro porco, feder que nem negro - a cor da pele e as características fenotípicas foram operando como referências que associavam de forma inseparável raça e condição social, o que levava ao afrodescendente à introjeção de um juízo de inferioridade; não somente quanto ao aspecto racial, mas também em relação às condições socioeconômicas, o que implicou no favorecimento de uma concentração racial de renda, de prestígio social e de poder por parte do grupo dominante. Entretanto, como há a negação do preconceito racial por parte deste mesmo grupo, essa atitude tendia a manter o conceito de serem as misérias inerentes ao destino humano do negro. A deformação do processo de percepção e de identificação das "pessoas de cor" respondia, portanto, à necessidade de "mantê-las em seu lugar", compartilhado em escala coletiva pelos "brancos", de preservar inalterável a distância que os separava dos "negros" tanto social quanto culturalmente (FERNANDES, 1978).
Assim, as representações negativas forçaram uma redefinição da personalidade do negro, altamente desfavorável à sua aceitação livre e franca como um igual, impondo uma pressão assimilacionista. A plasticidade do comportamento social humano e do funcionamento das instituições sociais permitiu, na época escravocrata, uma sociedade crônica que operou sob condições de equilíbrio primordial ao sistema operante em direção à normalidade do funcionamento e do desenvolvimento da ordem social como um todo.
Os bailes black - Asa Branca, Dama Xoc, Sandália de Prata, Sedinha da Vila das Belezas, Leste 1, Palácio, Esporte Ball, Clube da Cidade entre outros -, contribuíram e muito para o desenvolvimento do rap em São Paulo. Através deles, clássicos do rap norte-americano foram veiculados e concursos foram realizados.
Através dos concursos de rap nos bailes temos, em 1987, o registro do primeiro disco da Kaskata's A Ousadia do Rap. Aqui o beat seco e as experiências eletrônicas dos DJs aparecem em todas as faixas do LP; um dado até então característico dos bailes era de valorizar o ritmo em lugar da mensagem. Assim, o rap passa a ser denominado pelo nome "balanço".
Outro disco voltado ao rap no interior dos bailes blacks em São Paulo sai com o nome O Som das Ruas (EPIC/CBS, 1988), com colaboração da equipe de baile Chic Show. Gravado na Fantastic Voyage Studio, alguns grupos importantes posteriormente para o cenário do Rap Nacional fariam aqui sua primeira aparição: Os Metralhas (O Rap da Abolição), Catito (Sem Querer), Ndee Rap (Melô da Largatixa e Rap de Arromba), Mister (Melô da Chic), De Repent (Rap Love e Pega Ladrão), Sampa Crew (Foi Bom), DJ Cuca (Check my Mix) e Dee Mau (Rap no Francês). No conjunto do disco encontramos letras descontraídas, clima festivo, músicas românticas, satíricas.
Os grupos de Rap nacional que se vinculavam diretamente aos bailes blacks como Pepeu, Geração Rap, De Repent, Ndee Rap, Sampa Crew, Os Bacanas, Misther Théo, Dee Mau, Frank Frank, Big Flea & DJ Jack encaixam-se no estilo festivo da dança, na brincadeira no desafio das rimas valorizando ritmo e melodia mais do que propriamente a crítica política, acusados de vazio por não trazerem nas letras uma mensagem social.
Fiquei sabendo de um tal de Pepeu
que canta rap bem melhor do que eu.
Em matéria de combate vamos combater agora
espero só você aparecer.
Estou pintando, estou chegando agora e
se a guerra não termina
juro que não vou embora.
Só quero ver se você me desafia,
Me levando no rap 4 nomes de menina.
Ruth, Carolina, Beth, Josefina.
Acabei de lhe dar 4 nomes de menina...
(PEPEU, 1989).
Durante certo período grupos originários das ruas foram vaiados ou até mesmo boicotados por se apresentarem em bailes blacks devido à tremenda rivalidade que havia em torno do estilo, gênero e gosto musical dos freqüentadores dos bailes; foi assim que as equipes resolveram apenas reunir num evento apenas apresentações de grupos que tivessem a mesma origem comum: som dos bailes ou som das ruas. Contudo, tanto o universo das ruas (marcado pela contestação política) como o universo dos bailes (músicas em tom festivo) foram o estopim para os experimentos surgidos inicialmente na cena rap de São Paulo.
Cabe ressaltar que o poder masculino tem se expressado em termos quantitativos no rap paulistano dessa primeira fase da cultura hip hop no Brasil. Mas, é bem verdade que desde coletâneas pioneiras a presença feminina é notada. Foi através da gangue de break Nação Zulu que a rapper SharyLaine, Ildislaine Mônica da Silva, 32, conheceu o hip hop e aderiu ao movimento, estando nele desde 1986. Com Marrom, integrante da equipe de break Nação Zulu, a rapper começa suas primeiras investidas como MC fazendo parte do grupo Rap Girls (Sharylaine e City Lee), criando depois um grupo de rap feminino que levaria o seu nome, Sharylaine.
Vejo, que ser criança não é fácil,
sinto a tristeza da inocência de um ser, que não sabe
que não vê a diferença entre o bem e o mal
certo ou imoral, sexo é para pecador, casamento sem amor, valor, poder
todos tinham medo, tudo tinha sua hora, pois as coisas não eram como
agora.
Deixem que aconteça, deixem as águas rolarem
jovem é outro papo, não dá para manipular
refrão
Disseram então que eu não podia cantar
que para outros grupos era treze de azar
não ligue meu bem que isto é prosa
e se tudo de renova Sharylaine está a toda prova
Passa o tempo só não passa a saudade,
anos vão distanciando e aumenta a minha idade
ritmo e poesia, eu traço muito bem, o rap se baseia em pensamentos
muito além
consciência enfim, reação leal, que mexe com o mudo, relatando a moral,
verbal, geral, social
sem machucar, sem insistir, só para ajudar, não querendo agredir.
Palavras são palavras, não dá tempo para mudar
respeitando e perdoando, pode até justificar
Sinto o lado esquerdo inimizade
são aqueles amigos que me cercam, novidade não é
a inveja quando invade um coração, ocasiona desespero, real ação, não
deve ser assim, pior para mim, e para você, nada vai valer
ficamos na mesma indefesa certeza, diga-me o que acontece
não sobe, não desce, e nunca aparece, o que adianta baby.
Rezo para Deus que tu consigas ficar bem
que estando bem sei que não farás mal a ninguém.
Várias cidades vão de ouvir, ninguém na beira do caminho vai cair
sementes e sementes se espalharão na terra
Tão logo, tudo brotará de novo, haverá seca de maldade para a união de
todos
espinhos serão ervas e os negros são pichados
embora os pobres de espírito, demonstrem a contrário, nós blacks
sabemos pensar, e sobre a vida, podemos então opinar
e assim eu vou levando harmonia, folia, ironia a crítica e auto crítica
ligadas a política
a vida de todos analisando é verídica, artística
enfim eu estou aqui, e tudo aceitando,
não sabendo até quando, enquanto
isto vou rezando e aos poucos esperando, por que tudo vai mudar.
(SHARYLAINE, 1989).
Categorizando o hip hop como um movimento "macho hop", diante de um universo machista, a MC a princípio se vestia similar aos rappers masculinos calça larga, blusa larga, boné, porém, todas com a cor rosa referenciando o seu lado feminino o que lhe rendeu apelidos como Pantera Cor de Rosa e Princesa do Rap (MARTINS, 2005).
Nessa época profundas mudanças estavam ocorrendo na sociedade brasileira desde o início dos anos 1980. Novas formas de inserção da economia brasileira no mercado internacional são requeridas num mundo em contínua mutação. A resposta brasileira é lenta, pois envolve toda uma reestruturação interna, implementada, sobretudo mediante programas de estabilização diante de uma recessão crônica, com altos custos sociais. A desigualdade sócio-econômica se acentua, apesar do caráter progressista da constituinte de 1988 e da democratização do sistema político. Sendo a alavanca da indústria nacional, São Paulo irá ressentir-se fortemente da crise vivida pela sociedade brasileira. A persistente recessão do decênio de 1980 representa a rigor, um processo de ajustamento estrutural da economia, na tentativa de incorporar esses novos padrões de competitividade. Na metrópole, este processo de ajustamento tem provocado profundas alterações no seu papel econômico e na qualidade de vida de sua população. A partir dos anos 1980, o país entrara num período recessivo onde sobressaem as seguintes tendências mais gerais: elevação dos níveis de desemprego nos setores dinâmicos, tendência ao aumento dos níveis de subemprego, tendência à deterioração do padrão de vida da classe trabalhadora. A pobreza vai ganhando o seu sentido negativo de falta, estendida também ao plano moral, fazendo desaparecer as fronteiras entre o pobre honesto, o marginal ou criminoso. Não ter dinheiro para consumir os bens cada vez mais oferecidos no mercado equivalia, para os pobres, especialmente se pertencentes a grupos raciais (como os negros) e residenciais (como os favelados), mas principalmente os despojados menores de rua, a ser objeto da suspeita de cometer atos ilegais ou ilícitos ou, pior, de ser agente da violência (ZALUAR, 1985).
Sendo assim, falaremos de periferias no plural, isto porque são milhares de Vilas e Jardins. Também porque são muito desiguais. Algumas mais consolidadas do ponto de vista urbanístico do que outras destituídas de saneamento, transporte, serviços médicos e escolares, em zonas onde predominam casas autoconstruídas, favelas ou o aluguel de um cubículo situado no fundo de um terreno em que se dividem as instalações sanitárias com outros moradores: é o cortiço da periferia ou o mundo por excelência da sub-cidadania; zonas que abrigam população pobre, onde se gastam várias horas por dia no percurso entre a casa e o trabalho (KOWARICK, 2000). Não há dúvidas que em termos de cidadania nas suas dimensões civis, de igualdade perante a lei, acesso a educação, aposentadoria, condições de trabalho, sistema de saúde ainda permanece precário para a imensa maioria da população pobre.
3 Hip hop, consumo e resistência
Hoje a difusão do rap, através dos meios massivos, enquanto fluxo cultural que circula globalmente, encontra-se ancorado na idéia de cultura (culture hip hop ) que permite a imaginação de uma comunidade mundial (hip hop nation) fundada na vontade comum de partilhar e viver segundo um mesmo projeto de evasão sendo que uma das maiores contribuições está na paisagem política, isto é, no uso da música como ferramenta de protesto contra a injustiça e a opressão social. A metalinguagem musical do rap, enquanto prática de reflexividade, é uma forma simbólica que delineia sobre o contexto da nossa contemporaneidade e que possibilita ao subalterno subjetivar-se autonomamente. Isso implica em conquistar o espaço da enunciação e da representação de si.
Com o palavreado provocativo, as violações do metro e suas subdivisões, e repleto de gíria, a musicalidade rap tornou-se um produto cultural heterogêneo, fruto de renovadas interações de locais e transnacionais. Em diversos países, o espaço simbólico e mercadológico ocupado pela música rap tem servido de hino de libertação para grupos ou indivíduos que experimentam situações de opressão ou discriminação. Os subúrbios pobres de Paris vibram com o rap de MC Sollar, francês de origem senegalesa, e do grupo NTM (Nique ta Mère) que denúncia o fascismo na França. Os rappers britânicos de origem asiática, Fun Da Mental, consagram o direito de autodefesa aos ataques racistas, enquanto hip hoppers alemães exigem respeito pela sua origem turca. Na Itália, jovens da região sul, por exemplo, da Sardenha, se utilizam do rap como "microfono aperto" para expressar o preconceito sofrido, os antagonismos, as contradições, o crescimento do desemprego, o apego as tradições, a terra natal, a dignidade expressa no uso do dialeto local (FILIPPA,1996; MITHELL, 1996). Embora a prática do gênero esteja nas periferias dos grandes centros urbanos, é apreciado por um público mais amplo.
Podemos afirmar, tomando por base os estudos etnomusicológicos, que a musicalidade rap desafia a pureza artística. Como diria alguns críticos mais conservadores, "uma elite cultural": ao rap falta-lhe a erudição - o dogma da essência da arte.
Com suas letras que chegam a parecer simples, primárias e grosseiras, repetitivas e muitas vezes libidinosas (SHUSTERMAN, 1998), o rap constitui de uma maneira marcante o poder de ser signo de uma situação social ao exprimir por meio de letras e artistas (seja através da fala, na performance, seja através da vestimenta - signos de identidade assumida), relatos que fazem conexão no âmbito do contexto cultural em que circula, além de exprimir o desejo pela autorepresentação do sujeito histórico (NATTIEZ, 2004; CARVALHO, 1996). Sendo assim, uma determinada a semântica musical traduz um determinado processo social e cultural e atua enquanto experiência sensorial, estética, intelectual singular - uma contra-hegemonia estético-ideológica.
Parece claro que está em jogo, de fato, é a luta pelo controle da narrativa. Essa exigência feita à lírica, todavia, é em si mesma social, implicando no protesto contra um estado que todo indivíduo experimenta como hostil, alheio, frio, opressivo (ADORNO, 1983).
Quando ouvimos o rap notamos como característica principal ser instrumento de identidade e autoafirmação num meio cada vez mais hostil. Os rappers freqüentemente chamam a atenção para si e usam essa forma musical para afirmar sua própria identidade. É muito comum os rappers se utilizarem de pseudônimos, que como uma máscara na tradição da cultura africana, em algumas ocasiões, pode significar que esteja falando por ele mesmo, pelo grupo ou pela comunidade, cuja preocupação de seus praticantes é dizer quem são, de onde vêm, o que têm em mente e que não estão mentindo, apenas relatam uma realidade de contradições também por eles vivenciada. Na verdade, os rappers são os intelectuais orgânicos de Gramsci, capazes de expressar as experiências de opressão de sua comunidade e de detectar causas e possíveis soluções para problemas expressos na música.
De acordo com Douglas Kellner (2001), o rapper muitas vezes é como um ministro da igreja, pois segundo o autor, traz uma mensagem para seu público, que de modo muito similar à igreja, que tem seu coro, canta acompanhado de um coral de fundo.
O rap freqüentemente fala de grupos que estão fazendo algo pela comunidade, assim, como de heróis e tradições negras radicais do passado recente. Refere-se com freqüência a Zumbi, Malcom X, aos Panteras Negras, de forma a lembrar a luta contra a escravidão e a necessidade de se conscientizar sobre a herança colonial brasileira, que ainda projeta suas seqüelas sobre a sociedade contemporânea.
A musicalidade do rap possibilita a representação da realidade a partir do momento em que apresenta em suas letras situações de distinções e diferenciações sociais, além da reorganização das pessoas em determinados grupos ou classes sociais ao expressar as diferenças entre uns e outros.
Caber notar que as letras transmitem experiências e, muitas vezes, mensagens. Em geral é executado em andamento rápido. O rap segue uma tradição afro-americana de contar histórias longas com variações individuais e refrões em solo repetidos indefinidamente como no rag-time, no jazz e no blues. Trata-se de uma forma híbrida, que combina tradições afro-americanas com estilo contemporâneo, misturando voz humana e tecnologia, sons existentes e fragmentos sonoros da mídia, música e ruído disonante .
Aqui o "eu" que ganha voz é um "eu" que se determina e se exprime em oposição à objetividade figurada num poder que tende a se produzir como único saber enquanto ritual de verdade através da técnica que implica na vigilância perpétua e constante dos indivíduos.
Como lugar de passagem dos discursos e conflitos a identificação com a música rap ocorre sob a representação do conceito utilizado por Michel Maffesoli (1997) que chamou de transfiguração do político, onde a busca de identidade como norteadora do pertencimento enquanto prática reconciliadora de alguma coisa se dá através da cultura do sentimento de um comum a ser compartilhado com o outro.
Parece importante indagar que o senso de pertencimento ultrapassa seu simples uso cotidiano ganhando, nesse caso, dimensões abrangentes daquelas até então definidas pelas redes de sociabilidades primárias (família, etnia, religião) reforçando como estratégia simbólica a busca de inclusão (SOUZA, 1998). O estarjunto passa a constituir a função agregadora que reconstrói a representação em torno do requestionamento do corpo social no patrocínio da participação pública do que antes parecia ser negado. A referência a Durkheim e sua noção de consciência coletiva faz-se, de acordo com Michel Maffesoli, a chave necessária para compreendermos perfeitamente o tecido social contemporâneo e suas diversas efervescências efetuadas em torno ou a partir de sentimentos, de emoções, de imagens, de símbolos suscitando a autonomia do ideal coletivo através de leis que lhes são próprias. A partilha em torno da musicalidade do rap gera a relação de revestimento que favorece uma comunhão.
Em luta pelos direitos sociais em nome da igualdade, a musicalidade rap vem se assentando num discurso (lírico e musical) afirmativo, reflexivo e narrativo da representação de si próprio, das suas experiências e das suas convicções. Isto o torna uma fórmula acessível de prática intensiva da identidade.
Em contrapartida, torna-se importante o estudo da música aqui compreendido em interação com os códigos sociais, sendo indispensável uma análise do contexto de produção e recepção no qual esteja inserida.
O impacto sensorial do rap music redimensiona os estudos etnomusicológicos, ao implicar uma revisão de posições estéticas e analíticas - do lugar da música para o indivíduo e para a sociedade, o sofrimento ético-político, mediante o sentimento de inferioridade, da identidade social subalterna surgida através das condições de inferioridade que são sentidas por um eu de menor valor que se encontra entre a situação de pobreza, vinculada à dimensão ética da injustiça, à idéia de socialização, redefinida no papel simbólico da inclusão (espaço onde cada individuo é levado a se ver como um sujeito social e a fazer suas normas de pertencimento: fazer parte, se inserir, ser membro).
À primeira vista, se o molde é importado dos Estados Unidos, rapidamente a música rap vai tomando formas específicas e hibridizadas a partir desse contato cultural no mundo - seja em Portugal, no Brasil, Itália, França, Japão, Reino Unido, África do Sul, Polônia, Coréia do Sul, Alemanha, Espanha.
[...] O rap, enquanto componente do hip hop, participa na desterritorialização do corpo da urbe, transformando-a, identificando-a, num conjunto de não-lugares desterritorizados (CONTADOR, 2001, p. 8,)
[....] o aparecimento do "rap português" inserido numa cultura suburbana portuguesa pós-colonial, marcada por experiências quotidianas (a street...) e opções pessoais negociadas, dinamizadas e "sincretizadas", na qual a cultura hip hop (e a música rap) aparece como fenômeno diaspórico, pluriterritorializado, interclassista, multiétnico e transnacional... (BLANES, 2003, p. 206).
Para José Jorge de Carvalho (2003) cabe ao etnomusicólogo a tarefa de atuar no combate a exploração internacional mercadológica que tende a levar a descaracterização irresponsável da herança cultura musical ocasionando no fetiche do exótico.
O rap tornou-se a senha para a definição de novas formas de localidades-identitárias (locais, regionais, nacionais) e de novas globalidades - identitárias - que chegam a atravessar fronteiras internacionais por meio da música. Desse modo, o poder de aglutinação do rap vem exatamente de sua capacidade de tradução e ampliação do sentimento de injustiça presente entre populações que vivem a margem da efetivação de justiça social, ou seja, da inclusão e do reconhecimento dos princípios de igualdade. A musicalidade rap traz para o primeiro plano questões já presentes nos fóruns internacionais, como a falta de condições de moradia, o desemprego, discriminação racial, as relações de enfrentamento com a polícia, etc.
No Brasil, a rap music com seu palavreado provocativo, cheio de gírias e de complexidades semânticas, vem sendo muitas vezes incorporada por outros grupos ou indivíduos que experimentam situações de opressão ou discriminação.
A violência urbana parece ter se tornado uma dimensão rotineira da existência. Nesse âmbito, a rap music vem procurando a seu modo desafiar a fragmentação deixada pelo establishment, não obstante, circunscrevendo uma forma de autoconhecimento e (re)ação aos processos massificadores que atingem o mundo contemporâneo, no qual cada um é apenas aquilo que qualquer outro pode substituir, uma coisa fungível. É dessa maneira, portanto, que acaba por reafirmar visões de mundo, posições engajadas dentro das quais os indivíduos desenvolvem a publicidade de sua ação social expressando e questionando os valores instituídos socialmente numa leitura crítica com base na reversibilidade do modo de ser desta sociedade. Sintetizando, construídas nas interações sociais, as representações sociais juvenis urbanas vinculadas ao hip-hop acabam por se constituir, em mediações entre os sujeitos e o mundo, interpenetrando sentimentos, idéias, biografias, ideologias, fundindo as histórias dos sujeitos no local e global; e apropriadas para dar sentido às suas ações no cotidiano. São, portanto, um campo de pesquisa privilegiado para a compreensão e a decodificação dos significados e dos papéis sociais que se atribuem à juventude periférica. Suas atividades viabilizam um canal permanente de diálogo entre o poder público e a sociedade civil, no que diz respeito ao controle democrático na configuração das políticas públicas endereçadas a jovens periféricos.
Abstract: From references of ethnomusicology, this article discusses the approach to the issue of hip-hop and rap music as integrated in the global flow of goods, ideas, styles, or as linguistic and cultural matters, which is central in the life of many young people belonging to the suburbs of large urban centers, but also enjoyed by a wider audience.
Keywords: Hip-hop. Music. Peripheral culture. Etnomusicologic.
1 Black Atlantic é o termo cunhado por Paul Gilroy na tentativa intelectualmente mais ambiciosa de definir a diáspora como fluída, como desterritorialização, uma vez que sua análise levou ao entendimento de que a consciênciada diáspora africana se forma a partir de uma complexa mescla cultural e social entre África, Europa e Américas. (GILROY, 2001).
2 O Hip hop é um movimento cultural que surgiu no início dos anos 1970, no bairro Bronx em Nova Iorque, criado por jovens negros e imigrantes. O termo hip hop na verdade designa um conjunto cultural vasto que deriva daí seus quatro elementos artísticos: MC, master of ceremony, mestre de cerimônia ou rapper, a pessoa que leva a mensagem poética-lírica à multidão, que acresce às técnicas do freestyling, o livre improviso e o beat-box, que são sons reproduzidos pelas próprias cordas vocais dos rappers cuja característica de percussão guarda semelhança de efeito com um toca-discos ao acompanhar o MC; o DJ, disc-jóquei, aquele que coloca a música para dançar; a dança break, para aqueles que se expressam por meio de movimentos da dança; o grafite, as artes plásticas e a arte visual no hip hop. A cultura hip hop, como uma alternativa para a violência e um sentido para escapar das duras realidades urbanas, alastra-se e polariza-se cultural e comercialmente ao reivindicar para si o papel de voz marginal(izada) da imensa geração de jovens diante da implacável colonização econômica do mundo globalizado. (MARTINS, 2005).
3 O rap, através do seu dj (disc-jóquei) que manipula os sons eletrônicos, geralmente utiliza sofisticadas modalidades tecnológicas de reprodução do som diante de uma colagem de sonoridades urbanas, chegando a ser transgressivo. Trata-se freqüentemente de sons desordenados, com ruídos de carros de polícia, helicópteros, tiros, vidro quebrando, seleções de rádio, televisão, discos e agitação urbana.
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Rosana Martins
Doutora; Universidade Nova de Lisboa, Portugal [email protected]
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