JONAS, Hans. O conceito de Deus após Auschwitz: uma voz judia. Trad.: Lilian Simone Godoy Fonseca. Sao Paulo: Paulus, 2016. ISBN: 978-85-3494-300-0.
A obra de Hans Jonas (1903-1993) está ganhando espaço na academia brasileira a partir de sua traduçao e publicaçao em portugués e de alguns estudos em forma de artigos, livros ou comunicaçoes em eventos científicos. O pensamento de Hans Jonas desperta o interesse de diferentes áreas académicas por ser elaborado de maneira plural. Pode-se encontrar nele um debate ricamente filosófico, em constante articulaçao com a preocupaçao ética, epistemológica, religiosa. Fato: a obra de Jonas permite diálogo e conduz à primordial tarefa do pensamento.
O conceito de Deus após Auschwitz, tornada pública em portugués em 2016, refere-se a uma conferéncia ministrada por Jonas em Tübingen em 1984 por ocasiao do recebimento do prémio Leopold Lucas. O texto já havia sido publicado em 1968 e se configurava, na verdade, como uma retomada de parte de uma palestra ministrada pelo próprio Jonas em 1961 - Immortality and the Modern Temper. A ediçao brasileira traz a conferéncia de 1984 e é precedida de um texto assinado por Eric Pommier: A improvidência divina.
A intençao de Pommier em seu texto é clara: elaborar uma introduçao. Esta, por sua vez, exerce uma dupla tarefa, sendo capaz de apresentar o texto, bem como conduzir o leitor até ele. A primeira delas antecipa ao leitor alguns pontos fundamentais que serao depois abordados pelo próprio Jonas ao longo da conferencia. A segunda realiza uma introspecçao textual, ou seja, o leitor é convidado a se introduzir no texto, vendo-se impelido a ir adiante para procurar - e talvez encontrar - respostas para as provocadoras perguntas feitas pelo próprio Pommier ao final desse texto introdutório. Por isso, essa "introduçao" marca um caminho, no qual se destacam a seguir quatro pontos.
O primeiro ponto alerta o leitor para a possível compreensao do lócus dessa conferencia no pensamento de Jonas, podendo esta ser vista sob duas perspectivas: ou como marginal a seu pensamento, ou como fonte de todo o desenvolvimento de suas obras. A indicaçao de Pommier, no entanto, pretende restituir o caráter essencial ao texto, mostrando que ele se insere no próprio desenvolvimento histórico-intelectual de Hans Jonas.
O segundo ponto a ser destacado: a importância de Martin Heidegger e Rudolf Bultmann no pensamento de Jonas. Se por um lado a figura de Heidegger é importante para a formaçao filosófica de Jonas, por outro é preciso relativizar o "valor explicativo dos conceitos ontológicos" para, entao, ser capaz de adentrar na esfera imaginativa - tao priorizada por Jonas na conferencia. A importância de Bultmann está, sobretudo, na apropriaçao da noçao de demitologizaçao: Jonas irá se apoiar nessa concepçao teológica para desenvolver sua resposta àquilo que se pretende pensar e nao propriamente conhecer. Pode-se perceber a seguinte intençao nessa indicaçao de Pommier: alertar para a presença intrínseca desses pensadores ao longo da conferencia, uma vez que eles nao sao explicitamente citados por Jonas.
Outro ponto merecedor de atençao: a fenomenologia da vida desenvolvida por Jonas, na qual a biologia tem um papel fundamental, também está presente na conferencia, mas nas entrelinhas do texto. Soma-se a isso o uso da imaginaçao metafísica nesse desenvolvimento fenomenológico, fazendo com que a existência humana seja também justificada e significada a partir de um transcendente.
O último destaque a ser dado ao texto de Pommier: ele antecipa e responde uma questao fundamental feita pelo próprio Jonas ao longo da conferencia - "que credibilidade pode conservar um Deus que permitiu que tal mal fosse cometido?"-, permitindo, com isso, que o próprio leitor elabore questoes prévias, com as quais pode adentrar à leitura da conferência. De fato, Pommier instiga a ler a conferência O conceito de Deus após Auschwitz: uma voz judia.
A conferência em si inicia por alertar o leitor: "o que eu tenho a oferecer é um fragmento de teologia francamente especulativa" (p. 17). De fato, há teologia, mas há também, nao se pode negar, uma preocupaçao existencial e filosófica, mostrando o caráter plural dessa obra. Segue-se a isso um apontamento fundamental: a viabilidade de discutir o conceito de Deus enquanto tarefa do pensamento e nao como conhecimento. Essas duas indicaçoes funcionam como preámbulo, incidindo, obviamente, na continuidade da própria conferência que, à sequência, destaca porque Auschwitz é classificada como um episódio singular para o povo judeu, colocando-a, por exemplo, ao lado da pergunta feita no Livro de Jó: por que o homem sofre?
A intençao de Jonas nao se limita à comparaçao bíblica, indo além e mostrando que o episódio de Auschwitz nao se tratou de doaçao por amor à própria fé, nem de morte por causa da fé, conforme aponta o Livro de Macabeus. Auschwitz mostra como "a desumanizaçao pela absoluta degradaçao e privaçao precedeu suas mortes [dos judeus], nenhum vislumbre de humanidade foi deixado àqueles destinados à soluçao final, difícilmente um traço de dignidade foi encontrado nos espectros esqueléticos sobreviventes dos campos libertados" (p.20). Tendo como referencia a própria fé judaica - para a qual Deus é o Senhor da História - Jonas permite vislumbrar a seguinte questao nas entrelinhas do texto: por que Auschwitz aconteceu? E mais: como nao colocar a tradicional ideia de Deus em questao depois do ocorrido?
De fato, essas indagaçoes conduzem uma procura por respostas e, para tanto, Jonas utiliza um mito. Aqui se percebe a influência da noçao de demitologizaçao de Bultmann na conferência, pois o mito narrado por Jonas nao diz respeito a figuras heroicas, lendárias ou fictícias; trata-se, antes, de elaborar um mito demitologizado, capaz de recorrer ao nivel da compreensao lógica para ser entendido, mas sem esgotar a própria dimensao compreensiva em termos racionais. A apresentaçao do mito tem a seguinte finalidade: fazer perceber alguns aspectos de Deus, sua relaçao com o mundo, bem como a própria divina recusa de sua onipotência. Após a apresentaçao da narrativa, Jonas ocupa-se até ao final da conferencia com a explicaçao dos elementos presentes no mito, destacando, a principio, o tópico que diz respeito aos atributos divinos. De acordo com a compreensao do próprio Jonas, Deus se caracteriza por ser um Deus que sofre, que é devir, que cuida e que está em perigo.
O primeiro a ser tratado: o Deus que sofre. Esse sofrimento se dá desde a criaçao e aqui o autor alerta para o fato de nao confundir essa ideia de sofrimento com a noçao crista de sofrimento, significada a partir da encarnaçao e crucificaçao. Esse sofrimento é mútuo, isto é, por parte da deidade e da criatura. O sofrimento da criatura, conforme indica Jonas, sempre foi reconhecido pela teologia, ao passo que o sofrimento de Deus é causado pelo menosprezo da criatura. Dai a citaçao: "nao o encontramos lamentando ter criado o homem e sofrendo a decepçao que experimenta com ele?" (p. 26).
Disso decorre a segunda caracteristica: um Deus em devir, isto é, em constante movimento. Isso faz com que se afirme o seguinte: esse Deus nao é transtemporal, ou seja, nao está além de toda temporalidade e nem é imutável. Isso indica para o fato, afirmado por Jonas, de que Deus se modifica de acordo com o que acontece no mundo. A segunda caracteristica aponta, entao, para a emergência de Deus no tempo, nao permanecendo idêntico a si mesmo por toda a eternidade.
A terceira característica decorre necessariamente das outras duas: um Deus que sofre e que se movimenta é um Deus envolvido com seu povo. É um Deus que cuida. Esse Deus cuidadoso, porém, nao é solucionador de problemas. Conforme indica Jonas, em conformidade com a crença judaica: "ele deixou algo para outros agentes fazerem e assim fez o seu cuidado dependente deles" (p. 28). Esse é, entao, um Deus em perigo. Essa quarta característica mostra a imperfeiçao do mundo, pois caso contrário o próprio Deus interferiría e criaria um ambiente perfeito. Isso aponta para a principal conclusao da conferencia: esse nao é um Deus onipotente.
Acerca dessa afirmaçao: Jonas tem consciência de que a noçao de Deus todo-poderoso está consolidada no tempo, mas acusa-a de cometer um equívoco. O primeiro apontamento a esse respeito diz o seguinte: todo poder é relacional; a existência de um poder absoluto faz com que seja extinguida qualquer outra figura; nao havendo relaçao, nao há poder. Dessa forma, o próprio poder de Deus é limitado pelo poder do homem, por mais que o poder deste seja concedido por aquele, de acordo com a afirmaçao judaica. A essa noçao de poder absoluto de Deus se somam outras duas: a da bondade suprema e a inteligibilidade. Jonas segue sua argumentaçao a respeito da nao onipotência de Deus afirmando que os três termos - poder absoluto, bondade suprema e inteligibilidade - nao podem ser afirmados ao mesmo tempo. A afirmaçao de dois deles já exclui, necessariamente, o terceiro.
Aqui entra um ponto determinante para a argumentaçao de Jonas: a fé judaica. A tradiçao judaica - e o autor a assume desde o início da conferência - mostra que Deus pode ser compreendido, ou seja, é inteligível a partir de suas obras, a partir da criaçao. Deus se revela. O episódio de Auschwitz traz um ponto muito interessante: se Deus pode ser compreendido e houve Auschwitz, entao, ou ele nao é bom ou nao é todo-poderoso. Sustentando a ideia de que há bondade em Deus, ele nao pode ser todo-poderoso, justificando, assim, o mal que há no mundo. Essa nao onipotência fez com que Deus estivesse calado durante Auschwitz, afirma Jonas.
O mal, por sua vez, nao tem outra origem senao no coraçao do próprio homem, fortalecendo-se no mundo. De acordo com Jonas, "a eliminaçao da onipotência divina deixa a escolha teórica entre as alternativas ou de algum preexistente dualismo ou da autolimitagäo de Deus através da criaçao a partir do nada" (p. 33). A voz judia aludida na conferencia faz pesar a segunda opçao: a autolimitaçâo de Deus faz com que se compreenda a imperfeiçâo. Com isso, rechaça-se uma possível compreensäo maniqueísta sobre a origem do mal. A atençâo volta-se, entäo, mais uma vez para Auschwitz: ele näo é uma imperfeiçâo, mas uma escolha deliberada. Auschwitz é deliberaçâo do próprio homem e, por isso, a teologia judaica deve se confrontar com esse episódio.
Será ainda possível uma relaçâo com Deus depois desse ocorrido? Jonas, de fato, alude a esta pergunta, respondendo-a de maneira afirmativa. Essa afirmaçâo, no entanto, aponta para o fato de que agora näo é mais Deus quem dá alguma coisa ao homem, mas o homem que dá algo para Deus. Vale destacar, nesse sentido, a mençâo feita pelo próprio Jonas em nota de rodapé acerca da obra Uma vida interrompida: os diários de Etty Hillesum, 1941-1943 (1984), na qual se encontram escritos de uma vítima de Auschwitz. Nesta nota lê-se o seguinte: "eu devo ajudá-lo, Deus, a impedir que minhas forças se esvaiam, embora näo possa garantir com antecedência. Mas uma coisa está se tornando cada vez mais clara para mim: que você näo pode nos ajudar, que devemos ajudá-lo a nos ajudar a nós mesmos..." (p. 36).
Ao final, Jonas mostra que a resposta àquela pergunta também presente no livro de Jó - por que, afinal, o homem sofre? - é respondida por ele de maneira diferente da do livro sagrado: lá se aponta para a onipotência de Deus, aqui na conferência para a escolha divina de renunciar ao poder absoluto.
Recomenda-se, por fim, a aprec^äo dessa obra e se destaca sua formaçäo plural, possibilitando, assim, o diálogo acadêmico. Além disso, mesmo tendo como ponto de partida a própria fé judaica, Jonas é capaz de assegurar um rigor objetivo a seu texto, permitindo sua compreensäo de maneira ampla, isto é, näo somente por aqueles que aderem à fé judaica. Isso também é um ensinamento a ser percebido ao longo da conferência.
Luís Gabriel Provinciatto *
Resenha recebida em 31 de outubro de 2016 e aprovada em 08 de março de 2017.
* Mestre em Ciências da Religiao pela PUC-Campinas (2016). País de Origem: Brasil. E-mail: [email protected]
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