Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar o tempo na poesia lírica de Horácio, poeta latino do século I a.C. e do modernista brasileiro Carlos Drummond de Andrade, a permanência e as transformações dos elementos líricos ao longo dos séculos na história da literatura ocidental. O tempo é visto como elemento motivador do famoso carpe diem horaciano nos livros de Odes e epodos, bem como motivador dos seguintes subtemas decorrentes: a) a efemeridade da vida b) a morte, c) a antinomia juventude-velhice, d) os prazeres da vida e) a eternização do poeta via arte. Na obra de Drummond, Nova Reunião: 19 livros de poesia, observamos a presença e a forma como é mostrado o tema central, o tempo, tal como os subtemas acima citados.
Palavras-chave: Horácio, Drummond, poesia lírica, tempo.
Abstract: The main purpose of this work is to analyze time in the lyrical poetry of Horace and Carlos Drummond de Andrade. It can be observed along the centuries the maintenance and the alternation of the lyrical elements along the centuries in the history of western literature. Time can be considered as the motivating actor via the notorious Horace's carpe diem, in Odes and epodes; time can also be taken as the cause to the following subthemes: a) the brief life b) the death c) the antinomy youth-old age d) the pleasures of life e) the eternal life of the poet by art. Then, the presence and the form of the main theme - time - will be analyzed as it is presented in Drummond's work - Nova Reunião: 19 livros de poesia (New Reunion: 19 books of poetry).
Keywords: Horace, Drummond, lyrical poetry, time.
Dois mil anos separam as épocas vividas por Horácio e Drummond. Isto, a princípio, pode parecer inconciliável. No entanto, as obras dos dois poetas revelam-se passíveis de contraposições, se considerarmos suas semelhanças e diferenças no que diz respeito a dois importantes temas para o homem: a morte e o tempo. Embora muitas coisas tenham mudado nestes dois milênios, apesar das distâncias espaços-temporais, o que se nota são mudanças nas ideias, nas concepções históricas, políticas, sociais e culturais que amparam os dois homens e as duas civilizações, mas não na essência humana. Com todo o desenvolvimento tecnológico, com os avanços científicos da modernidade, com toda a soberba e autoconfiança atual, o homem permanece frágil e a sofrer com os mistérios da vida, com o envelhecimento e a morte. Continua a buscar sua continuidade e eternização, seja por meio da arte, da glória, seja por meio da descendência.
O propósito deste artigo é apresentar uma parte de minha tese de doutoramento, denominada De Horácio a Drummond, o tempo dispara; de Drummond a Horácio, o tempo repara. Tese que defendi em maio de 2008 pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. O objeto deste estudo é o tempo na obra desses dois importantes poetas, sobretudo, no Livro de Odes e Epodos, de Horácio e em Nova Reunião da Poesia de Drummond. O recorte escolhido foi retirado do quarto capítulo, a Conclusão, e tem como objetivo principal evidenciar a permanência e perenização da obra dos dois autores ao longo do(s) tempo(s).
Horácio, Drummond e o tempo
As relações possíveis de se estabelecer entre as escrituras do antigo poeta romano Horácio e Carlos Drummond de Andrade não estão na forma, completamente diferentes: a primeira clássica, formal, uniforme e regular; a outra moderna, disforme e irregular, mas na temática do tempo e nos subtemas com que interligam e se subdividem em escala maior ou menor, morte-vida, arte-vida, juventude-velhice.
Horácio lida com uma visão cíclica da passagem do tempo atinente a sua época, fundamentada na observação da natureza e dos seus ciclos,
Sempre a cair, a chuva não se espalha
pelos híspidos campos; a procela
iníqua o Cáspio mar não põe em fúria
eterna; nem , inerte o gelo dura
pelo ano todo, Válgio, lá nos campos
da Armênia (...) (Livro II, Ode 9). 2
Drummond o faz baseado na sequência linear, própria do período pós-cristão, nas fases da sua vida: infância, juventude, maturidade e velhice.
A guerra, a gripe espanhola,
descoberta do dinheiro,
primeira calça comprida,
sulco de prata de Halley,
despenhadeiro da infância.
Mais longe, mais baixo, vejo uma estátua de menino
ou um menino afogado.
Mais nada: o tempo fiuiu.
No quarto em forma de túnel
a luz veio sub-reptícia.
Passo a mão na minha barba.
Cresceu. Tenho cicatriz.
E tenho calças experientes.
Tenho sinais experientes.
Tenho sinais combinados. ("Desfile", A Rosa do Povo).
Com as máquinas e o conhecimento, o homem moderno cria um mundo todo seu e se desvincula em parte da natureza. De posse dos relógios mecânicos e digitais, não há mais necessidade de marcar o tempo pela ação climática das estações.
A atitude do poeta romano é epicurista. Na sua função de vaticinar, prognosticar o futuro, ele vê o tempo passar e adverte os romanos de que é preciso viver, aproveitar as horas e os minutos, já que a morte é certa e imprevisível. É urgente fazer o que é necessário. Coletivamente, ser um bom cidadão. Individualmente, gozar dos prazeres da vida, já que a Roma do imperador Augusto vive uma fase tranquila, cheia de progresso e riqueza, após longos anos de guerras civis.
A tua idade, César, propiciou
aos nossos campos abundantes messes;
a Jove restituiu os estandartes
dos partas orgulhosos, arrancados
aos seus templos; fechou de Jano as portas,
dominadas as guerras; à licença,
que dos retos limites exorbita,
pôs freio; o vício erradicou, de vez;
as antigas virtudes revocou,
pelas quais, dantes, o latino nome,
junto às forças da Itália, se fez grande;
do grande império a fama e a majestade,
amplo, estendeu, do leito onde o sol morre
àquelas partes donde nasce o dia.
Guarda do estado, César, a civil
guerra, a violência, a cólera que aguça
o gume das espadas, que inimigas
as míseras cidades faz, não mais
hão de o nosso repouso perturbar (Livro IV, Ode 15).
Drummond, por sua vez, não fala para uma coletividade muito ampla, apenas para os amantes de literatura e de poesia. Não é vate, não fala pelo Estado. É, antes, um sujeito particularizado, sozinho, isolado no seu gosto pelo sublime, com seus sentimentos e experiências, a falar de/para um mundo dividido, isolado, sozinho, distante e impreciso:
Um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da rua,
longe um menino chora, em outra cidade talvez,
talvez em outro mundo.
E vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra sustenta a cabeça
e vejo o fio oleoso que escorre pelo queixo do menino,
escorre pela rua, escorre pela cidade (um fio apenas).
E não há ninguém mais no mundo a não ser esse menino chorando.
("Menino chorando na noite", Sentimento do Mundo)
Em sua porção histórica da lírica, o itabirano não se pronuncia em favor do poder político e econômico constituído, mas antes se coloca contrário à força do capitalismo e ao lado dos desvalidos, dos desprotegidos da segurança burguesa. Ocupa a mesma posição que o cidadão comum, de tal modo que não pode, por conta de uma posição superior que não tem aconselhar, advertir ninguém.
Por ter tido uma vida longa e sua poesia refietir a passagem dos anos, por ter sido contemporâneo de uma História conturbada política e socialmente, como todas as épocas o são, o poeta mineiro não exalta a vida e a premência de vivê-la. Não canta, nem exulta a alegria de viver, alegria que nem sempre ele enxerga. Antes assinala suas mazelas e, em algumas vezes, sente-se inferiorizado, prejudicado por não ter uma vida melhor, em ter que apenas lutar para poder apenas sobreviver. É o que ele declara em juízo:
Se se admiram de eu estar vivo,
esclareço: estou sobrevivo.
Viver, propriamente, não vivi
senão em projeto. Adiamento.
Calendário do ano próximo.
Jamais percebi estar vivendo
quando em volta viviam quantos! quanto.
Alguma vez os invejei. Outras, sentia
pena de tanta vida que se exauria no viver
enquanto o não viver, o sobreviver
duravam, perdurando.
E me punha a um canto, à espera,
contraditória e simplesmente,
de chegar a hora de também viver.
Não chegou. Digo que não. Tudo foram ensaios,
testes, ilustrações. A verdadeira vida
sorria longe, indecifrável.
Desisti. Recolhi-me
cada vez mais, concha, à concha. Agora
sou sobrevivente. ("Declaração em juízo", Impurezas do Branco).
A verdadeira vida não está neste mundo e neste tempo, localiza-se no não-lugar, no não-tempo. Por essa razão, o carpe diem, o desejo e a "ordem" de viver o presente horacianos são inviáveis em sua lírica.
A possibilidade de uma vida melhor está na outra vida, naquela que vem depois, com a morte; está no infinito, na eternidade:
Como a vida é senha
de outra vida nova
que envelhece antes
de romper o novo.
Como a vida é outra
sempre outra, outra
não a que é vivida. ("Parolagem da vida", Impurezas do Branco).
Não é por isso, entretanto, que se deve imaginar que a poesia drummondiana é pessimista, amarga, triste. Ela também se faz de esperança e encantamento:
Como a vida é bela
sendo uma pantera
de garra quebrada.
Como a vida é louca
estúpida, mouca
e no entanto chama
a torrar-se em chama.
[...]
Como a vida vale
mais que a própria vida
sempre renascida
em fior e formiga
em seixo rolado
peito desolado.
Coração amante. (Parolagem da vida", Impurezas do Branco).
Ainda assim, Drummond não convoca ninguém a aproveitá-la, não como imperativo.
O tempo
O tema do tempo apresenta como complexidade o fato de não ser perceptível de forma muito concreta. Se existe a dificuldade de definir o que seja o tempo, desafio enfrentado por grandes filósofos, como Plotino, Santo Agostinho, Sartre e outros, por grandes escritores, o tempo dispõe da sua principal característica, a fugacidade, o constante movimento em direção ao fim, à morte, o permanente processo de corrosão da matéria viva e finita.
Enquanto tema e preocupação humana para com o seu fim, este tópico se faz permanente ao longo de toda a história das Artes, sobretudo da Literatura. Transparece na obra dos principais autores e em destaque aqui às obras de Horácio e de Drummond. O que há de comum e de divergente, entre ambos, destacaremos a seguir. Entretanto, distingue-se, sobremaneira, na visão de tempo de cada era.
Para os antigos, o tempo é cíclico, pautado pela Natureza, que dispõe de alternâncias regulares e repetidas de fragmentos de tempo: dia-noite, as fases da lua, os meses, as estações climáticas, o ano. A natureza e os deuses, superiores ao homem, determinam o ritmo da vida. Fundamentados pela mitologia clássica, gregos e romanos acreditavam que num passado remoto e imemorável o homem vivera um momento de plena feli- cidade, em perfeita comunhão com a natureza e com os desígnios divinos, a chamada Idade de Ouro. Mas, aos poucos, a humanidade foi se modificando, deteriorando-se e tomando cada vez mais distância dessa fase maravilhosa. A tal ponto que o grande ciclo da história humana se fecharia com o retorno àquele momento e lugar magníficos. Desse modo, o passado é o modelo de perfeição a ser buscado, o presente é sempre o distanciamento e a degradação dos bons tempos, como Horácio deixa entrever na ode 6 do livro III:
Que não degrada o tempo destruidor?
Dos remotos avós aos nossos dias,
o tempo piora, em regra, cada vez:
mau, com aqueles; pior, com nossos pais,
e péssimo conosco. Donde, em breve,
há de seguir-se idade mais viciosa.
De outro jeito, para os modernos, a visão do tempo é linear. Com o advento dos profetas cristãos, judeus e islâmicos, o homem começa a centrar o conhecimento e a percepção do mundo mais em si próprio, em sua história e realidade e não mais num passado distante e não comprovado. Desde então, o tempo transcorre, considerando-se como marco o surgimento desses e outros homens, e não mais mitos. Os ciclos naturais apontam agora para o futuro, numa direção ascendente, num sentido em que a "vida" pós-morte será marcada pelo reencontro com seus deuses. Este será o melhor momento, equivalente à Idade de Ouro dos antigos. Em Drummond, este futuro não é necessariamente religioso, cristão, mas a eliminação do tempo e a possibilidade de todos os tempos, ou eternidade estimulam-nos a ideia de uma vida melhor, de uma bela vida.
Especificamente em Horácio e em Drummond, o tema do tempo, comum a ambos, proporciona leituras ora convergentes, ora divergentes. Convergem nos subtemas que o tempo suscita em cada autor, quais sejam, a morte, a antinomia juventude-velhice, a duração da vida e da arte (ars longa, uita breuis), os prazeres da vida, a degradação dos tempos. Divergem fundamentalmente no ponto de partida da poesia de Horácio, no carpe diem.
a) carpe diem
Em Horácio, a constatação da fugacidade do tempo, observada na natureza, nas estações que se alternam, leva o poeta a uma atitude de advertir o seu leitor/ouvinte da necessidade e urgência de carpere diem, em seu benefício ou da pátria.
Só o presente é verdade, o mais, promessa...
O tempo, enquanto discutimos, foge:
colhe o teu dia, - não no percas! - hoje. (Livro I, Ode 11).
Drummond, em contrapartida, observa a passagem do tempo na natureza mais imediata, seu próprio corpo. Durante sua extensa carreira de poeta, expressa-a na carne de sua poesia. O que interessa apenas a ele e ao leitor que se identificar com tal questão. Não tem possibilidade de implicação política como em Horácio, a pressa em fazer-se melhor em prol da pátria. Afora isso, este subtema contrasta na extensão e força de emprego na lírica dos dois poetas. No primeiro, o carpe diem é o principal elemento, bastante recorrente, o que se destaca como resposta à observação da passagem do tempo. Desencadeia uma postura individual de aproveitar a vida, e outra coletiva, política de fazer o que é melhor para a pátria, naquele momento romano, voltar-se para as coisas simples e frugais, afastando-se da ostentação e soberba, conforme a política que o imperador Otávio Augusto pregava.
A poesia de Drummond, de outro modo, não aposta em tal argumento, pelas seguintes razões: 1) o poeta é moderno, sozinho. Não tem a função, nem o poder de vaticinar, de aconselhar ninguém, seja no plano individual ou coletivo; 2) o poeta não almeja a tranquilidade, inquieto que é; 3) o campo não é uma realidade possível num Brasil que está se industrializando e urbanizando.
Mesmo assim, o campo e a sua tranquilidade ainda são referências e se materializam em sua lírica por intermédio do bucolismo, ora na memória individual, nas lembranças familiares e da infância,
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé.
[...]
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé."
("Infância", Alguma Poesia),
ora na memória coletiva, no passado remoto da humanidade, exemplificado no "Episódio" de uma manhã qualquer:
Manhã cedo passa
à minha porta um boi.
De onde vem ele
se não há fazendas?
Vem cheirando o tempo
entre noite e rosa.
Pára à minha porta
sua lenta máquina.
Alheio à polícia
anterior ao tráfego
ó boi, me conquistas
para outro, teu reino.
Seguro teus chifres:
eis-me transportado
sonho e compromisso
ao País Profundo. (A Rosa do Povo)
Embora não haja neste a postura de alertar o seu leitor para a urgência de se fazer algo antes que o derradeiro fim chegue, há de todo jeito uma luta por parte do poeta contra a ação do tempo, conforme fica explícito no combate à corrosão, ou na corrosão como desencadeadora implícita de combate à destruição da vida. A obra do poeta itabirano faz isso, mesmo sem ter sido este o seu projeto. Ao poetar, Drummond mantém-se vivo como um grande nome da literatura nacional e universal, eterniza-se.
b) a morte
A morte, tanto na obra do poeta romano quanto na do brasileiro, aparece como principal atriz no balizamento da efemeridade da vida. Nos dois há uma visão materialista da mesma, enquanto fim da matéria. Só que no primeiro a morte é ameaça à tranquilidade total e à segurança desta vida. Mantém-se abstrata, passível de acontecer a qualquer momento e a qualquer um, mas mesmo assim distante. Horácio dificilmente cogita a sua e quando o faz, de forma imodesta, privilegia mais sua permanência por meio da poesia.
No segundo, de modo distinto, a morte é mais complexa porque se dá bastante próxima, iminente, material e psicologicamente. Na perda dos amigos e vizinhos, dos amigos poetas, dos parentes que se foram "Lembro alguns homens que me acompanhavam e hoje não acompanham. / Inútil chamá-los: o vento, as doenças, o simples tempo / dispersaram esses velhos amigos em pequenos cemitérios do interior" ("América"). Mas principalmente a sua morte. Em seu caso, ela está em seu interior, a corroer e degradar o corpo e a alma, num lento e concreto processo, explicitado em "Desfile" (A Rosa do Povo), "Passo a mão na minha barba. / Cresceu. Tenho cicatriz. / E tenho mãos experientes. Tenho calças experientes. / Tenho sinais combinados. [...] Vinte anos ou pouco mais, / tudo estará terminado. / O tempo fiuiu sem dor. / O rosto no travesseiro, / fecho os olhos para ensaio".
Psicologicamente, para Drummond a figura negra significa positivamente o fim do sofrimento intrínseco a essa vida, o fim dos tempos, das dores causadas por suas mordidas, e a inserção na eternidade, a ausência de limites físicos, psicológicos e espaciais. Total "Nudez":
E já não brinco a luz. E dou notícia
estrita do que dorme,
sob placa de estanho, sonho informe,
um lembrar de raízes, ainda menos
um calar de serenos
desidratados, sublimes ossuários
sem ossos;
a morte sem os mortos; a perfeita
anulação do tempo em tempos vários,
essa nudez, enfim, além dos corpos,
a modelar campinas no vazio
da alma, que é apenas alma, e se dissolve. ("Nudez", A vida pas-
sada a limpo)
c) os prazeres da vida
Igualmente nos dois autores, os prazeres da vida se manifestam como antídoto ao ato devorador do tempo e da morte. Todos eles, os jogos, o vinho, a amizade, o amor e a Literatura têm a propriedade de estancá-los. Seja pelo fato de repetir, reduplicar, exercitar ou ensaiar a vida e, assim, estendê-la ou fazê-la pré-existir, seja pela criação de uma bolha, de um novo mundo paralelo, uma nova vida, mesmo que por momentos fugazes. Como quando se compartilha os momentos de prazer que o vinho, o amor e a amizade, a luxúria e uma boa leitura podem proporcionar. Drummond o atesta: "Namorado é o ser fora do tempo, fora de obrigação e CPF, / ISS, IFP, PASEP, INPS" ("Aos namorados do Brasil", A palavra mágica).
Em Horácio, os prazeres são epicuristas, da carne, manifestos no vinho, nos odores dos perfumes, no amor sensual; e do espírito, manifestos no amor e amizade, na grandeza da literatura, como bem exemplifica a ode 12, do livro IV:
Os pastores de nédias ovelhinhas
modulam, sobre a relva tenra, carmes
e, ao som das suas fístulas, deleitam
ao deus, a quem aprazem os rebanhos
e as colinas da Arcádia, que percorrem.
Esta estação, Vergílio, a sede excita:
mas, se desejas tu, que és favorito
dos jovens nobres, apreciar o vinho
pisado em Cales, beberás do meu,
uma vez que me tragas nardo, em troco.
Assim, pequeno vaso de perfume,
em câmbio, te dará tonel que dorme
na adega de Sulpício, cujo líquido
é em renovar as esperanças pródigo
e eficaz em curar as amarguras.
Se estás disposto a esse prazer, apressa-te
e vem, mas não te esqueças do meu nardo,
que não penso em matar-te a sede, grátis,
como se, em farta casa, eu fosse rico.
Deixa, um pouco, o interesse e não demores;
Lembrando sempre da sombria morte,
enquanto é lícito, os misteres graves
mistura, às vezes, com loucura breve:
é doce delirar, quando oportuno.
Em Drummond, dos prazeres acusados por Horácio, apenas os jogos e o vinho não tiveram a mesma força e recorrência na sua lírica. Embora, possa se dizer que os jogos também se revelam na relativa constância do futebol e no emprego lúdico das palavras, característico da poesia, e em especial, a sua. No entanto, o deleitamento que se sobressai é oriundo daqueles propiciados pela literatura e pela amizade, em separado ou juntos, como em "O poeta irmão":
Cinqüenta anos: espelho d'água ou névoa? Tudo límpido ou
o tempo corrói o incalculável tesouro?
Vem do abismo de cinqüenta anos, gravura em talho-doce,
a revelação de Emílio Moura.
Era tempo de escolha. Escolha em silêncio, definitiva.
Na rua, no bar, nossos companheiros esperam ser decifrados.
Mas o sinal os distingue. Descubro, e para sempre,
a amizade de Emílio Moura.
Agora a noite caminha no passo dos estudantes versíferos.
Bem conhecemos as magnólias, as mansões art nouveau, os
guardas-civis
imóveis em cada esquina. Vou consultando um outro eu:
a presença de Emílio Moura.
E Verlaine, Samain, Laforgue, Antônio Nobre,
Alphonsus, tanta gente, nos acompanham sem ruído.
Começa a tecer-se, renda fiuida na neblina,
a canção de Emílio Moura. (As Impurezas do Branco)
O amor lúbrico é retomado muitas vezes ao longo dos cinquenta anos da poesia de Drummond. Todavia, convém observar que enquanto vivo o autor raramente o narrou como efetuado em seus escritos, expondo muito mais o desejo do que a concretização do ato. O que relembra, assim, a idéia do não-tempo e do não-lugar, de que a verdadeira vida é sempre depois, é a não-vivida, "Tudo é mais tarde. / Vinte anos depois, como nos dramas" ("Paisagem: como se faz", As Impurezas do Branco). Ao final de sua vida, nos anos oitenta, contudo, o amor se consolida, explode em realizações e orgasmos, "Já gozamos. Já morremos. / E o tempo masca em seu canto, / a garupa da novilha" ("A moça mostrava a coxa", O Amor Natural).
d) ars longa, uita breuis
O aforismo de Hipócrates, aproveitado pelos dois poetas em questão, opera fundamentalmente com a segunda ideia, a de que a vida é breve. Ponto pacífico aferido pela existência da morte e pelo fato de que a vida é, por essa razão, efêmera. A primeira, contudo, é motivo de contraste.
De certa maneira, ambos entendem a arte como mais longa que a vida. Horácio, na famosa e sintomática ode 30, do livro três, diz:
Erigi monumento mais perene
do que o bronze e mais alto do que a real
construção das pirâmides, que nem
as chuvas erosivas, nem o forte
Aquilão, nem a série inumerável
dos anos, nem a dos tempos corrida
poderão, algum dia, derruir.
Não morrerei, de todo; parte minha
à própria morte não será sujeita:
eu, sempre jovem, crescerei, enquanto,
com virgem silenciosa, o Capitólio
suba o pontífice.
Isto é visível também em Drummond, na "Invocação com ternura" (Viola de Bolso), dirigida a Garcia Lorca: "E já baixam teus assassinos / a uma terra qualquer e vã, / enquanto, entre palmas e sinos, / tu inauguras a manhã", ou no aforismo "Não se pode afirmar que a vida de Mozart foi curta se ela dura até hoje", em O avesso das coisas.
Horácio, no entanto, não tem o menor pejo de vaticinar a sua obra como longa, quase eterna:
Não morrerei, de todo; parte minha
à própria morte não será sujeita:
eu sempre jovem, crescerei, enquanto,
com virgem silenciosa, o Capitólio
suba o pontífice. Dir-se-á que, grande
de origem humilde, a fiz, primeiro, a voz
latina ao metro grego, onde ressoa
o Áufido impetuoso e onde o Dáunio agreste,
de poucas águas, reinou sobre povos
rústicos. Enche-te do orgulho, pois,
que requerem meus méritos, Melpômone,
e, se o quiseres, cinge-me a cabeça
com a de louro délfica coroa! (Livro III, Ode 30)
Diferente, portanto, do poeta itabirano que se mantém humilde e modesto em relação a sua obra, para quem muito pouco restará de seu "Legado" (Claro Enigma): "Não deixarei de mim nenhum canto radioso / uma voz matinal palpitando na bruma / e que arranque de alguém seu mais secreto espinho". O leitor e a crítica, no entanto, sabem que a permanência de seu trabalho é uma realidade visível já e ainda enquanto o poeta era vivo, considerando-se os inúmeros estudos e traduções que a sua poesia propiciou, além da fama de ser um dos maiores escritores de língua portuguesa.
e) antinomia juventude-velhice
A antinomia juventude-velhice está nos dois poetas, manifesta de formas distintas. Em Horácio, o objeto do olhar para tais idades é dirigido a terceiros, em geral seus amantes, jovens e velhos. A juventude é a afirmação da força da vida, o vigor, a beleza e as coisas boas, razão de se viver. A velhice, contrariamente, é a decadência, o fenecer da beleza, da saúde e a aproximação da morte. Para com esta segunda categoria de amantes, o poeta romano tem uma postura de afastamento, de certa repulsa, posicionando-se ao lado dos jovens.
Ouviram, Lice, os deuses os meus votos,
ouviram, Lice: fazes-te já velha
e, contudo, pretendes ser formosa,
e saltitas e bebes, impudente,
e, ébria, trêmulo o canto, a Amor procuras,
que só te manifesta indiferença.
Mas Cupido nas faces brinca, em fior,
de Quia, citarista douta. E, voa,
através dos carvalhos ressequidos,
e foge-te, porque te afeiam esses
teus dentes amarelos, essas rugas
e essa neve que cobre a tua fronte.
[...]
Mas a Cínara breves anos deu
o fado, que a ti longa vida, igual
à de velha coruja, destinara,
para que, Lice, os férvidos mancebos
pudessem ver-te, rindo-se a valer,
extinto facho já desfeito em cinzas. (Livro IV, Ode 13).
Em Drummond, o objeto do olhar para as duas fases da vida é direcionado para dentro de si. O poeta brasileiro vê, do presente, à distância, a sua juventude e infância, já passadas há algum tempo. A primeira, igualmente enquanto um período de força, efervescência e explosão de vida, por intermédio dos hormônios, dos desejos e febres. Mas não sem as frustrações, as fraquezas, as inseguranças, as incertezas e os medos, comuns à idade, de que o modernismo não costuma esconder. São revelações dos mistérios do sexo sempre negadas no último momento, no instante de ver a calcinha da menina: "na rapidez do balanço que só revela em primeiro plano / a imensidão instantânea da sola dos sapatinhos brancos" ("Menina no balanço", Esquecer para lembrar), no instante de tocar com "A mão visionária" (Esquecer para lembrar) "o escuro encaracolado", "bosque, fioresta encantada" nunca visto, mas contado: "xô... xô... / mosquitinho / Ai!", ou, na derradeira hora de espiar o "corpo das mulheres" por debaixo do assoalho, quando "Le Voyeur" (Menino antigo) avista "nada / senão a sola negra dos sapatos / tapando a greta do soalho".
A velhice no poeta mineiro não apresenta o tom jocoso de Horácio. Isto porque a senectude ilustrada é a dele mesmo, carregada do sofrimento, das dores e mudanças negativas próprias da idade, revelada na "Carta" (Lição de coisas) que dirige à mãe: "Eu mesmo envelheci. / Olha em relevo, / estes sinais em mim, não das carícias // (tão leves) que fazias no meu rosto: / são golpes, são espinhos, são lembranças / da vida a teu menino, que ao sol-posto / perde a sabedoria das crianças".
Em ambos os autores, a antinomia serve de recurso, mais um, para a confirmação da passagem do tempo.
f ) degradação dos tempos
A degradação dos tempos em Horácio pode ser vista de modo mais etéreo e distante, fundamentada num plano moral e mítico. Corrobora o mito da Idade de Ouro e da decadência moral do ser humano. Dentro desse princípio, até a era de Augusto, período áureo na história do Império Romano, é passível de corrupção (e que época não o é?), de falências e vícios: cobiça ao dinheiro, desrespeito à família, aos deuses, levando o governo de então a uma política de tentar retornar aos antigos valores da sociedade primitiva. É o que nos ilustra a ode 2 do livro I:
A juventude, rara pelos vícios
dos pais, há-de saber que se afiara
o ferro contra irmãos, que, enfim aos persas
cabe melhor.
Que deus invocará o povo, para
suster o império que já rui? Que preces
farão a Vênus surda as virgens, que
dócil a tornem?
A quem mandará Jove expie os crimes?
Pedimos-te que venhas, recobertos
de nuvens os teus alvos ombros, tu,
áugure Apolo [...].
Para Drummond, a decadência dos tempos é mais ampla e diversificada. Além da degradação moral, há uma visão filosófica que aborda desde a deterioração moral da humanidade com as guerras mundiais e o capitalismo, incluindo o terrível acontecimento com a bomba atômica, até a percepção do fim de tudo o que é matéria, o corpo, as casas, as cidades. Acima de tudo, a corrosão daquilo que é íntimo e caro ao poeta mineiro: o seu corpo, as casas e edifícios em que morou, os cinemas que frequentou, os amigos e parentes com quem conviveu ou de quem herdou o seu jeito de ser, as cidades e lugares que viu e visitou, as fazendas, Itabira, Belo Horizonte, Rio de Janeiro. É o caso do Hotel Avenida, em demolição:
Vai, Hotel Avenida,
vai convocar teus hóspedes
no plano de outra vida.
Eras vasto vermelho,
em cada quarto havias
um ardiloso espelho.
Nele se refletia
cada figura em trânsito
e o mais que se não lia
nem mesmo pela frincha
da porta: o que um esconde,
polpa do eu, e guincha
sem se fazer ouvir.
E advindo outras faces
em contínuo devir,
o espelho eram mil máscaras
mineiroflumenpau-
listas, boas, más; caras.
50 anos-imagem
e 50 de catre
50 de engrenagem
noturna e confidente
que nos recolhe a úrica
verdade humildemente. ("A um hotel em demolição", A vida
passada a limpo)
E, assim, passaram os anos, os séculos, a antiguidade e assim passa a modernidade. O tempo fugiu, foge e continuará a fugir, devorando tudo e todos. Menos os prazeres vividos, os únicos que conseguem suplantar o poder mutilador do tempo. Os prazeres mundanos, o vinho, o sexo, a gastronomia, conseguem interromper essa ação por preciosos minutos ou horas; os sublimes, como o amor, a amizade e a Literatura, por meses, anos, séculos. Somente os prazeres garantem a certeza de que a vida é divina, especial, eterna. De Horácio a Drummond, o tempo não para, dispara, persiste em sua tarefa de carcomer a vida, de correr e corroer o que é * nito, menos "os monumentos mais perenes que o bronze". Em sentido inverso, revisando a história da Literatura e da Humanidade, de Drummond a Horácio, o tempo repara. Restaura os grandes temas e preocupações humanas. Observa os estragos que impõe ao homem, assim como as avarias que sofre com o trabalho dos artistas clássicos. Aqueles grandes homens que conseguem a sublimação e pequenas vitórias, ainda que parciais sobre Saturno, compensam e vingam, assim, os estragos causados aos pequenos mortais. Se a eternização de Horácio, por meio de sua arte, perdura por dois mil anos, a de Drummond cumpre hoje, quase cento e treze, mas certamente também * cará para a posteridade. Retomando seus próprios versos, poderíamos dizer que Drummond cansou de ser moderno, agora ele é eterno. Horácio e Drummond: o tempo que dispara também repara.
2 Os poemas de Horácio foram traduzidos por Bento Prado de Almeida Ferraz.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Carlos Drummond de. A palavra mágica. Rio de Janeiro: Record, 1998.
_____. Nova reunião: 19 livros de poesia. 3. ed. v. 1 e 2. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.
_____. Reunião: 10 livros de poesia. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
HORACE. Odes et epodes. Texte établi et traduit par F. Villeneuve. Paris: Les Belles Lettres,1991.
HORACIO. Odas y epodos. Edición bilíngüe de Manuel FernándezGaliano y Vicente Cristóbal. Madri: Cátedra, 1997.
HORÁCIO. Arte Poética. Tradução e comentário de R. M. Rosado Fernandes. Lisboa: Inquérito, 1984.
_____. Odes e epodos. Trad. e notas Bento Prado de Almeida Ferraz. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Recebido em: 10/12/2013. Aceito em: 21/03/2014.
José Ernesto de Vargas1
1 Professor do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da Universidade Federal de Santa Catarina.
You have requested "on-the-fly" machine translation of selected content from our databases. This functionality is provided solely for your convenience and is in no way intended to replace human translation. Show full disclaimer
Neither ProQuest nor its licensors make any representations or warranties with respect to the translations. The translations are automatically generated "AS IS" and "AS AVAILABLE" and are not retained in our systems. PROQUEST AND ITS LICENSORS SPECIFICALLY DISCLAIM ANY AND ALL EXPRESS OR IMPLIED WARRANTIES, INCLUDING WITHOUT LIMITATION, ANY WARRANTIES FOR AVAILABILITY, ACCURACY, TIMELINESS, COMPLETENESS, NON-INFRINGMENT, MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR A PARTICULAR PURPOSE. Your use of the translations is subject to all use restrictions contained in your Electronic Products License Agreement and by using the translation functionality you agree to forgo any and all claims against ProQuest or its licensors for your use of the translation functionality and any output derived there from. Hide full disclaimer
Copyright Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Letras Jan-Jun 2014
Abstract
The main purpose of this work is to analyze time in the lyrical poetry of Horace and Carlos Drummond de Andrade. It can be observed along the centuries the maintenance and the alternation of the lyrical elements along the centuries in the history of western literature. Time can be considered as the motivating actor via the notorious Horace's carpe diem, in Odes and epodes; time can also be taken as the cause to the following subthemes: a) the brief life b) the death c) the antinomy youth-old age d) the pleasures of life e) the eternal life of the poet by art. Then, the presence and the form of the main theme - time - will be analyzed as it is presented in Drummond's work - Nova Reunião: 19 livros de poesia (New Reunion: 19 books of poetry).
You have requested "on-the-fly" machine translation of selected content from our databases. This functionality is provided solely for your convenience and is in no way intended to replace human translation. Show full disclaimer
Neither ProQuest nor its licensors make any representations or warranties with respect to the translations. The translations are automatically generated "AS IS" and "AS AVAILABLE" and are not retained in our systems. PROQUEST AND ITS LICENSORS SPECIFICALLY DISCLAIM ANY AND ALL EXPRESS OR IMPLIED WARRANTIES, INCLUDING WITHOUT LIMITATION, ANY WARRANTIES FOR AVAILABILITY, ACCURACY, TIMELINESS, COMPLETENESS, NON-INFRINGMENT, MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR A PARTICULAR PURPOSE. Your use of the translations is subject to all use restrictions contained in your Electronic Products License Agreement and by using the translation functionality you agree to forgo any and all claims against ProQuest or its licensors for your use of the translation functionality and any output derived there from. Hide full disclaimer