Resumo: Este artigo oferece uma análise da obra Metaformose de Paulo Leminski que estabelece uma singular releitura das Metamorfoses de Ovídio. Trata-se de uma narrativa poética publicada como obra póstuma no ano de 1994. Encontrado entre os papéis do autor juntamente com diversos ensaios, contos, poemas e uma novela, recebeu o "Prêmio Jabuti de Poesia" no ano de 1995. Por meio das próprias concepções teóricas do autor, busca-se interpretar a maneira como é tratado o mito de Aracne, re^etindo sobre a reinvenção e releitura da Mitologia e da Literatura greco-latinas na escrita contemporânea.
Palavras-chave: Ovídio, Paulo Leminski, recepção da literatura greco-latina.
Abstract: This article provides an analysis of Leminski's Metaformose that establishes a remarkable re-reading of Ovid's Metamorphoses. It is a poetic narrative published posthumously in 1994. This work, which received "Prêmio Jabuti de Poesia" in 1995, was found among the papers of the author along with many essays, short stories, poems and a novel. Through the author's own theoretical conceptions, one seeks to interpretating the way the myth of Arachne is approached by him, reflecting on the reinvention and reinterpretation of both Greek and Latin mythology and Literature in contemporary writing.
Keywords: Ovid, Paulo Leminski, reception of Greek and Latin Literature.
A Metaformose
A presença da Língua e Literatura Latinas na obra de Paulo Leminski é algo alardeado pela crítica, mas muito pouco investigada. A própria biogra^a do autor escrita por Toninho Vaz, publicada no ano de 2001, tem como título Paulo Leminski: O bandido que sabia Latim. Durante sua leitu1 ra, percebe-se na história de vida do autor sua ligação com a Língua Latina que começou a estudar no mosteiro São Bento na cidade de São Paulo com apenas 13 anos. Esse vínculo foi aprofundado, revisitado e repensado durante sua carreira literária. O trabalho com textos literários latinos pode ser veri^cado nas traduções feitas diretamente do latim da obra Satíricon de Petrônio (PETRÔNIO, 1987) e da Ode I, 11 de Horácio (LEMINSKI, 1984). O título Metaformose inspirado a partir de seu próprio poema concreto, do início dos anos 60, o qual recombina as letras da palavra "metamorfose", aludindo à signi^cação das mutações, tem por subtítulo "uma viagem pelo imaginário grego", pois revisita e reescreve alguns temas e narrativas mitológicas advindas da Antiguidade Clássica.
O livro tem como Prefácio (LEMINSKI, 1994, p. 7-8) um texto escrito por Alice Ruiz, que foi esposa dele, no qual ela comenta as muitas in^uências que estiveram presentes no dia-a-dia do autor. Seguido do Prefácio estão as "Notas sobre Metaformose" redigidas pelo poeta e amigo de Paulo Leminski, Régis Bonvicino, que pretende apontar alguns esclarecimentos sobre a obra (p. 9-12). Após uma breve nota editorial sobre a origem do texto, segue a narrativa poética de 24 páginas (p. 15-39). Depois dela, foram inseridas no volume ^guras ilustrativas de mitos retiradas de objetos da Antiguidade clássica, como vasos, ânforas e urnas, datadas do sec. IV ao sec. VIII a. C., com pequenos textos explicativos. Essas imagens e esses textos parecem constituir uma espécie de "mapeamento" de iconogra^a antiga sobre as metamorfoses (p. 41-55). Ao ^nal, Paulo Leminski nos apresenta um pequeno suporte teórico intitulado "Quase ser é melhor que ser (a pluralidade dos jogos possíveis)", no qual tece comentários e re^exões sobre a palavra mito, sobre a in^uência cultural da Mitologia Clássica, como também sobre seus primórdios e, ^nalmente, a importância da obra Metamorfoses do poeta romano Públio Ovídio Nasão (43 a.C. - 17 d.C.), que, segundo Leminski, tem como motivo um traço obsessivo do imaginário grego, o tema da transformação (p. 59-71).
Paulo Leminski e a recriação
Segundo Leminski em seu artigo Trans/paralelas, que faz parte do livro Ensaios Cripticos 2, sobre a questão da tradução, "traduzir de uma língua para outra é apenas um caso particular de tradução. A possibilidade da tradução está na própria raiz da natureza do signo" (LEMINSKI, 2001, p. 91). Para ele traduzir é repassar as ideias e as características de uma obra estrangeira in^uenciadas por uma nova visão, de um novo mundo, de uma língua diferente. É o que constatamos acontecer em Metaformose, na qual o prosador faz com que os ecos da Antiguidade sejam renovados e renovadores. Ainda nesse ensaio, Leminski parece dar pistas sobre o que pensava da interpretação do universo greco-romano, quando diz que se pode entender como
"tradução todas as aproximações do tipo da paródia (=canto paralelo), que tem intuitos burlescos, da paráfrase, que tem intenções sérias [...] da diluição de uma mensagem original em (quase)-similares, mais ou menos afastados do seu protótipo" (LEMINSKI, 2001, p. 92).
Portanto, para Leminski toda vida cultural de uma sociedade é um processo constante de traduções que se transformam em novos originais.
Ezra Pound transmitia a ideia da delimitação de uma "tradição literária" - que ele denominava de "paideuma" - de boa literatura para os novos poetas. O pai do make it new direciona o que ler na literatura da Antiguidade e a^rma que
um clássico é clássico não porque esteja conforme a certas regras estruturais ou se ajuste a certas de^nições (das quais o autor clássico provavelmente jamais teve conhecimento). Ele é clássico devido a uma certa juventude eterna e irreprimível (POUND, 1970, p. 21-22).
Para Pound "grande literatura é simplesmente linguagem carregada de signi^cado até o máximo grau possível" (POUND, 1970, p. 40), e é sob esse prisma que ele oferece sua proposta de leitura dos clássicos. À primeira vista, ou seja, levando em conta o contexto da produção leminskiana e seu vínculo, ao menos num primeiro momento, ao ideário concretista, o autor de Metaformose procura ler os clássicos com os olhos modernos de Pound, levando em conta que a tradução sempre será uma recriação/ "refazimento" (LEMINSKI, 1994, p. 67), isto é, se apropria de preceitos poundianos para a releitura dos clássicos, tais como estes explicitados por Haroldo de Campos:
Pound não só examinava com uma "nova sutileza de olhos" os escritores de outras épocas e latitudes, mas os vertia para a língua inglesa, ainda, ou principalmente, quando apresentavam problemas quase intransponíveis para a tradução. Adotou o lema confuciano: MAKE IT NEW (renovar), para dar nova vida ao passado literário via tradução. E criou uma nova modalidade crítica: criticismbytranslation. [...] Um aspecto inconfundível da arte de traduzir poundiana é a ausência de ortodoxia, a extraordinária liberdade de suas recriações (CAMPOS, 1993, p. 20-21).
Muito dessa in^uência está re^etida na própria escolha da obra de Ovídio usada como referência por Leminski na construção de seu Metaformose. Pound a^rma em seu Abc da Literatura que Ovídio é um poeta incomparável, enfatizando que ele reescreveu as ideias de coleções greco-alexandrinas de casos de transformação e que ele é atualmente nossa única fonte de acesso a essa tradição. (POUND, 1970, p. 50). Também em A Arte da Poesia, Pound reforça que a obra de Ovídio está entre os livros "que um homem necessita ler para 'conhecer o seu rumo'" (POUND, 1976, p. 40).
ENTRE OS ROMANOS. Tendo perdido Filetas e quase tudo de Callimachus, podemos supor que os romanos acrescentaram certo re^namento; seja como for, Catulo, Ovídio, Propércio oferecem-nos todos alguma coisa que hoje não podemos encontrar nos autores gregos (POUND, 1976, p. 40).
Quando Pound escreve sobre Ovídio, segundo Peter Davidson, ele está pensando nas Metamorfoses e não nas elegias de amor, pois para Pound as Metamorfoses foram livros sagrados, as pedras angulares de sua imaginação criativa. Desta maneira, Pound está interessado nas Metamorfoses de forma a alargar e, talvez, ir além de Ovídio. O autor considera que há um paralelo entre as Metamorfoses e a poesia de Pound, este forte paralelo faz com que as Metamorfoses estejam presentes no "paideuma":
Quando chegamos aos primeiros Cantos, na sua forma ^nal, há uma abundância de material ovidiano e a estrutura desses Cantos parece ter uma considerável dívida em relação à maneira como Ovídio ordena o material de suas Metamorfoses. Parece provável que tenha sido uma releitura das Metamorfoses que ajudou Pound a encontrar a maneira de ordenar os primeiros cantos de seu longo poema. Essa ideia pode ser veri^cada pela análise das estruturas correlatas do Livro III de Ovídio e do Canto II de Pound" (DAVIDSON, 1998, p. 122).
Segundo Davidson (1998) a ideia central do Canto II é a capacidade ou incapacidade de um mortal ver a Deus face aface: e o episódio central é a emblemática história de Narciso. A ^gura de Tirésias também está pre- sente em todo o livro, focando a atenção do leitor sobre o signi^cado das fábulas. Porém o Canto II não só contém paráfrase substancial das Metamorfoses, mas também a sua estrutura é padronizada em Ovídio.
Coincidentemente Haroldo de Campos publica em jornal um excerto de Ovídio, denominado "A morte de Narciso", no ano de 1994, justamente o ano em que foi publicado o Metaformose. Haroldo também segue em suas traduções o cânone latino ditado por Pound, sendo que este fragmento em especial "trata-se do célebre episódio das Metamorfoses de Ovídio no qual o jovem Narciso, embevecido da própria beleza re^etida na água de uma fonte, morre afogado ao tentar possuí-la" (VIEIRA, 2006, p. 3). Coincidência ou não, esse é o mesmo episódio que se constitui como ^o condutor da obra de Leminski.
Metaformose das Metamorfoses
Leminski, em Metaformose, faz com que os ecos da Antiguidade sejam renovados e renovadores no seu exercício criativo. Ao conceber sua obra, reelabora as ideias e algumas características formais das Metamorfoses de Ovídio, trazendo algo desse modo de poetar clássico a uma nova visão, a um novo mundo e a um outro contexto linguístico.
Augusto de Campos a^rma, no artigo "Metamorfoses das Metamorfoses", que a obra de Ovídio é umas das poucas puramente cinematográ^cas, pois no cinema há a magia por meio de imagens sequenciadas, assim como nas Metamorfoses, que segundo Campos "[...] projetam sobre o lei-tor na sua enxurrada fantástica de transformações, onde a todo momento a^oram ao primeiro plano as "fusões" de seres animados e inanimados, 'mudadas formas em novos corpos' (Ovídio "via" Castilho)" (CAMPOS, 1978, p.191). Como aponta J. Chamonard em sua introdução à edição bilíngüe das Metamorfoses em edição da Garnier, o poema possui 12000 versos onde se apresentam 200 lendas. Em toda essa extensão, Ovídio seguiu os acontecimentos desde a criação do mundo até a época do Imperador Augusto. Sem nenhuma forma de agrupamento por temáticas ou origens, o texto segue ininterrupto sem sequência das lendas, que, mesmo se quiséssemos, não poderiam ser agrupadas logicamente. Dessa forma, conclui Chamonard que Ovídio se levou unicamente pela fantasia em toda sua obra, na extensão dos 15 livros.
Atento a essa con^guração da obra, Augusto de Campos demonstra a importância dessas sobreposições narrativas no poema. Diferentemente de Chamonard, no entanto, ele a^rma que não se trata de uma "falta de unida- de", mas que, levando em consideração sua linguagem e associações de natureza formal, há uma unicidade nessa estrutura particular. Ainda segundo o poeta concreto, tal característica de uma narrativa atemporal e descontínua é adequada à mente contemporânea, habituada pelos meios de comunicação a digerir o máximo de informações possíveis no menor espaço de tempo. Assim como Augusto demonstra essa teoria indicando a retomada que Ezra Pound faz da obra de Ovídio em seus Cantos, procuraremos apontar neste artigo, o movimento de contiguidade entre fontes e in^uências da retomada, também feita por Paulo Leminski em sua Metaformose.
Segundo Lígia Sávio, em seu artigo "Metaformose: poesia porosa", Leminski reconta uma série de mitos gregos, sob a ótica de um poeta ocidental culto e sob a experiência de letrado multidisciplinar. Para a autora, o narrador em Metaformose é muito importante, pois é o desa^ador da história e tem o desejo de se encontrar. O narrador Narciso enlouquece com as metamorfoses, as "mudanças de tudo em tudo". No texto, Leminski parece querer atingir a "textualidade", que, segundo ele mesmo, reside em "uma prosa que transcenda a simples denotação e atinja a categoria de objeto de arte", segundo sua declaração em entrevista a Almir Feijó (apud SÁVIO, 2006, p. 302). Ainda para Sávio, a escolha do mito de Narciso como narrativa principal evidencia o projeto leminskiano de autoleitura, em que o narrador-personagem se confunde com o narrador-Leminski. O jogo dos espelhos é um tema presente na obra do autor, principalmente nas biogra^as. O texto é fascinante pelo seu mosaico de culturas e épocas, aí está a "proesia" ou poesia porosa que apresenta:
a inquieta leitura de si mesmo, o trânsito entre a transgressão e a tradição, a tensão entre o novo e o permanente, o reaproveitamento de textos e autores, a re^exão sobre mitologia e ^loso^a e sobre a linguagem, a arte como forma de interpretação do mundo (SÁVIO, 2006, p. 303).
Para Nonato Gurgel, no artigo "As metamorfoses de Leminski", a ligação do poeta curitibano com Ovídio e Narciso já tinha sido anunciada em Catatau, "Amores de Narciso, preciso: sair do espelho. Narciso, o ausente no lugar" (LEMINSKI, 1989, p.49) e o anúncio se cumpriu, tendo-se na Metaformose um Narciso saído do espelho. Para o autor, a escolha do mito de Narciso provém de uma certa parte romântica do Leminski poeta, sendo que em sua releitura a mitologia é utilizada principalmente como forma. Tratando da referência da obra de Ovídio que também tinha sido anun- ciada no Catatau, "Não somos os ossos de Ovídio?" (LEMINSKI, 1989, p. 63), os ossos equivalem às formas de Ovídio na poética de Leminski. Gurgel percebe a in^nita simetria existente entre as duas obras, como nas traduções feitas diretamente da obra latina. Ele também comenta sobre a di^culdade de se classi^car o gênero da obra, porém trata-se "principalmente de uma prosa-poética produtora de signi^cantes, através dos quais a língua mais celebra e goza que anuncia o sentido" (GURGEL, 2009).
Como foi analisado por Guilherme Gontijo Flores, no artigo "O raro do reles: um latim de bandido", na Metaformose Leminski deforma os mitos, entrelaçando-os intencionalmente a partir de associação livre. A obra passa a ser uma obra própria e o método de distorção, de desleitura pragmática, funciona por meios inversos, diferentemente da tradução do Satyricon, por exemplo. A Metaformose exige do leitor um trabalho de reconstrução da ordem dos mitos, que nos apresentam numa estrutura aparentemente caótica:
[...] o que percebemos ao lermos as referências latinas de Leminski é que, ao contrário de construir somente a imagem do erudito, seu latim passa a ser simultaneamente um instrumento de bandido, marginal. Não se trata de uma simples inversão do papel do intelectual na cultura, e sim de uma conversão na sua aplicação: a erudição não é negada em si, mas apenas em sua tendência à torre de mar^m. O poeta, para Leminski, precisa descer do pedestal, mas não precisa deixar sua bagagem (FLORES, 2010, p. 106-107).
Como essa breve revisão de literatura sobre Metaformose bem demonstra, Ovídio parece ter oferecido mais do que o tema para a obra de Leminski. A sugestão da forma em pontual diálogo com os contemporâneos exercícios narrativos fornecem a Leminski, simultaneamente, instrumentos de imitação e ruptura.
Traços metapoéticos: o mito de Minerva e Aracne
Efetuando um recorte no mito de Aracne e relacionando-o a outras lendas demonstraremos como Leminski se apropriou do tema da transformação e como se serviu dele para inovar em fecundo exercício metapoético e metanarrativo. Destacaremos, também, os trechos em que o autor re^ete diretamente sobre a relevância do mito, da narrativa e das fábulas e suas relações com as recriações textuais.
Para Leminski, o mito, o conceito e o número servem para colocar ordem no caos desconexo dos fenômenos, portanto eles são frutos da imaginação, de modo que os mitos se tornam concretos, como verdadeiras obras de arte. Seguindo essas premissas, Leminski lembra a metamorfose de Eco, relacionando o som das palavras com sua forma concreta (ou seria melhor, neste caso, forma pétrea), como os sons que se ^xam às letras do alfabeto: "Que é um eco senão a transformação de uma voz em pedra, no eternamente idêntico a si mesmo, como fazem as letras do alfabeto" (LEMINSKI, 1994, p. 31). Assim, toda escritura perpetua uma transformação de ideia em texto, sendo o ato criativo metamór^co de per si. Todo mito gravado na face dura da tradição tem o poder de ressigni^car e metaforizar os objetos e seres mais banais: "Aracne quis competir com a deusa Atena na arte do bordado, vence a deusa e é transformada em aranha, toda aranha, toda teia, é lembrança do confronto entre a deusa e a bordadeira" (1994, p. 31, grifo nosso)
Seguindo semelhante chave interpretativa, ele faz, na sequência da narrativa, duas referências ao mito de Aracne. Nesses trechos, tem lugar a interpretação do mito como concretização da ideia de escritura do texto, ou seja, ao tecer o manto com as histórias dos deuses na disputa, tanto Minerva quanto Aracne ^gurativizam a função do poeta ou autor ao compor sua narrativa. É interessante notar como as cenas bordadas3, presentes no texto de Ovídio, ^gurativizam o próprio duelo entre as duas personagens:
Atena borda no centro sua antiga disputa com Poseidon, ou seja, sua própria imagem:
At sibi dat clipeum, dat acutae cuspidis hastam,
Dat galeam capiti, defenditur aegide pectus,
Percussamque sua simulat de cuspide terram
Edere cum bacis fetum canentis oliuae;
Mirarique deos; operis Victoria ^nis.( (OVÍDIO, Met., 6.78-82)
Para si mesma, por sua vez, dá um escudo, dá uma lança com a ponta a^ada, dá um capacete para a cabeça, o peito é protegido pelo escudo e representa que a terra golpeada por sua lança produz um fruto com grãos da branca oliveira; os deuses se espantam; a vitória é do trabalho o ^m.4
Já nas extremidades, Atena representa os mortais que desa^aram os deuses e acabaram sendo punidos por meio de metamorfoses. Dessa forma, a imortal divindade se vangloria e intimida a humana Aracne, diante da demonstração do grande poder dos deuses:
Threiciam Rhodopen habet angulus unus et Haemum,
Nunc gelidos montes, mortalia corpora quondam,
Nomina summorum sibi qui tribuere deorum.
Altera Pygmaeae fatum miserabile matris
Pars habet; hanc Iuno uictam certamine iussit
Esse gruem populisque suis indicere bellum.
Pinxit et Antigonen, ausam contendere quondam
Cum magni consorte Iouis, quam regia Iuno
In uolucrem uertit; nec profuit Ilion illi
Laomedonue pater, sumptis quin candida pennis
Ipsa sibi plaudat crepitante ciconia rostro (OVÍDIO, Met., 6.87-97).
Em uma extremidade, há o trácio Ródope e o Hemo, agora gélidos montes, outrora corpos mortais, os quais atribuíram para si os nomes dos deuses supremos. Na outra parte, há o miserável destino da mãePigmeia: a ela,vencida na competição, Juno ordenou que se tornasse um grou e declarou guerra a seus povos. Bordou também Antígona, que um dia ousou rivalizar com a esposa do grande Júpiter, a quem a régia Juno transformou em ave; nem lhe foi útil Ílion ou seu pai Laomedonte, de forma que ela, uma branca cegonha com as penas adotadas, aplaudisse a si mesma crepitando o bico.
Aracne, diante dessa intimidação, segue o mesmo princípio da deusa e também tece cenas sugestivas e pertinentes ao contexto da disputa, todas relacionadas aos disfarces dos deuses para conseguir atingir seus objetivos, assim como fez Atena. Dessa forma, o ato de tecer histórias e representações nas vestes funciona como uma metáfora da escritura de um texto, e, neste caso, da reinterpretação da mesma temática do mito em outras narrativas.
Ao apropriar-se desse mito registrado por Ovídio, Leminski relaciona o ^o de Aracne aos ^os e teias presentes em outros mitos, sempre articulando a relação do mito com o fazer poético. Isso pode ser veri^cado no trecho "Teia de Atena, teia de Aracne, teia de Penélope, ^o de Ariadne, as Parcas tecem destinos e fados, o ^o da meada, histórias a ^o" (LEMINSKI, 1994, p.34).
Primeiro há remissão à própria teia de Atena, que como deusa da atividade inteligente protege as ^andeiras. Depois, à teia de Penélope, esposa de Ulisses, que conservou os votos matrimoniais, desmanchando durante toda a noite o trabalho de tecer a mortalha de Laertes feita durante o dia. Finalmente, o narrador de Metaformose faz menção ao ^o de Ariadne que, desenrolando seu novelo, indicou a Teseu o caminho de regresso do labirinto. Notemos que Leminski retoma a ideia do movimento de tessitura ou simplesmente o uso de um ^o para se referir ao ato de escritura de um texto, que constrói destinos e fábulas, assim como as Parcas ou Moiras, divindades que decidem o destino dos homens.
Além dessas rememorações míticas tecidas na teia de Aracne, a estrutura de repetições de palavras criada por Leminski encena textualmente o alinhavo de histórias. Observem-se, principalmente, nos três primeiros sintagmas a tripla reiteração da palavra "teia" que costura Atena, Aracne e Penélope e, depois, como que num arremate do avesso, a sentença passa a se costurar com a palavra "^o" que, pontuada outras três vezes, encerra o período.
Um segundo trecho que destaca o mito de Aracne vem conectado com a morte do narrador da história, o personagem mitológico Narciso no parágrafo ^nal da narrativa: "Nada mais pode mudar isso, a não ser isso. Morreu um deus, morrem todos, a teia de Aracne, a tela de Penélope é inconsútil" (LEMINSKI, 1994, p.39). Essa passagem perpassa pela perspectiva metapoética que Leminski vem trabalhando desde o princípio de Metaformose. Há uma metaforização do mito, ao relacionar o próprio mito com o ato de escritura. Ao morrer o narrador Narciso não expira por completo, pois, assim como ele se metamorfoseia, a fábula também pode se recriar em outras fábulas. Como metáfora da teia de Penélope, as histórias são inconsúteis também, isto é, não possuem "costuras" e podem ser retomadas e reorganizadas em novos textos, como uma colcha in^nita em que cada escritor-bordador pros-segue com o trabalho de seu antecessor. Leminski continua a meada de Ovídio em Metaformose, deixando em aberto a tela para um vindouro sucessor.
Partindo das análises feitas a respeito do mito de Aracne e sua relação com os traços metapoéticos de Metaformose, vale chamar atenção aos trechos em que estão no primeiro plano a relevância do mito, da narrativa e das fábulas e suas relações com as recriações textuais. Os mitos são concretos e abertos, como verdadeiras obras de arte, é o que ^ca claro no trecho:
Fatos não se explicam com fatos, fatos se explicam com fábulas. A fábula é o desabrochar da estrutura, arquétipo em ^or. [...] Sob as espécies da fábula, pensa-se o impensável, invade-se o proibido, viola-se o interdito, há uma lenda que diz, um dia, tudo vai ser dito. As histórias sozinhas, se contam entre si (LEMINSKI, 1994, p. 21-23).
Leminski também diz que os mitos trabalham por suposições, e o fenômeno linguístico mais a^m ao mito é a metáfora, que faz com que haja uma intuição de semelhança entre dissemelhantes, e tudo isto está ligado à imaginação:
Seres se traduzem, tudo pode ser metáfora de alguma outra coisa ou de coisa alguma, tudo irremediavelmente metamorfose. [...] Se tudo pode ser metáfora de qualquer coisa e qualquer coisa pode ser traduzida numa coisa qualquer, não há centro, o centro pode estar em qualquer parte, ao mesmo tempo, ou nun-ca estar em lugar nenhum (LEMINSKI, 1994, p. 25-26).
Retomando a relação com as ideias sobre a narrativa contemporânea desenvolvidas por Augusto de Campos, esta ligação com a metamorfose das palavras e das narrativas nos remete diretamente ao texto de Ovídio. Como foi lembrado por Santos e Atik (2011) em seu artigo "A Metamorfose de Narciso e Eco em uma relação do eu e do outro" ao a^rmar que
[...] as Metamorfoses são um poema da metamorfose no mito muito mais do que um poema de metamorfoses mitológicas, pois não importa ao poeta a substância do mito e sim suas qualidades imaginativas e estilísticas, aqui está um aspecto essencial da originalidade ovidiana (SANTOS; ATIK, 2011, p.198).
Essa originalidade da forma identi^cada pelas autoras é matéria essencial à nova tessitura leminskiana. Metaformose dá lugar à de^nição de mito como palavra fundadora, estrutura primordial do mundo e da vida, mas também o recobrar dessa fundação e a possibilidade de sua reestruturação pelo novo escritor. Provavelmente o autor tenha partido dessa premissa ao escrever sua obra, já que durante a narrativa parece nos dar pistas sobre o seu processo de criação, como ^ca claro no trecho:
Ouvir e contar histórias pode ser a razão de uma vida. Essa vida, talvez, um dia, alguém a conte. E quem conta um conto, sempre acrescenta um ponto, um detalhe novo, uma articulação imprevista, uma aproximação com outras fábulas. [...] Não há lugar para sonhar com uma fábula que seja a soma de todas as fábulas, a Fábula total, a fábula universo (LEMINSKI, 1994, p. 24).
Se entendermos que mito para os gregos é aquilo que os latinos traduziram por fábula (não fábula só no sentido que o termo ganhou como gênero praticado por Esopo, mas no sentido lato do verbo fari que signi^ca "falar" em latim), mito e fábula são, portanto, discursos ("histórias"). Mas o termo latino não vingou neste campo e o étimo helênico, que jaz em mito (μ?θοsfgr;), empurra-nos para a Hélade, para aquele mundo que consideramos (conquista após conquista, língua sobre língua, cultura ante cultura) ter fundado poeticamente o imaginário ocidental. Assim, o vocábulo mito nos faz pensar em um discurso como aquele de Homero ou de Hesíodo, isto é, em teofania, Teogonia, cosmogonia. Não já é mais, portanto, um discurso. É o discurso (Mitologia) que tem o poeta como fabro (poietes, "o que faz") ou recriador (desde que poesia seja imitação). Desse primado do poeta sobre o discurso vem a multiplicidade de versões da mitologia e sua produtividade mesmo em tempos mais adiantados como era o de Ovídio em relação aos seus antecessores, como é esse de Leminski em relação ao poeta romano.
Conclusão
O próprio Leminski no artigo "Três Línguas" diz que o Latim "é uma Arcádia, uma matemática, um sistema fechado" (2011, p. 156), para ele a língua latina pertence ao mundo das essências e deixa as locuções populares sem tradução. Porém, mais adiante o autor a^rma que escrever nessa língua de código fechado é uma arte combinatória ou arte de colagens, pois ela possui uma sintaxe extremamente ágil e há praticamente todas as possibilidades de combinações de palavras dentro da frase. É esta característica que Leminski desenvolve em sua obra, a partir da liberdade sintática e de sua consequente expressividade semântica emprestadas da língua latina, ele recria a obra de Ovídio em língua portuguesa, usufruindo das liberdades que essa língua moderna pode acomodar.
Quanto ao trabalho com a forma, no poema "vezes versus reveses", Leminski deixa subentendido o que pretende em projetos literários narrativos mais ousados como são Catatau e Metaformose, demonstrando a recursividade da narrativa que se concentra mais no signi^cante, imediatamente anterior, do que na narrativa como sentido e continuidade de sentido:
vezes versus reveses
um ^ash back
um ^ash back dentro de um ^ash back
um ^ash back dentro de um ^ash back de
um ^ash back
um ^ash back dentro do terceiro ^ash back
a memória cai dentro da memória
pedra^or na água lisa
tudo cansa (^ash back)
menos a lembrança da lembrança da lembrança
da lembrança
Essa recursividade está presente em toda Metaformose em que se percebe claramente como a "forma" importou no projeto de construção poética muito além do "sentido", e que a partir da "forma" o "sentido" foi sendo reconstruído. Assim como Ovídio atribuiu menos importância à substância dos mitos que às suas virtudes imagéticas e combinatórias, para Leminski a retextualização de cunho mitológico é muito menos dicionário de mitologia que pretexto criativo de exploração da forma e, nesse sentido, ele revelou em Metaformose uma desa^adora recriação ("refazimento") de Ovídio dentro de mais um de seus peculiares exercícios de liberdade de linguagem.
3 Esse tópico também é trabalhado na dissertação de mestrado de Benites (2008), quando apresenta os efeitos expressivos escolhidos por Ovídio ao descrever os mitos nas peças têxteis ^adas pelas tecelãs. Esses efeitos passam tanto pela análise da métrica do poema, quanto à escolha do vocabulário feita por Ovídio.
4 Quando não for indicada a fonte, a tradução latina é de nossa autoria.
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Recebido em: 02/12/2013. Aceito em: 21/03/2014.
Lívia Mendes Pereira1
Brunno Vinicius Gonçalves Vieira2
1 do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP - Araraquara.
2 Professor da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP - Araraquara.
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Copyright Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Letras Jan-Jun 2014
Abstract
This article provides an analysis of Leminski's Metaformose that establishes a remarkable re-reading of Ovid's Metamorphoses. It is a poetic narrative published posthumously in 1994. This work, which received "Prêmio Jabuti de Poesia" in 1995, was found among the papers of the author along with many essays, short stories, poems and a novel. Through the author's own theoretical conceptions, one seeks to interpretating the way the myth of Arachne is approached by him, reflecting on the reinvention and reinterpretation of both Greek and Latin mythology and Literature in contemporary writing.
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