Resumo
Um número crescente de pesquisas sobre o humano tem tido a atençao voltada para trabalhos na área biotecnológica, em busca de uma compreensao contemporánea dos atributos humanos, tradicionalmente associados ao abstrato, ao filosófico. Nao obstante seu emprego predominante e indiscutível imbricamento na área da geologia, o termo "antropoceno", por sua vez, vem sendo usado com cada vez mais frequencia por pesquisadores e profissionais das mais variadas áreas para destacar como a humanidade está mudando nosso planeta. Ao convocar o conceito de antropoceno para este trabalho, meu intuito é de sinalizar o momento nao somente geológico mas histórico e cultural. A realidade subjacente ao conceito lança a humanidade em uma seara de incerteza tanto científica quanto discursiva. Com isso em mente, propöe-se discutir a cena humana (a antropo-cena) a partir da ficçao especulativa, levando em conta o papel da linguagem e da representaçao na construçao do (pós)humano, frente ao desastre, ao biopoder e a biopolítica.
Palavras-chave: Ficçao Especulativa; Antropoceno; Pós-humano; Biopoder; Biopolítica
Abstract
A growing body of research on the Human focuses on work being developed in the field if Biotechnology, in search of an understanding of contemporary human attributes traditionally associated with the abstract, with the philosophical. Notwithstanding its predominant employment and undisputed imbrication in the field of Geology, the concept of the Anthropocene, in its turn, is being increasingly used by researchers and professionals from a variety of fields to underscore how humanity is changing our planet. By deploying the concept, I wish to signal both the geological and the historical and cultural moment being experienced by humanity. he underlying reality behind the concept of the Athropocene leads us into both scientific and discursive uncertainty. With this in mind, this work proposes to discuss the human scene (the 'anthropo-scene') as represented in speculative fiction, taking into account the role of language and representation in the construction of the (post)human visa-vis disaster, biopower and biopolitics.
Keywords: Speculative Fiction; Anthropocene; Post-human; Biopower; Biopolitics
Vivemos num mundo confuso e confusamente percebido.
Milton Santos (2011, p.9)
For the first time, we as human beings collectively constitute ourselves and, hence, are responsible for ourselves.
Michael Geyer e Charles Bright (1995, p. 1059)
he disaster, unexperienced. It is what escapes the very possibility of experience - it is the limit of writing. his must be repeated: the disaster de-scribes.
Maurice Blanchot (1995, p. 7)
Oficialmente, estamos no período interglacia1 que se seguiu a última Idade do Gelo - a idade chamada Holoceno. 1 Contudo, em 2002, o vencedor do Premio Nobel em química, Paul Crutzen, sugeriu que o planeta havia entrado em uma nova era, o Antropoceno2, por conta dos efeitos ambientais resultantes do crescimento da populaçâo humana e do desenvolvimento económico, e o termo vem sendo empregado informalmente por vários geólogos, para denotar o ambiente global contemporáneo, dominado pela atividade humana (cf. ZALASIEWICZ, 2008, p. 4). Por conta disso, recentemente, a Uniao Internacional de Ciencias Geológicas (IUGS) determinou que a Comissao Internacional de Estratigrafía (ICS) criasse um grupo de trabalho (o WGA- Working Group on the Anthropocene) para discutir os efeitos referidos por Crutzen e, aplicando os mesmos criterios usados para estabelecer novas eras, avaliar se, de fato, justifica-se a necessidade de estabelecer o novo termo para denominar uma suposta nova idade geológica. (cf. ZALASIEWICZ, 2008, p. 4). Uma proposta sobre o assunto foi votada, em agosto de 2016 deste ano, durante o Congresso Internacional de Geologia, realizado na África do Sul. Entre os 35 cientistas do WGA, trinta votaram a favor, tres contra e houve duas abstençöes. Agora o grupo terá cerca de tres anos para determinar quais seriam os sinais mais fortes que determinam a nova era geológica (cf. CARRINGTON, 2016). Para Jan Zalasiewicz, professor da Universidade de Leicester, no Reino Unido, presidente do grupo de trabalho da ICS e um dos coautores da revisao, "há uma realidade subjacente ao conceito do Antropoceno" -
[...]as marcas deixadas pela açao humana na Terra sao tantas, tâo espalhadas e tăo profundas que a definiçao do Antropoceno seria "inequívoca". Entre elas, por exemplo, estăo os chamados "tecnofósseis", como os residuos de plástico, concreto, aluminio elemental e outros materiais artificiais que acabaram nos depósitos sedimentares do planeta e nos oceanos. Outros registros importantes apontados [pelo grupo de trabalho] săo a fuligem e as cinzas da queima de combustíveis fósseis que também encontraram lugar nestes sedimentos, além de se acumularem no gelo das regioes polares a partir do século XVII. (ZALASIEWICZ, apud BAIMA, 2016, s/p)3
Podemos, resumidamente, considerar os fatores listados acima. Mas há muitos outros setores que vem sofrendo o impacto da atividade humana, em escala global, assim como na atmosfera. O termo antropoceno vem sendo usado com cada vez mais frequencia por pesquisadores e profissionais das mais variadas áreas4 para destacar como a humanidade está mudando nosso planeta. O impacto previsto implicará esforços de adaptaçao por parte da humanidade, por conta de emissöes de gases e hiperaquecimento global e forças geofísicas e biológicas que fugirao ao controle humano. Secas, ciclones tropicais, ondas de calor, colheitas perdidas, enchentes, incendios florestais e erosöes sao alguns exemplos extremos, com consequencias extremas, como fornecimento insuficiente de água, má-nutr^ao e doenças infecciosas. Esses fenómenos levarao, por sua vez, a migraçao massiva e conflitos regionais cada vez mais intensos.
Nao é apenas a geologia que está em um estado de perturbaçao. O conceito de antropoceno serve para designar um momento histórico mundial: tudo que é construído pelos humanos e que interfere nos sistemas naturais, engloba, em grande medida, as mudanças paradigmáticas que estamos testemunhando nas áreas de inteligencia artificial, neurociencia, biologia e biotecnologia, entre outras, e nos lança em uma seara de incerteza tanto científica quanto discursiva. Por conta da intercontaminaçao natureza-cultura, a humanidade será levada a defrontar-se com novas consequencias organizacionais que urgem repensar o que vou chamar aqui (talvez nao muito acuradamente) de "princípios holocenicos". Justifica-se, portanto, o emprego do conceito para sinalizar o momento nao somente geológico do planeta (nao obstante seu emprego predominante e indiscutível imbricamento na área da geologia) mas histórico e cultural da humanidade - a realidade subjacente ao conceito, para tomar emprestadas as palavras de Zalasiewicz, citadas acima, e reforçadas pelas oportunas observaçöes de Latour:
he 'anthropos' that is pushed center stage by geologists is not the same passive entity that used to populate the older narrative full of 'natural' causal agents. It is a being that is inevitably endowed with moral and political history. (LATOUR, 2014, 139-AAA 4)
How could you "naturalize" anything anyway when the very ingredients of what used to play the role of "natural forces" have been so transmogrified that they include humans in pieces and morsels at every junction? All field studies are studying devastated sites in crisis. To be on planet Earth at the time of the Anthropocene is not the same thing as being "in nature" at the time of its modernization. (LATOUR, 2014, 139-AAA 12)
É interessante notar como a desconstruçâo de Latour do "principio holocenico" de que nós, humanos, nada podemos contra as forças da natureza, remete, indiretamente, para movimentos literários miméticos, como o realismo e, em especial, o naturalismo, na literatura e nas artes - que propunham um olhar cientificista do mundo. E é a partir dessa constataçâo que eu gostaria de iniciar minhas consideraçöes, traçando um paralelo entre a argumentaçâo de Latour de que a própria ideia de antropoceno coloca a atuaçâo humana (human agency) no centro de nossas atençöes e a sugestao de que o olhar "científico" encontrado, contemporaneamente, em obras de ficçâo científica ou especulativa, já nao se propöe impessoal, como na tradiçâo realista, uma vez que essas obras tematizam, em enorme medida, questöes de atuaçao humana.
Sem sombra de dúvida, o genero que mais especula sobre as consequencias da tecnociencia para a humanidade é a ficçâo científica. Na Introduçao de he Cambridge Companion to Science Fiction, Farah Mendelsohn (2003) problematiza a ficçâo científica como (sub)genero literário, argumentando em favor da mesma como uma discussâo ou modo de narrar. Seguindo esta linha de raciocínio, podemos afirmar que há um vasto repertório de obras que, incorporando uma forma hibridizada de ficçâo especulativa, convoca tanto as convençöes e técnicas narrativas da ficçâo científica quanto as técnicas de generos literários mais tradicionais. Jameson (2006, p. 109) analisa esse fenómeno a partir da crise de representaçâo, no capitalismo tardio, argumentando que o romance tradicional se encontra por demais comprometido com o que ele denomina "realismo ontológico". Para ele, o romance tradicional nao imagina de maneira adequada o que é significativo, porque o significativo é algo que ainda nao existe. Na visâo do crítico marxista, as ficçöes especulativas tem o potencial para nos fornecer uma espécie de variaçao experimental de nosso universo empírico. A autora Ursula Le Guin, por sua vez, faz uma comparaçao entre o romance realista e a obra de ficçao científica que lembra muito as distinçöes feitas por Jameson entre o romance tradicional e as narrativas que incorporam elementos da ficçao científica. Ela enfatiza, ainda, o caráter moral e intelectual da ficçao científica, e sua preocupaçao com o coletivo:
Only the trash forms of science fiction are undemanding and predictable; the good stuff, like all good fiction, is not for lazy minds. Where the complexity of realistic novels is moral and psychological, in science fiction it's moral and intellectual; individual character is seldom the key. (LE GUIN, 2011, s/p)
Seguindo essa linha de raciocínio, a interface antropoceno ("era dos humanos")/pós-humano mostrase profícua para os estudos de narrativas futurológicas e, em especial, narrativas de catástrofe e "genómicas".5 Cabe citar Boes e Marshall:
[I]t is worthwhile to reflect on the etymological origins of the term Anthropocene. As many observers have pointed out, the term seems tainted by a certain disingenuousness: it asserts the dominance of man (anthropos) at a time when we have actually become more aware than ever of our fungibility as a species. Viewed from a different perspective, however, the term seems perfectly appropriate. For the names of the preceding three geologic epochs - the Pliocene, Pleistocene, and Holocene - translate respectively as "newer time," "newest time," and "entirely new time" and thus give these seemingly neutral period designators an inexorable orientation toward the present. By contrast, the term Anthropocene derives from the imaginary etonym anthropos kainos, which we might translate somewhat awkwardly as the "time of the new man." The seeming humanism of the term thus actually reveals its underlying posthumanism. (BOES e MARSHALL, 2014, p. 62)
O termo antropoceno, traz, portanto, um double bind: pöe o humano, novamente, no centro, e aponta, a um mesmo tempo, para a época pós-humana, numa espécie de oxímoro, já que, para alguns críticos, o pós -humano antecipa o evento da "Singularidade" - i.e., o futuro pós-biológico da humanidade, geralmente tendo máquinas como nossos descendentes evolucionários. Para outros, como Katherine Hayles (1999), contudo, essa linearidade é problematizada, com nuances mais complexas. Para a autora, o pós-humano nao deve ser descrito como uma ruptura apocalíptica com o passado, mas, antes, como uma relaçao em que inovaçao e replicaçao se superpöem - um padrao que ela denomina seriation (seriaçao), termo que ela toma emprestado da antropologia arqueológica.6 Nesse sentido, autoras como Hayles (1999), Ferrando (2012) e Braidotti (2013) usam o conceito como metodologia de revisao crítica do modelo humanista liberal, fruto do Iluminismo, situando-o dentro da prática crítica de repensar/ reconstruir o humanismo. Autores como Neil Badmington (2003) preferem falar em pós-humanismo. Ao optarem pelo emprego de post-humanism, na citaçao acima, Boes e Marshall vao ao encontro do trabalho desses críticos. Minha própria posiçao tem sido a de buscar, através da leitura de textos ficcionais, o pós-humanismo crítico assinalado aqui, de perspectiva interdisciplinar, em que o pós-humano figura como reflexao crítica sobre a modernidade tardia, sobretudo no que concerne as novas formas de tecnología, e as novas formas de pensamento que lhe sao sincrónicas. De que forma as atuais mudanças paradigmáticas trazem, ironicamente, a baila o discurso humanista tradicional, reforçando novas formas de dominaçao ou exclusao? Que formas de resistencia ao discurso tecnológico hegemónico podemos inferir, nas obras de ficçâo que especulam sobre nosso futuro?
It is a historical fact that the great emancipatory movements of postmodernity are driven and fuelled by the resurgent "others": the womens rights movement; the anti-racism and decolonization movements; the anti-nuclear and pro-environment movements are the voices of the structural Others of modernity. hey inevitably mark the crisis of the former humanist "centre" or dominant subject-position and are not merely anti-humanist, but move beyond it to an altogether novel, posthuman project. (BRAIDOTTI, 2013, p. 37)
As palavras de Rosi Braidotti sugerem a produtividade do diálogo entre os projetos pós-humanista e o pós-colonial. Ao mesmo tempo, ao tocar nas questöes ambientalistas, ela também traz suas consideraçöes para o tema do antropoceno. Segundo Dipesh Chakrabarty (2009), em seu ensaio bastante citado intitulado "he Climate of History: Four theses", o antropoceno desafia tanto historiadores e críticos pós-coloniais quanto pesquisadores das mais diferentes disciplinas porque nos força a repensar radicalmente o escopo da atuaçao humana. O historiador indiano escreveu, ainda, em seu conhecido ensaio, que só podemos nos tornar agentes geológicos histórica e coletivamente quando tivermos alcançado números e inventado tecnologias em larga escala a ponto de causar impacto no planeta em si (cf. CHAKRABARTY, 2009, p. 206). Mas como podemos imaginar "em larga escala"? A escala hiperdimensionada é um tropo caro a ficçâo e ao cinema especulativos. Sao generos que frequentemente dramatizam o momento fatal em que a força antropogenica chega ao limite, "[a] o ponto de virada em que o pano-de-fundo da açao humana, aparentemente lenta e eterna, transforma-se com uma velocidade que só pode significar desastre para os seres humanos"7 (CHAKRABARTY, 2009, p. 205). A ficçao especulativa, através da representaçao de situaçöes limite como catástrofes naturais, epidemias, mutaçöes genéticas etc., nos convida a imaginar o momento de risco quando a "antecipaçâo da catástrofe" (BECK, 2007, p. 7) se transforma em perigo e catástrofe de fato - o que é geralmente representado de forma (pós)apocalíptica. Nesse sentido, trata-se de um genero, ou modo de narrar, que nos ajuda a experimentar, através da imaginaçâo, a força geopolítica que é o humano.
Visando ao diálogo entretecido desses tópicos com os estudos de literatura, convoco quatro obras que abordam de maneira bem definida as questöes discutidas acima, centralizando a açâo em grupos de pessoas socialmente excluidas, em virtude de experiencias ou mutaçöes genéticas ou de alguma pandemia; e/ou navegando por um mundo caracterizado pelo capitalismo desordenado, a decadencia ambiental, o colapso radical da ordem, gerando novas formas de exclusâo, muitas vezes após uma catástrofe ambiental. Proponho puxar, primeiramente, os fios comuns entre Parable of the Sower, de Octavia Butler (2000) e Oryx and Crake, de Margaret Atwood (2003), buscando, na sequencia, aproximaçöes das duas obras com o thriller de hard Science Darwins Radio, de Greg Bear (1999). Tecerei, por fim, algumas breves comparaçöes/contrastes com he Rag Doll Plagues, do chicano Alejandro Morales (1991). Cabe ressaltar que o argumento para que estas obras sejam agrupadas nâo é a questâo da existencia ou nâo da representaçâo de uma nova era geológica, e sim o valor histórico que o conceito de antropoceno inspira, no sentido de ser um marcador relevante para entabular um debate sobre as intervençöes humanas nos sistemas naturais de um modo geral.
Faço, antes, um pequeno desvio, visando a inserir a discussâo no escopo mais abrangente do projeto de pesquisa que venho desenvolvendo nos últimos anos. Parece-me que podem ser identificadas duas vertentes de representaçâo em obras que narram a antropo-cena pós-humana: uma apocalíptica e a outra integrada (fica aqui a divida para com Eco devidamente registrada), na medida em que elas remetem para cenários futurológicos diferentes, até mesmo opostos - cenários que despertam em minha imaginaçâo a tensâo entre o que Benjamin R. Barber (1992) chama de "Jihad versus MacMundo": de um lado, a retribalizaçâo de uma enorme parcela da humanidade, através de guerras e derramamento de sangue - cultura contra cultura, tribo contra tribo, povo contra povo-, em nome da fé, de (ou contra) todo tipo de independencia ou autonomia; de outro, a investida de forças económicas e ecológicas que demandam integraçâo e uniformidade, e a pressâo para que as naçöes formem uma vasta rede comercial global homogénea. Hipótese a ser explorada: a narrativa pós-humana apocalíptica assinala o fim do mundo (pelo menos como o conhecemos) e é, nesse sentido, a representaçâo de um colapso radical da ordem, um pesadelo da anarquia extrema (desaparecimento do Estado). Nessas narrativas, a metrópole aparece como um espaço de inclusâo radical. O espaço metropolitano de violencia e cacofonia lembra a multidâo de Negri (2006), com seu hibridismo e potencial para a subversâo de normas. Já na narrativa pós-humana integrada há um aperfeiçoamento sinistro da ordem, um pesadelo do autoritarismo radical (com um Estado fortemente presente e, geralmente, tem-se um estado de polícia). Na primeira, a imagem central é de sucata, com póstecnocratas ensebados, maltrapilhos e, geralmente, nómades, foragidos ou desertores, rondando ou fugindo do mundo, a procura de condiçöes mínimas de sobrevivencia. Sua versâo de subjetividade é marcada pela "constelaçâo de singularidades" da multidâo (HARDT e NEGRI, 2006, p. 60). A segunda representa um mundo clean de corporaçöes predatórias - o que podemos chamar de pesadelo do neoliberalismo aperfeiçoado. Sua versâo de subjetividade é marcada pela padronizaçâo. Parafraseando Bauman: primeiramente, pela aplicaçâo da racionalidade burocrática aos problemas socioeconómicos, por parte do estado; e segundo, pela constituiçâo de comunidades que opöem "nós" aos "outros", através de políticas xenofóbicas (cf. BAUMAN, 1989, p. 91). Contudo, como buscarei demonstrar, pode ser percebido um deslizamento, nessas obras, entre as duas forças narrativas descritas acima, de difícil resoluçâo, sugerindo que o desenho da sociedade contemporánea é constituído pela tensâo contínua entre as duas vertentes, por vezes "confusamente percebidas", para tomar emprestadas as palavras de Milton Santos, na epígrafe acima. Essa "nova desordem do mundo" é descrita por Bauman como o mal-estar na pós-modernidade:
Após meio século de divisðes bem definidas, tanto interesses evidentes como indubitáveis designios e estratégias políticas privaram o mundo de estrutura visivel e de qualquer - por mais sinistra - lógica. A política dos blocos de poder, que năo há muito tempo dominou o mundo, assustado com o caráter horripilante de suas possibilidades: o que quer que venha a lhe tomar o lugar assusta, no entanto, por sua falta de coerencia e diregăo - e também pela vastidăo das possibilidades que pressagia. (BAUMAN, 1998, p. 33)
Entre as obras selecionadas para discussao, as que tematizam os efeitos do antropoceno de forma mais explícita sao Parable of the Sower, de Octavia Butler, e Oryx and Crake, de Margaret Atwood. Ambas sao ambientadas em sociedades futuristas balcanizadas, onde reina a barbarie, a anarquía, o caos e a guerra diária por alimento e água (cujo preço, na primeira, é mais alto que o da gasolina e, mesmo assim, encontra-se contaminada), tornados escassos devido ao aquecimento global. E ambas representam mundos dominados por corporocracias: em Parable of the Sower - cuja história corresponde ao diário de Lauren Olamina, no período de julho de 2024 a outubro de 2027 - as corporaçöes sao donas de cidades inteiras e mantem seus trabalhadores sob regime de escravidao; em Oryx and Crake o ambiente e seus habitantes sao fortemente policiados pela Corporation Security Corps, intimamente aliada a engenharia genética. É interessante de se notar ainda que, tanto na primeira quanto na segunda, há uma separaçao explícita entre o dentro e o fora: na obra de Butler, sabemos que a protagonista vive no que outrora fora um condominio fechado (agora em ruinas), e que aventurar-se no mundo "lá fora" é correr risco de vida; e na obra de Atwood os habitantes dos Compounds - áreas fechadas, compradas pelas várias empresas para seus membros - sao um forte contraste aos Pleeblands, onde vive a "plebe rude", jogada a sua própria sorte, enfrentando perigos e insegurança constantes.
Nao obstante o tropo dentro/fora, fica bastante clara a predominancia da narrativa apocalíptica, uma vez que, embora ambas as obras representem espaços fechados, onde a ordem fica, supostamente, garantida - na primeira, através do controle dos corpos escravizados dos trabalhadores; e, na segunda, através dos Compounds estreitamente vigiados - a presença do estado é apagada, e substituida por corporaçöes. Cabe notar que, em Parable of the Sower, o condomínio fechado, outrora utopia da classe média, já nao representa segurança, já que o espaço de "dentro" sofre constantes ataques por parte da multidao - indivíduos desesperados que conseguem entrar as escondidas na comunidade. O espaço de fora é área de alto risco:
...(it is) risky going outside where things are so dangerous and crazy. (BUTLER, 2000, p. 7). All adults were armed. hat's the rule. Go out in a bunch, and go armed. (BUTLER, 2000, p. 8). I think if there were only one or two of us, or if they could not see our guns, they might try to pull us down and steal our bikes, our clothes, our shoes whatever. hen what? Rape? Murder? (BUTLER, 2000, p.10).
Espremido entre o autoritarismo do estado e a tirania empresarial, o sujeito acaba por nao conseguir construir uma identidade. "Com a desintegraçao da estabilidade aparente", escreve Olamina em seu diário, "... as pessoas cedem ao medo e a depressao, a carencia e ganância"8 -
When no influence is strong enough to unite people they divide, they struggle, one against one, group against group, for survival, position, power. hey remember old hates and generate new ones, they create chaos and nurture it. hey kill and kill and kill.. . . [U]ntil one of them becomes a leader most will follow, or a tyrant most fear. (BUTLER, 2000, p. 91, grifos meus)
Já na obra de Atwood, os cidadaos integrados - i.e, aqueles que internalizam os objetivos, verdades e ética da corporocracia, negando e excluindo qualquer ameaça a padronizaçâo - vivem encapsulados nos Compounds. Os Pleeblands, com sua multidao, nao sao considerados espaços produtivos, porque vivem imersos em revoltas e doenças. Uma outra distinçâo importante em Oryx and Crake é entre ciencia e arte: as artes sao desvalorizadas e as ciencias sao exaltadas como responsáveis por rearrumar os "building blocks of life" do lucro. Esta divisao é simbolizada pelo bem-sucedido tecno- crata Crake, e seu melhor amigo, Jimmy (Snowman), que nao se considera um bom cientista, mas tem o dom das palavras. O romance, narrado em flashback (ou seja, após a catastrofe), abre com Snowman vivendo no topo de uma árvore, a fim de proteger-se das matilhas de wolvdogs e outras criaturas híbridas. A civilizaçao e o meio-ambiente encontram-se em colapso radical e a antropo-cena é de corpos tóxicos. Snowman sobrevive como pode, evitando os raios solares de um planeta sem camada de ozônio e catando comida em parques de trailers abandonados. Ele cuida, ainda, de um grupo de crianças chamadas de Filhos de Crake. Aos poucos, descobrimos que esses inocentes sao o resultado biológico do projeto Paradice, desenvolvido com orçamento milionário de pesquisa e desenvolvimento, e que o mundo geneticamente alterado em que Snowman se encontra é parte de todo o processo. O pesadelo biotecnológico imaginado por Atwood é um olhar crítico, satírico até, sobre a tecnocracia global, liderada por gigantes da industria farmacéutica cujos nomes sao HelthWyzer, OrganInc e RejoovenEsense, que vendem uma variedade de designer drugs e happy pills. Os casais podem encomendar bebés "costumizados" a empresas como Infantade, Foetility e Perfectable. Há, ainda, uma abundancia de comidas sintéticas, além de "hiperanimais" criados em laboratório.
Percebemos que, nessas duas obras distópicas, as questöes ambientais e político-sociais imbricam-se: as autoras nao só representam o colapso ambiental, como mostram-se atentas aos aspectos fascistas da sociedade contemporánea, no sentido de apontarem, em suas ficçöes especulativas, para os sistemas de poder que geram os controladores da padronizaçao que buscam dominar os cidadaos. Â medida que se delineia, em nossa atualidade, um estado policial militarizado que chega para substituir o estado providéncia (Welfare state) como forma de controle social, a ficçâo especulativa torna-se, tristemente, realista: é o fascismo mostrando sua cara como possibilidade catastrófica.
Mas vejamos outras formas através das quais as obras sob escrutínio absorvem e dialogam com as causas e consequéncias da intervençao humana no mundo natural, em especial aquelas que tratam do livre-arbítrio e relaçöes de poder político-corporativas. Em Parable of the Sower, a jovem protagonista, Lauren Olamina, sofre da "síndrome da hiperempatia", fazendo com que sinta a dor ou prazer do outro. A síndrome é o resultado do uso, por parte de sua mae, da smart pill, 9 durante a gravidez. No mundo pós-apocalipse biotecnológica de Oryx and Crake, de Margaret Atwood, por sua vez, a espécie humana já se encontra modificada por Crake, que mata a antiga espécie, disseminando um vírus contra o qual somente ele está protegido - uma praga de proporçöes devastadoras, na forma de um "cavalo de Tróia" escondido em uma pílula (ecoando, em certa medida, a smart pill do texto de Butler). De maneira nao muito diferente, em Darwins Radio, de Greg Bear, mulheres grávidas sao vítimas de sintomas anômalos - entre eles, abortos espontáneos, causados pela ativaçao de um retrovírus no genoma humano (scattered human endogenous retrovirus activation). As descobertas de um especialista em genoma humano e de uma arqueóloga confluem para um diagnóstico estarrecedor: o SHEVA é o gatilho que irá catapultar a espécie humana para uma nova fase em sua evoluçao, pois, nas gravidezes virais10 subsequentes, as mulheres infectadas com o SHEVA dao a luz crianças mutantes que se comunicam através de uma combinaçao de olfaction, double-speak e curiosas pintas epidérmicas "empáticas" (ecoando, em grande medida, a síndrome da empatia de Olamina, em Parable of the Sower).
A obra de Bear constitui o que Lockhurst (2007) denomina evolutionary catastrophism - a tematizaçao da alteraçao biotecnológica da espécie humana e suas implicaçöes biopolíticas. A leitura que o crítico faz da representaçao da catástrofe nas ficçöes de Bear traz um elemento interessante para a presente discussao, pela sua argumentaçao de que o catastrophism estaría inscrito na imaginaçao estadunidense, desde a visao apocalíptica dos puritanos, e que sua reimaginaçao pelo autor serve como uma espécie de história alternativa do estado:
Bear elaborates a complex social portrait of species change. his story is overdetermined by weaving together government security agencies, Senate hearings, journalistic scoops, scientific conferences, anthropologists in difficult disputes over artefacts in Native American territories, private drug companies competing for patents, disease control agencies, and the pressure of the evangelical Christian right. (LOCKHURST, 2007, p. 216)
A antropo-cena descrita acima aponta tanto para o macmundo corporativo e midiático estadunidense como para seu fundamentalismo. Lockhurst lembra as "Darwin wars" - a batalha entre o darwinismo e o criacionismo -, que ganharam ímpeto na década de 1980, e seguem sendo ponto de contenda, a medida que o poder da direita evangélica estende, progressivamente, seus tentáculos para o estado.11
Darwins Radio emaranha o fundamentalismo religioso - uma parcela dos cidadaos afirma que as mulheres contaminadas com o Herod's flu (o nome em si traz conotaçöes bíblicas) estao povoando o mundo com os filhos do demonio - com o biopoder. Para Gilles Kepel (apud BAUMAN, 1998, p. 226), "[c]omo os movimentos dos trabalhadores no passado recente, os movimentos religiosos de hoje tem uma capacidade singular de revelar os males da sociedade, sobre os quais eles tem seu próprio diagnóstico". Bauman (1998, p. 228) acrescenta as consideraçöes de Kepel que "o fascínio do fundamentalismo provém de sua promessa de emancipar os convertidos das agonias da escolha. Aí a pessoa encontra, finalmente, a autoridade indubitavelmente suprema, uma autoridade para acabar com todas as outras autoridades" (grifo de Bauman). De acordo com a conceituaçao de Foucault (1988), o biopoder consiste em estratégias de intervençao sobre a existencia coletiva em nome da vida e da morte. Na janela que Bear abre para um futuro iminente, o governo federal dos EUA, em parceria com cientistas integrados, após, primeiramente, se negar a divulgar a verdade sobre o Herod's flu para a populaçao, passa a pressionar os pais a entregarem seus filhos mutantes para o governo. Se o fundamentalismo é um mecanismo de poder que oblitera o livre-arbítrio e o livre-pensar, deixando-os em maos de uma autoridade religiosa, o biopoder é, literalmente, o poder do estado sobre os corpos - uma série de mecanismos reguladores
inicialmente endereçad[o]s a populaçöes que poderiam ou năo ser territorializadas em termos de naçăo, sociedade ou comunidades pré-dadas, mas que também poderiam ser especificad[o] s em termos de coletividades biossociais emergentes, algumas vezes especificadas em termos de categorias de raça, etnicidade, genero ou religiăo, como nas formas recentemente surgidas de cidadania genética ou biológica. (RABINÓW, 2006, p. 29, grifos meus)
Sao práticas, em nome da saúde pública, que, no contexto de Darwin's Radio, servem para esconder a ligaçao entre o SHEVA e a evoluçao humana. A repressao do estado, configurando a mutaçao como uma doença, é uma alusao a questöes candentes, na contemporaneidade - alianças entre governos e a indústria biotecnológica, ética médica e da pesquisa científica, direito ao aborto, testes em laboratório. A aliança entre a força-tarefa e a empresa biotecnológica Americol sintetiza os problemas inerentes ao que um dos personagens descreve como "...the big world of cash biology, so importante and secret and full of itself' (BEAR, 1999, p. 73). O grande segredo, e a conspiraçao para abafá-lo, é a ligaçao entre o passado da humanidade (representado pela figura dos arqueólogos) e seu futuro (representado pelos cientistas): o vírus, adormecido em nossos genes por milhöes de anos, é ativado e ameaça concepçöes tradicionais de humano.
Vemos como o tema da contaminaçao está ligado ao pánico relacionado as epidemias. Ao mesmo tempo, a "evoluçao viral", em Darwin's Radio, serve de alegoria para o temor da mudança social - que desagua na exclusao do diferente e, por extensao, da xenofobia. Podemos estabelecer, ainda, um paralelo com o temor as epidemias atuais de dengue, zika e chicungunha, frequentemente atribuídas a contaminaçao do mundo hegemônico pelo "terceiro mundo". Sobretudo no caso do zika vírus, que, diferentemente do vírus da dengue e do chikungunya, também transmitidos pelo mesmo veículo - o mosquito aedes egypti -, invade o sistema neurológico e reprodutor feminino, causando microcefalia em fetos e recém-nascidos e Síndrome de Guillain-Barré (SGB), que afeta o sistema nervoso e causa fraqueza muscular. A questao atinente a modificaçâo genética induzida pelo vírus no feto contaminado permanece um mistério, e há, como em Darwins Radio, preconceito contra as maes contaminadas. 12
O tema do contágio também surge na obra he Rag Doll Plagues, de Alejandro Morales, que, no último episodio hiperdimensiona a catástrofe através de tropos de contaminaçâo em cenários transnacionais (Los Angeles/ Cidade do México), que funcionam como metáforas centrais para trazer a tona questöes como biopoder, diferentes respostas culturais a contaminaçâo do corpo e as consequendas da superpopulaçâo (sendo as cidades mencionadas acima paradigmáticas, como sabemos). A obra apresenta tres historias interligadas, sobre médicos lutando contra doenças infecciosas, passadas em tres épocas distintas: no México colonial; no México e sul da California dos dias presentes; e na tecnocrática LaMex (outrora EUA, Canadá e México) de 2079, em que a Tríplice Aliança reina suprema. O primeiro episodio narra a historia de um médico espanhol, enviado ao México para diagnosticar e curar a praga la mona - um vírus mutante trazido pelos espanhois para as colonias americanas com o intuito de dizimar a populaçâo indígena, e que se volta contra os colonos; o segundo episodio é narrado por um médico do século XX, residente em Los Angeles, cuja mulher hemofílica contrai AIDS, através de uma transfusâo de sangue; na segunda terceira historia, narrada pelo neto do médico do episodio anterior, uma praga semelhante a la mona (traduzida para the rag doll plagues) está aniquilando a populaçâo de LaMex.
O poder de resistencia da nova praga rag doll reside exatamente em sua natureza transitoria, capacidade de adaptaçâo e inteligencia artificial. Para efeitos da discussâo que está sendo entabulada, focarei apenas no terceiro episodio, ou era, do romance de Morales. Os agentes do regime biopolítico que controla LaMex lutam contra uma epidemia que ameaça a populaçâo de Los Angeles. Embora o cáncer e a AIDS tenham sido erradicados, surge uma nova "praga", resultante da extrema poluiçâo ambiental e da superpopulaçâo, que nâo discrimina suas vítimas por raça, classe ou genero. Infectados com uma doença pulmonar, os cidadâos morrem afogados em seu proprio sangue, pois a doença causa o colapso respiratorio. O médico que narra o episodio, Gregory, descobre, por acaso, que a populaçâo da Cidade do México - uma das cidades mais poluídas do mundo - é imune a praga, por conta das mutaçöes genéticas em seu sangue que lhe possibilita adaptar-se e sobreviver ao ambiente infectado. Vemos que, apesar da representaçâo de uma era pos-nacionalista, a depleçâo dos recursos mexicanos por parte da cultura hegemônica continua sendo a práxis no futuro imaginado por Morales: os mexicanos, outrora migrantes indocumentados servindo de mâo-de-obra barata para os estadunidenses, continuam "dando seu sangue" - so que agora, ironicamente, como cobiçados doadores do sangue que irá salvar o "primeiro mundo" da devastaçâo.
As tensas relaçöes entre "anglos" e mexicanos estâo subjacentes a narrativa de he Rag Doll Plagues, trazendo o tema das epidemias para um contexto pos-colonial, na medida em que a experiencia de chicanos é marcada por várias características do colonialismo, tais como exploraçâo econômica e opressâo política, podendo ser adotado o conceito de colonialismo interno para referir-se a subordinaçâo socioeconómica e cultural de migrantes mexicanos na sociedade estadunidense.
Conclusäo
Ao privilegiar obras de ficçâo especulativa que se encontram polinizadas por temas biotecnologicos, e cujos enredos representam a tensâo entre uma vertente narrativa "apocalíptica" e outra "integrada", busquei situar e valorizar a representaçâo da cena humana em cada uma delas, apontando situaçöes em que os personagens lutam (reiteradamente sem sucesso) ora contra danos ecologicos, ora contra a alienaçâo reificante a que sâo submetidos pelo biopoder e pela biopolítica. Cabe observar que as obras em que predomina a vertente (pos) apocalíptica - marcadamente, he Parable of the Sower, de Octavia Butler, e Oryx and Crake, de Margaret Atwood - adequam-se a categoria de distopia crítica, associada ao trabalho de Raffaella Baccolini e Tom Moylan (2003), que co-organizaram uma coletânea importante, intitulada Dark Horizons: Science Fiction and the Dystopian Imagination. Em Scraps of the Untainted Sky, Moylan (2000) escreveu que, apos a utopia engajada dos anos 1970 e a contrapelo do impulso para o desespero dos anos 1980, muitos autores de ficçâo científica voltaram-se para a distopia como forma de representar a realidade social de seu tempo. Ele remete-se a definiçâo de Baccolini de distopias críticas como obras que "mantem um ámago utópico", ajudando, ao mesmo tempo, a "desconstruir a tradiçâo e a reconstruir alternativas" (cf. MOYLAN, 2000, p. 188). Em he Parable of the Sower, o âmago utópico de que fala Baccolini tem cunho religioso: o projeto "Earthseed" sonhado/ inaugurado por Olamina, uma fé que preconiza "Deus é mudança". Ao final de uma longa jornada, Olamina e seus seguidores encontram uma comunidade utópica rural, ao norte da Califórnia, chamada Acorn.13 Já em Oryx and Crake, o âmago utópico é frágil e ambiguo, porque nao fica claro se os Filhos de Crake, por ora destituidos de linguagem, poderao um dia vir a ser considerados uma versao 1.1. do humano. Mas há que se considerar ainda a "hiperempatia" de Olamina e as pintas "empáticas" dos mutantes em Darwins Radio, de Greg Bear, como possiveis elementos utópicos. Existe uma preocupaçao crescente com o declinio da empatia no mundo atual - geralmente atribuido a falta de laços comunitários e de relaçöes face-a-face.14 Já existem, inclusive, programas dedicados a ativar e empatia, visando a evitar bullying nas escolas, violencia doméstica etc.15 Em ambas as obras, a evoluçao humana caminharia para uma espécie mais empática e, portanto, mais humanizada - embora, a de Bear, mais "integrada" (com um estado fortemente presente, como vimos), aponte para o genocidio e estancamento dessa evoluçao. Já he Rag Doll Plagues, de Alejandro Morales, se insere na prática cultural chicana de tornar visiveis, através de elementos de ficçâo científica empregados como metáforas, experiencias de marginalizaçao16, - lembrando o "Chicanafuturism" de Catherine Ramirez, que "questiona as promessas da ciencia, tecnologia e humanismo para chicanas, chicanos e outros sujeitos de cor" e "reflete histórias coloniais e pós-coloniais de indigenismo, mestizaje e sobrevivencia" nas Américas (RAMIREZ, 2008, p. 187).
Vemos, entao, que, apesar do cunho futurológico, essas obras nao ignoram ou descartam as forças sociais que assolam o mundo contemporâneo, como o mercado de capital global e decisöes/alianças politicas opacas. Abre-se, através da leitura das mesmas, uma boa ocasiao para explorar as fontes discursivas - ambientais, biológicas, politicas, literárias, culturais e sociológicas, entre outras - que contribuem para um novo elenco de desafios teóricos e disciplinares.
Embora o objetivo deste ensaio nao tenha sido o de fazer ecocritica estrito senso, as ficçöes especulativas discutidas aqui conduzem a reflexöes situadas dentro do debate ecocritico ou "critica climática"17: pela forma como alertam para o aquecimento global e para a iminencia da escassez de recursos naturais; mas, sobretudo, pela forma como salientam a dependencia ecológica da humanidade e nosso caráter transitório, e transformam a mudança evolucionária em um problema coletivo. Partindo do conceito de antropoceno como chave de leitura, busquei discutir como as antropo-cenas representadas nas ficçöes especulativas discutidas aqui esbarram em um amplo escopo de questöes, e em questöes de amplo escopo, como as que Latour delineia abaixo:
[h¡this new concept [Anthropocene] defines the human agency by drawing on a bewildering range of entities, some clearly related to the "natural" sciences - biochemistry, DNA, evolutionary trends, rock formation, ecosystem - while others clearly relate to what ethnographers have learned to register throughout their field work - patterns of land use, migrations of plants, animal and people, city life, trajectory of epidemics, demography, inequalities, classes and state policies. (LATOUR, 2014,139-AAA 3)
Dessa maneira, foi de relevância incontornável entremear essa reflexâo com a discussao dos conceitos de biopoder e biopolitica, visando a fortalecer o argumento de que tais conceitos sao inextricáveis, na "era dos humanos".
Recebido em: 01/11/2016
Aceito em: 10/02/2017
* Professora Titular aposentada do instituto de letras da UFF, atua no programa de Pös-graduaçâo em Estudos de Literatura. Pesquisa na área de literaturas de língua inglesa; literatura comparada; multidisciplinar com bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq. Seu e-mail é [email protected]
Notas
1. A época mais recente do periodo quaternário. Grosso modo, um todo/uma totalidade [holo] recente.
2. O termo foi cunhado pelo biólogo Eugene F. Stoermer, mas Crutzen o reinventou e popularizou. Segundo o próprio Stoermer, ele começou a empregar o termo "antropoceno" na década de 1980, mas nunca o havia formalizado até ser contatado por Paul Crutzen. (cf. STEFFEN et al, 2011, p. 843)
3. O inicio do Antropoceno ainda é alvo de contenda. Algumas datas sugeridas incluem a invençao da máquina a vapor, por James Watts, em 1784, a emissao de radiaçao provocada por testes nucleares, na década de 1950, e até mesmo o inicio das atividades agrícolas, há mais de dez mil anos.
4. A titulo de ilustraçao: o termo aparece em cerca de 200 artigos publicados em periódicos revisados por pares, é titulo de um periódico académico e é o foco de estudo do grupo do IUGS, e agora do WGA, citados acima.
5. Refiro-me, aqui, as narrativas envolvendo experiencias genéticas - ou mutaçöes genéticas resultantes de evoluçao, alteraçöes no meio-ambiente, contaminaçöes etc.
6. Na antropologia arqueológica, é comum fazer-se o mapeamento das mudanças nos atributos de artefatos, através de quadros de seriaçao. Alguns atributos mudam de um modelo para o outro, enquanto que outros permanecem iguais. Esta técnica serial revela padröes de inovaçao e replicaçao - como, por exemplo, no caso da mudança da lamparina para a lámpada, em que o pavio é substituido pelo filamento, mantendo a mesma funçao, qual seja, de iluminar. Hayles estrutura os capítulos de seu livro How We Became Posthuman como um serial chart, mapeando a história da cibernética desde a década de 1950.
7. Trad. livre de "...a tipping point at which this slow and apparently timeless backdrop for human actions transforms itself with a speed that can only spell disaster for human beings."
8. Trad. livre de "When apparent stability disintegrates [...] people tend to give in to fear and depression, to need and greed"
9. Trata-se de uma droga estimulante prescrevida para pessoas com desordens do sono, e que, supostamente, estimula as funçöes cognitivas. Remeto o leitor a matéria "Nootrópicos, as 'drogas inteligentes' que sao moda no Vale do Silicio", de Jaime González, publicada no jornal O Globo [online], seçao Ciencia e Saúde, 27 de jul. de 2015.
10. Uma vez infectadas, as mulheres abortam da primeira gravidez, passando a dar a luz (sem relaçöes sexuais) aos filhos do Herod's flu (como a gravidez viral passa a ser conhecida).
11. Um fenómeno semelhante pode ser constatada no Brasil, com o crescimento da "bancada evangélica" no congresso, nos últimos anos. A mistura de politica e religiao é a marca da atuaçao dos pastores deputados da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), encabeçada pelo deputado e pastor Joao Campos, autor do projeto de lei (PL 6.583/2013), que, entre outros itens, reconhece a familia apenas como uma entidade heteronormativa. Cf. a reportagem pública "Os pastores do congresso" Ver, tb., a tese de doutorado de Bruna Suruagy do Amaral Dantas "Religiao e politica: ideologia e açao da 'Bancada Evangélica' na Cámara Federal", em que ela entrevista parlamentares da bancada evangélica, de 2007 a 2011, assessores e jornalistas.
12. Ver o artigo "O Zica e o Risco da Pandemia do Preconceito", de Luis Nassif, no jornal GGN [online], onde o jornalista discute a "dupla violencia contra os direitos das mulheres e das pessoas com deficiencia".
13. Nos romances subsequentes de Butler, conhecidos como Earthseed novels, o projeto estende-se para a emigraçao para outros planetas, confirmando a filosofia do Earthseed de que é necessário estar sempre em mudança, movimento.
14. A empatia é geralmente considerada um construto cognitivo - i.e., que depende de uma relaçao especular com o outro, da observaçao de suas reaçöes corporais, expressöes faciais etc., mas a maioria dos especialistas concorda que tem um forte componente emocional e neural.
15. Cf. a organizaçao Roots of Empathy, no endereço http://rootsofempathy.org
16. Remeto o leitor a performance "Chicano Cyber Punk", do conhecido artista chicano Guillermo Gómez-Peña.
17. O livro de Adam Trexler Anthropocene Fictions: he novel in a time of climate change privilegia o genero "cli-fi" (climate fiction) e discute, entre outras, as obras Oryx and Crake e he Year of the Flood de Atwood.
Referencias
ATWOOD, Margaret. Oryx and Crake. Ediçao Kindle [Amazon] 1. ed. London: Bloomsbury, 2003.
BACCOLINI, Raffaella; MOYLAN, Tom, orgs. Dark Horizons: Sciencefiction and the dystopian imagination. London/New York: Routledge, 2003.
BADMINGTON, Neil. "heorizing Posthumanism". Cultural Critique, n. 53, Posthumanism, [Winter] 2003, p. 10-27.
BAIMA, Cesar. Cientistas acreditam que planeta está em nova era geológica: o Antropoceno. O Globo [online], 08 jan. 2016. Disp: <http://oglobo.globo. com/sociedade/ciencia/cientistas-acreditam-que-planeta-esta-em-nova-era-geologica-antropoceno-18431630#ixzz3zZmrbVe0>. Último acesso em 01.08.2016
BARBER, "Jihad vs. McWorld". The Atlantic, Mar. 1992. Disponivel: http://www.theatlantic.com/magazine/ archive/1992/03/jihad-vs-mcworld/3882/#. Último acesso em 12.03.2013.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rev. técnica Luís Carlos Fridman. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BEAR, Darwins Radio. Norwalk, CT: Easton Press, 1999.
BECK, Ulrich. World at PRisk. Risk Cambridge: Polity Press, 2007.
BLANCHOT, Maurice. he Writing of the Disaster. Trad. Ann Smock. U of Nebraska P, 1995. 1. ed. 1986. 1. ed. em frances Lécriture du désastre. Paris: Gallimard, 1980.
BOES, Tobias; MARSHALL, Kate. "Writing the Anthropocene. An Introduction". Minnesota Review, v. 83, p. 60-72, 2014.
BRAIDOTTI. Rosi. he Posthuman. Cambridge: Polity Press, 2013.
BUTLER, Octavia. Parable of the Sower. New York: Warner Books, 2000.
CARRINGTON, Damian. "he Anthropocene Epoch: Scientists Declare Dawn of Human-Influenced Age" he Guardian [online]. 29 ago. 2016, s/p.
CHAKRABARTY, Dipesh. he Climate of History: Four theses. Critical Inquiry, v. 35, p. 197-222, 2009.
DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Religiăo e política: ideologia e agăo da Bancada Evangélica na Cámara Federal. Tese de doutorado. PUC-SP, PPG em Psicología Social, 2011.
FERRANDO, Francesca. "he Party of the Anthropocene: Posthumanism, Environmentalism and the Postanthropocentric Paradigm Shift". Relations [online], v. 42, p. 159-173, nov. 2016. Disp. https://www.researchgate.net/ publication/310 581 120_The_Party_of_the_ Anthropocene_Post-humanism_Environmentalism_ and_the_Post-anthropocentric_Paradigm_ Shift. Acesso em 2 nov. 2016.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, v. 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Ediçöes Graal, 1988.
GEYER, Michael; BRIGHT, Charles. "World History in a Global Age", he American Historical Review, v. 100, n. 4, p. 1034-1060, 1995.
GÓMEZ-PEÑA, Guillermo. "Chicano Cyber Punk" [performance gravada ao vivo]. Disp. https://www. youtube.com/watch?v=QoH9sBRrVr4 Último acesso em 30.10.2016.
GONZÁLEZ, Jaime. Nootrópicos, as 'drogas inteligentes' que sao moda no Vale do Silicio. O Globo [online], seçao Ciencia e Saúde, 27 jul. 2015. Disp: <http://g1.globo. com/ ciencia-e-saude/noticia/2015/07/nootropicos-as-drogas-inteligentes-que-sao-moda-no-vale-do-silicio. html>. Último acesso em 14.06.2016.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multitude: War and Democracy in the age of empire. New York & London: Penguin, 2006.
HAYLES, Katherine N. How We Became Posthuman: Virtual bodies in cybernetics, literature and informatics. Chicago: Chicago UP, 1999.
JAMES, Edward; MENDLESOHN, Farah, eds. he Cambridge Companion to Science Fiction, Cambridge: Cambridge UP, 2003.
JAMESON, Fredric. "he Experiments of Time: Providence and Realism". In: MORETTI, Franco, org. he Novel, v. 2. Princeton: Princeton UP, 2006, p. 95-127.
LATOUR, Bruno. Anthropology at the Time of the Anthropocene - a personal view of what is to be studied. American Association of Anthropologists, Washington, Dec. 2014 (draft for comments). Disp: <www.bruno-latour.fr/sites/default/files/139-AAA-Washington>. PDF baixado do site em 22.05.2016.
LE GUIN, Ursula. "his sophisticated novel addresses who we are" - review of Embassytown by China Miéville. he Guardian, Sat. 7 May, 2011. Disp: <http://www. guardian. co. uk/books/2011/may/08/embassytown-china-mieville-review> Último acesso em 24.10.2016
LOCKHURST, Roger. "Catastrophism, American style: the fiction of Greg Bear". Yearbook of English Studies, v.37, n.2, p. 215- 233, 2007.
MORALES, Alejandro. he Rag Doll Plagues. Houston: Arte Público Press, 1991.
MOYLAN, Tom. Scraps of the Untainted Sky: Science fiction, utopia, dystopia. Boulder: Westview Press, 2000.
NASSIF, Luís. O Zica e o Risco da Pandemia do Preconceito. GGN - o jornal de todos os Brasis, 03/02/2016. Disp. <http://jornalggn.com.br/noticia/o-zica-e-o-risco-da-pandemia-do-preconceito>. Último acesso em 28.10.2016.
PUBLICA; agencia de reportagem e jornalismo investigativo. Os pastores do congresso. Disp: <http:// apublica.org/2015/10/os-pastores-do-congresso/> Último acesso em 24.10.2016
RABINOW, Paul; ROSE, Nikolas. O conceito de biopoder hoje. Trad. Aécio Amaral Jr. Política & Trabalho: revista de ciencias sociais, n. 24, p. 27-57, 2006.
RAMÍREZ, Catherine. "Afrofuturism/Chicanafuturism: Fictive Kin." Aztlán: A Journal of Chicano Studies, v. 30, n. 1, p. 185-194, 2008.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalizagăo: do pensamento único a consciencia universal. Rio de Janeiro: Record, 2011.
STEFFEN, Will et al. he Anthropocene: conceptual and historical perspectives. Philosophical Transactions of the Royal Society A, n. 369, p. 842-867, 2011. doi:10.1098/rsta.2010.0327. Disp: <http://rsta. royalsocietypublishing.org> PDF baixado do site da Royal Society em 29.03.2016.
TREXLER, Adam. Anthropocene Fictions: he novel in a time of climate change. Charlottesville\London: U of Virginia P, 2015.
ZALASIEWICZ, Jan et al. Are We Now Living in the Anthropocene? GSA Today, v. 18, n. 2, p. 4-8, Fev. 2008. doi: 10.1130/GSAT01802A.1
You have requested "on-the-fly" machine translation of selected content from our databases. This functionality is provided solely for your convenience and is in no way intended to replace human translation. Show full disclaimer
Neither ProQuest nor its licensors make any representations or warranties with respect to the translations. The translations are automatically generated "AS IS" and "AS AVAILABLE" and are not retained in our systems. PROQUEST AND ITS LICENSORS SPECIFICALLY DISCLAIM ANY AND ALL EXPRESS OR IMPLIED WARRANTIES, INCLUDING WITHOUT LIMITATION, ANY WARRANTIES FOR AVAILABILITY, ACCURACY, TIMELINESS, COMPLETENESS, NON-INFRINGMENT, MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR A PARTICULAR PURPOSE. Your use of the translations is subject to all use restrictions contained in your Electronic Products License Agreement and by using the translation functionality you agree to forgo any and all claims against ProQuest or its licensors for your use of the translation functionality and any output derived there from. Hide full disclaimer
© 2017. This work is published under https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ (the “License”). Notwithstanding the ProQuest Terms and Conditions, you may use this content in accordance with the terms of the License.
Abstract
For the names of the preceding three geologic epochs - the Pliocene, Pleistocene, and Holocene - translate respectively as "newer time," "newest time," and "entirely new time" and thus give these seemingly neutral period designators an inexorable orientation toward the present. "Com a desintegraçao da estabilidade aparente", escreve Olamina em seu diário, "... as pessoas cedem ao medo e a depressao, a carencia e ganância"8 - When no influence is strong enough to unite people they divide, they struggle, one against one, group against group, for survival, position, power. hey remember old hates and generate new ones, they create chaos and nurture it. hey kill and kill and kill.. . Bear elaborates a complex social portrait of species change. his story is overdetermined by weaving together government security agencies, Senate hearings, journalistic scoops, scientific conferences, anthropologists in difficult disputes over artefacts in Native American territories, private drug companies competing for patents, disease control agencies, and the pressure of the evangelical Christian right. Partindo do conceito de antropoceno como chave de leitura, busquei discutir como as antropo-cenas representadas nas ficçöes especulativas discutidas aqui esbarram em um amplo escopo de questöes, e em questöes de amplo escopo, como as que Latour delineia abaixo: [h¡this new concept [Anthropocene] defines the human agency by drawing on a bewildering range of entities, some clearly related to the "natural" sciences - biochemistry, DNA, evolutionary trends, rock formation, ecosystem - while others clearly relate to what ethnographers have learned to register throughout their field work - patterns of land use, migrations of plants, animal and people, city life, trajectory of epidemics, demography, inequalities, classes and state policies.
You have requested "on-the-fly" machine translation of selected content from our databases. This functionality is provided solely for your convenience and is in no way intended to replace human translation. Show full disclaimer
Neither ProQuest nor its licensors make any representations or warranties with respect to the translations. The translations are automatically generated "AS IS" and "AS AVAILABLE" and are not retained in our systems. PROQUEST AND ITS LICENSORS SPECIFICALLY DISCLAIM ANY AND ALL EXPRESS OR IMPLIED WARRANTIES, INCLUDING WITHOUT LIMITATION, ANY WARRANTIES FOR AVAILABILITY, ACCURACY, TIMELINESS, COMPLETENESS, NON-INFRINGMENT, MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR A PARTICULAR PURPOSE. Your use of the translations is subject to all use restrictions contained in your Electronic Products License Agreement and by using the translation functionality you agree to forgo any and all claims against ProQuest or its licensors for your use of the translation functionality and any output derived there from. Hide full disclaimer
Details
1 Universidade Federal Fluminense/CNPq Rio de Janeiro, BR