Resumo: O texto apresenta argumentos, indicando que o "novo" Ensino Médio no Brasil e a reorganização curricular via Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tem suas vertentes na pedagogia das competências, já utilizadas no final da década de 1990. Para além disso, expõe o viés utilitarista da formação imposta aos anos finais da educação básica, priorizando as demandas do mercado produtivo e a centralidade da avaliação. Logo, o texto foi estruturado em dois momentos. No primeiro momento, explicita as principais políticas dos anos de 1990 para o Ensino Médio e a semelhança com a reforma que está em fase de implantação a partir da Lei n 13.415 (BRASIL, 2018), endossando a premissa de um currículo utilitarista com a centralidade da avaliação. No segundo, apresenta as análises do Banco Mundial sobre a necessidade de mudanças imperativas nas políticas educacionais com o objetivo de melhorar os resultados dos estudantes do país, considerados muito fracos em relação aos de países equivalentes. Por fim, em forma de conclusão do artigo, mas como luta permanente, expõe-se a contrariedade com a reforma do Ensino Médio e a formação esvaziada via BNCC, como reivindicação da Pedagogia Histórico-Crítica, enquanto prática revolucionária que prioriza a apropriação dos conhecimentos científicos e a superação da sociedade capitalista.
Palavras-chave: BNCC; currículo; ensino médio; pedagogia das competências; pedagogia histórico-crítica.
Abstract: The paper presents arguments, indicating that the "new" secondary education in Brazil and the curricular reorganization via BNCC has its aspects in the theory of competences used in the late 1990s. In addition, it exposes its utilitarian side, prioritizing the demands of the market productive, and the centrality of the evaluation. Therefore, the paper was structured in two moments. At first, the text explains the main policies of the 1990s for secondary education and the similarity with the reform that is being implemented from Law n. 13.415 (BRASIL, 2018). In the second moment, the paper explains the World Bank's analyzes on the need for imperative changes in educational policies with the objective of improving the results of the country's students, considered very weak, leading to a whole apparatus of actions to prioritize large-scale evaluations, reorganizing curriculum and teacher work. Finally, by way of conclusion, the opposition to the reform of Secondary school and the BNCC is exposed as a joint struggle with Historical-Critical Pedagogy for the appropriation of scientific knowledge and the overcoming of capitalist society.
Keywords: BNCC; curriculum; new secondary school; theory of competences; historical-critical pedagogy.
Resumen: El texto presenta argumentos que indican que la "nueva" Escuela Secundaria en Brasil y la reorganización curricular a través de la Base Curricular Común Nacional (BNCC) tiene sus aspectos en la pedagogía de competencias ya utilizada a fines de la década de 1990. Además, expone el lado utilitario de la formación impuesta en los últimos años de la educación básica, priorizando las exigencias del mercado productivo y la centralidad de la evaluación. Por lo tanto, el texto se estructuró en dos momentos. En un primer momento, explica las principales políticas de la década de 1990 para la Enseñanza Media y la similitud con la reforma que se está implementando a partir de la Ley n. 13.415 (BRASIL, 2018). En el segundo momento, presenta los análisis del Banco Mundial sobre la necesidad de cambios imperativos en las políticas educativas con el objetivo de mejorar los resultados de los estudiantes del país, considerados muy débiles en relación a países equivalentes. Finalmente, como conclusión del artículo, pero como lucha permanente, se expone la oposición a la reforma de la Enseñanza Media y la formación vaciada vía BNCC, como reivindicación de la Pedagogía Histórico-Crítica como práctica revolucionaria que prioriza la apropiación de los conocimientos científicos, y la superación de la sociedad capitalista.
Palabras clave: BNCC; Currículo; escuela secundaria; pedagogía de las competencias; pedagogía histórico-crítica.
Da decada de 1990 ao "novo" Ensino Medio: velhos problemas, velhos discursos
Para entender as reformas educacionais realizadas na década de 1990 se faz necessário visitar as suas raízes, implícitas na "Declaraçâo Mundial sobre Educaçâo para Todos", que foi proclamada na reuni&acaron;o realizada de 5 a 9 de março de 1990 em Jomtien, na Tailandia e serviu de base para a elaboraçâo dos Planos Decenais para Educaçâo no Brasil.
Segundo Silva (2003, p. 165),
Essa Conferencia, convocada pela Organizaçâo das Naçöes Unidas para a Educaçâo, a Ciencia e a Cultura (UNESCO), pelo Fundo das Naçöes Unidas para a Infancia (UNICEF), pelo Programa das Naçöes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pelo Banco Mundial, contou com a presença de 155 países e traçou os rumos que deveria tomar a educaçâo nos países classificados como E-9 - os nove países com os piores indicadores educacionais do mundo, dentre os quais, ao lado do Brasil, figuravam Bangladesh, China, Egito, Índia, Indonésia, México, Nigéria e Paquistâo.
Naquele momento, o Brasil tinha como presidente Itamar Franco que, em atendimento a Conferencia de Jomtien, criou o Plano Decenal de Educaçâo para Todos, com o objetivo de promover "... as competencias fundamentais requeridas para plena participaçâo na vida económica, social, política e cultural do País, especialmente as necessidades do mundo do trabalho". (BRASIL, Plano Decenal, 1993).
Desse modo, a Lei de Diretrizes e Bases- LDB n.° 9.694/1996 (BRASIL, 1996) ratificou o texto constitucional existente, integrando o Ensino Médio a educaçâo básica, estabelecendo no inciso II do Art. 208, a garantía e dever do Estado com "...a progressiva extensâo da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio" (BRASIL, 1996, s/p). Este foi um marco importante para a educaçâo dos jovens no país, considerando que de 3.500.000 matrículas, em 1991, houve um aumento para 9 milhöes de pessoas em 2004 (SILVA, 2018, p. 7).
Logo, em 1998, foram publicadas as "Diretrizes Curriculares Nacionais (Parecer CNE/CEB n.° 15, de 1998, e Resoluçâo CNE/CEB n.° 03, de 1998) trazendo como proposta de organizaçâo o curriculo centrado na formaçâo de competencias e habilidades" (SILVA, 2015, p. 372), antecedendo, portanto, a elaboraçâo dos Parámetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM, 1999). Dentre as principais justificativas, em ambos os documentos, estava a necessidade de adequar a formaçâo dos indivíduos as mudanças ocorridas no mundo do trabalho, dadas especialmente pelas transformaçöes tecnológicas, bem como "... superar o quadro de extrema desvantagem em relaçâo aos índices de escolarizaçâo e de nível de conhecimento que apresentam os países desenvolvidos" (PCNEM, 1999). Nesse sentido, buscou-se regular os conteúdos e os niveis de ensino, com o que seria o inicio do trabalho com as atividades de avaliaçâo em larga escala, colocadas como reguladoras de todo o processo educativo.
No entanto, apesar do tensionamento para melhoria dos índices, os PCNEM (BRASIL, 1999) apresentavam um discurso contraditório de formaçâo universal, que deveria oportunizar aos jovens as práticas educativas alinhadas as suas necessidades sociais, políticas e económicas, de forma conivente com os seus interesses individuais de aprendizagem, garantindo "... a construçâo de competencias básicas, que situem o educando como sujeito produtor de conhecimento e participante do mundo do trabalho, e com o desenvolvimento da pessoa, como "sujeito em situaçâo" - cidad&acaron;o" (BRASIL, 1999, p. 10).
Contudo, o principal objetivo era atender a demanda político-económica que necessitava de um novo perfil de trabalhador. E n&acaron;o estamos falando, aqui, de um sujeito com qualificaçâo integral, mas de pessoas que tivessem facilidade em se adaptarem as mais diversas condiçöes de trabalho. A organizaçâo por competencias tem um valor "... relacionado a empregabilidade dos trabalhadores pelo fato de referirem a competencia de base ampla, normatizadas em sistemas que facilitem sua transferibilidade entre diferentes contextos educacionais" (RAMOS, 2006, p. 87).
Observamos que essa organizaçâo curricular estava longe de pensar a formaçâo humana na sua integralidade. Temos, portanto, um nebuloso discurso da formaçâo da autonomia e das capacidades humanas, que escondem a sua verdadeira essencia: a hegemonia e ampliaçâo do capital. As "... finalidades do ensino médio sâo vinculadas a adequaçâo (e subordinaçâo) da escola as mudanças nas formas de organizaçâo do trabalho produtivo e justificadas com base na "globalizaçâo económica e na revoluçâo tecnológica" (SILVA, 2015, p. 372), sendo contrários, portanto, as categorias do trabalho como principio educativo enquanto formaçâo omnilateral do homem. (ZANK, 2020, p. 78).
Na tentativa de nâo apresentar cortes na história, no entanto, sem alongar o debate, destacamos que a educaçâo passou por mudanças expressivas conjuntas as alteraçöes no cenário político nacional, a partir do ano de 2003, com o inicio do governo do Partido dos Trabalhadores (PT), que permaneceu até meados de 2016. As apostas, já no inicio do primeiro mandado, "... eram de mudanças substantivas nos rumos do país com a perspectiva de um governo democrático e popular" (FRIGOTTO, 2012, p. 22). Nesse contexto, os interesses progressistas começaram a ser levantados no Decreto n.° 5.154/2004, que trata da retomada da educaçâo profesionalizante, e a implementaçâo das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, em 2012. Os dois documentos apresentaram como prioridade o Ensino Médio Integrado, direcionando o curriculo baseado nos principios do trabalho, da ciencia, da cultura e da tecnologia.
Ramos (2008, p. 15) considerou o Decreto n.° 5.154/2004, que reestabeleceu a Educaçâo Profissional vinculada ao Ensino Médio, como um marco na história da educaçâo do país, considerando "... um horizonte do ensino médio seja na consolidaçâo da formaçâo básica unitária e politécnica, centrada no trabalho, na ciencia e na cultura", se fundamentando numa relaçâo mediata com a formaçâo profissional e os principios de uma educaçâo integral. Segundo a autora, este foi o primeiro grande passo enquanto política contra-hegemônica para a educaçâo.
No entanto, a educaçâo com a base na transformaçâo social só pode estar alicerçada no trabalho como principio educativo e isso nâo pode ocorrer apenas na letra da lei; precisa estar em conjunto com a expressâo da prática social, ou seja, por si só nâo bastariam mudanças na educaçâo sem as mudanças estruturais que seriam base para pensar em mudanças realmente efetivas para uma educaçâo transformadora, com o objetivo da superaçâo do capitalismo (FRIGOTTO, 2012).
Assim, a história vai ganhando curso e outro documento importante para a organizaçâo do "novo" Ensino Médio tem bastante destaque: o Plano Nacional de Educaçâo (BRASIL, 2014), que deveria entrar em vigor no ano de 2011, substituindo o entâo vigente até 2010. Considerando o atraso para sua aprovaçâo, que demorou mais de tres anos, sendo promulgado sob a Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014, este documento estabeleceu vinte metas para a educaçâo, a serem cumpridas durante o periodo entre 2014-2024. Dentre as justificativas pelo atraso estava o fracasso do plano anterior, pois nâo conseguira resolver os problemas educacionais aos quais se propôs, o que resultou na repetiçâo de várias metas, além das dificuldades em relaçâo aos valores e destinaçâo do financiamento para a educaçâo (VALENTE, 2012, p. 9).
Em relaçâo ao Ensino Médio, especificamente, a meta tres, que dispöe sobre a universalizaçâo; e a meta onze, que se refere a formaçâo profissional, conforme o Caderno "Planejando a próxima década - Conhecendo as vinte metas do Plano Nacional de Educaçâo", publicado pelo MEC em 2014:
Meta tres: universalizar, até 2016, o atendimento para toda a populaçâo de 15 (quinze) a 17 (dezessete) anos e elevar, até o final do período de vigencia deste PNE, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85% (oitenta e cinco por cento). (MEC, 2014, p. 24).
Meta onze: triplicar as matrículas da educaçâo profissional técnica (EPT) de nível médio, assegurando a qualidade da oferta e pelo menos 50% da expansäo no segmento público. (MEC, 2014, p. 39).
Entendemos assim que, apesar de a LDB ter estabelecido o Ensino Médio como parte da educaçao básica, obrigatória para todos os estudantes, nao conseguiu a universalizaçao da escola para essa faixa etária, justificando, portanto, a meta tres. Segundo pesquisa do IBGE, em 2013, aproximadamente 80% (oitenta por cento) dos jovens com idade entre quinze e dezessete anos efetivaram matrículas em instituiçöes escolares, sendo que apenas 55% (cinquenta e cinco por cento) dos jovens que frequentavam o Ensino Médio tinham idade entre quinze e dezessete anos, ou seja, muitos ainda estavam frequentando o Ensino Fundamental. A meta onze, por sua vez, está em consonancia ao disposto na LDB (Lei n.° 9.394/1996, favorável as diferentes formas de educaçâo profissional, reiterando o "... objetivo do PNE de colocar em curso políticas e açöes que ampliem nao só a escolaridade, mas também a formaçao profissional dos estudantes brasileiros" (BRASIL, 2014, p. 187).
O golpe parlamentar sofrido pela presidenta Dilma Roussef (PT) e a entrada de Michel Temer (PMDB) na Presidencia da República, no ano de 2016, deu inicio a uma espécie de frenesí de reformas e decretos em curto espaço de tempo, dos quais a "... educaçao e a escola pública foram submetidas a um conjunto de ataques e mudanças que as atingiram de maneira direta e indireta, comprometendo decisivamente o ensino, a pesquisa e a socializaçao dos conhecimentos". (ORSO, 2020, p. 25). Assim, fora publicada a Medida Provisória n.° 746 (BRASIL, 2016) sobre a reforma do Ensino Médio. A urgencia desse documento foi muito questionada pela comunidade escolar (professores, estudantes). No entanto, passou a vigorar na forma da Lei n° 13.415 (BRASIL, 2017), no ano seguinte, apresentando como justificativa diminuir o número excessivo de disciplinas, adequar a formaçao necessária ao mundo de trabalho emergente e a dispor de opçöes formativas em áreas do conhecimento ou formaçao profissional. Havia, inclusive, o indicativo em articular os quatro pilares da educaçao desenhados por Jacques Delors: aprender a conhecer, aprender a ser, aprender a conviver e aprender a fazer.
Silva (2018, p. 2) expöe que o discurso utilizado para a reformulação do Ensino Médio nada mais é do que a retomada das políticas educacionais da década de 1990 e das "... normativas curriculares daquele período", ou seja, responde as características de velhos discursos e propósitos formativos. Uma prova disso está na própria BNCC, terceira versao aprovada em 2018, na qual "... encontramos o vocabulário relacionado as competencias completamente assumido. Sao definidas dez competencias globais (...) a partir das quais sao elaboradas as competencias específicas de cada área" (BITTENCOURT, 2018, p. 565).
Nossa maior preocupaçâo, para além da padronizaçâo, especialmente pela centralıdade do curriculo nas avaliaçöes externas, está na fragilizaçâo do direito a educaçâo básica e compöem o cenário de retrocessos a que estamos assistindo no país" (SILVA, 2017, p. 45).
Para enuviar o verdadeiro objetivo de uma formaçâo pragmática e utilitarista, faz-se criticas ao atual modelo de ensino médio referentes a ter uma única trajetória formativa e a sobrecarga de treze disciplinas. No entanto, observa-se que essas criticas estáo alicerçadas no esvaziamento das disciplinas e no curriculo justificado pelo desinteresse do aluno e no discurso da escola como ultrapassada. Segundo Frigotto (2016), a verdade que está sendo escondida tem relaçâo com os problemas que a escola pública vem enfrentando ao longo dos anos: o sucateamento das escolas e o desmonte do funcionalismo público. Ora, parece ser mais fácil implementar mudanças nos ámbitos do curriculo, construindo sujeitos com prioridades nas necessidades do mercado e com o discurso de responsabilizaçâo dos individuos singulares dos problemas ao invés de analisar os entraves relacionados a formaçâo institucional. Dentre eles, podem-se citar a precariedade dos materiais didáticos, a degradaçâo dos espaços escolares, a falta de valorizaçâo do trabalho educativo e do professor, a ausencia de segurança social, a formaçâo continuada utilitarista etc.. Para além disso, as condiçöes materiais de vida dos jovens em uma sociedade classista nâo permite igualdade de direitos de acesso ou permanencia na escola de forma universal, considerando a diversidade de situaçöes por quais passam os estudantes, especialmente os que frequentam a escola pública, variando desde a necessidade do emprego para auxiliar no sustento da familia, gravidez na adolescencia, problemas com a logistica, doenças etc.
A própria argumentaçâo contida no Guia de Implementaçâo do Ensino Médio diz que a juventude precisa ser dona do seu futuro e de suas escolhas, ofertando oportunidade de optar pela sua formaçâo, observando sua área de interesse, resultando, assim, no seu "... desenvolvimento integral, por meio do incentivo ao protagonismo, a autonomia e a responsabilidade do estudante por suas escolhas no futuro". (BRASIL, 2018, p. 6).
Ao fazer algumas consideraçöes sobre o "novo" Ensino Médio e a BNCC, consideramos falsa a afirmaçâo de protagonismo ou escolha de estudantes por dois motivos principais: está disposto em lei que os itinerários serâo escolhidos conforme disponibilidade pelos sistemas estaduais de ensino e, portanto, nâo há garantia de opçöes, sendo que "... em nenhum momento a obrigatoriedade de existencia de mais de uma possibilidade nas escolas é estabelecida pela Lei". (ANDES, 2017, p. 19); outra questâo importante é a aprovaçâo, em 2016, da Emenda Constitucional PEC n.° 241 ou 95 (dependendo da casa legislativa), que congelou os investimentos públicos por 20 (vinte) anos, inclusive, para o sistema educacional, o que impossibilita universalizaçao da educaçao ou a implantaçao de qualquer tipo de mudanças ou reformas nas escolas.
Entende-se, portanto, que o currículo baseado na Pedagogia das Competencias, seja ele embasado nos PCNEMs (1990), ou na BNCC (2018), apresenta um discurso padronizador, sendo que a negaçao da objetividade e da racionalidade sao considerados principais, conforme salienta Malanchen (2016):
A realidade é construida de fragmentos, e as relaçöes do ser humano com o mundo sao fortuitas. Em termos sociopoliticos, isso resulta na impossibilidade de elaboraçao de projetos e estratégias de açao coletiva no enfrentamento da lógica do capital. (2016, p. 82).
Pensando assim, formar a juventude a partir de um curriculo utilitarista e emaranhando no discurso do desenvolvimento de competencia e habilidades especificas tem objetivo nao apenas de atender o mercado produtivo enquanto mao de obra, mas também incutir um determinado discurso nos individuos dessa sociedade. Trata-se, portanto, de uma estratégia para a reproduçao e manutençao da sociedade capitalista e a ausencia de perspectivas de superaçao, gerando conformidade.
Essa ideia de apaziguamento da sociedade civil, que passa a ter sujeitos com papéis provisórios e, nao, sujeitos que fazem parte da história, com anulaçao da possibilidade de transgressao e o aceite livre da lógica do capital, é central e muito assustador. Tal pedagogia, é considerada por Duarte como relativista, com o aspecto da "... ausencia da perspectiva de superaçao da sociedade capitalista e, por conseguinte, uma concepçao idealista das relaçöes entre educaçâo e sociedade" (2008, p. 1). Em linhas gerais, mesmo com criticas a alguns aspectos do capitalismo, acabam sendo neutralizadas por acreditarem ser possivel a resoluçao de problemas educacionais sem o aporte da superaçao radical do modelo de organizaçao social. Conforme acrescenta Orso:
Esse idealismo provoca uma série de consequencias. A partir dele ocorre a absolutizaçao e onipotencia das ideias, a crença do poder ilimitado da razao do homem; aparencia e essencia se confundem; dispensa-se a ciencia enquanto instrumento de conhecimento, de açao e de transformaçao (2003, p. 30).
Assim, para além dos mesmos problemas em relaçao a formaçao em nivel médio, como falta de estrutura, salas superlotadas, evasao etc., os problemas advindos da organizaçao económica e social do capitalismo, como falta de emprego, sociedade de classes, etc., ainda perpassamos pelo retorno do discurso e do curriculo baseado em competencias e habilidades presente na década de 1990. Este curriculo tem organizaçao extremamente utilitarista, preenchendo as lacunas e necessidades do mercado de trabalho, mesmo que com o discurso do protagonismo, bem como a demanda pragmatista, com a organizaçâo de conteúdos e a reconfiguraçâo da formaçâo e do trabalho docente com o objetivo de melhorar os índices nas avaliaçöes em larga escala, mascarando, portanto, os problemas da escola pública, esvaziando as disciplinas dos conteúdos científicos próprios para entendimento de mundo e, principalmente, esvaziando o direito ao desenvolvimento da crítica e propondo a reproduçâo social.
Na sequencia, apresentaremos elementos para justificar os motivos de estarmos afirmando que a formaçâo via BNCC e a reforma do Ensino Médio, para além de um curriculo utilitarista, está articulado a exigencia em melhorar os índices nas avaliaçöes em larga escala.
"Gastos" com educaçâo e a corrida para elevar os índices nas avaliaçöes em larga escala
Nâo por acaso, o governo federal requereu junto ao Banco Mundial, em meados do ano de 2016, uma "... análise aprofundada dos gastos do governo para identificar alternativas para reduzir o déficit fiscal a um nivel sustentável" (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 1). Dentre as principais conclusöes do documento está a crescente despesa com educaçâo pública e o número decrescente de matrículas, além de afirmar que o sistema público é caracterizado pela "... baixa qualidade dos professores e pelos altos índices de reprovaçâo" (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 121). Segundo ele, esses fatores só podem resultar na ineficiencia significativa dos gastos públicos.
Sem perder muito tempo, em 2018, o Banco Mundial apresentou um documento com propostas as políticas de educaçâo para superar a crise de aprendizagem no país (BANCO MUNDIAL, 2018). Dentre as consideraçöes apresentadas, afirmou que os resultados do Brasil eram muito fracos, se comparados com os números internacionais1, sendo necessário intervir rapidamente para a mudança nesse quadro. Nesses termos, assinalaram que os níveis de aprendizagem relativo aos gastos com educaçâo estâo muito abaixo do esperado, apesar de os gastos públicos com educaçâo "... cresceram rapidamente nos últimos anos, acima do nível observado em países comparáveis" (BANCO MUNDIAL, 2018, p. 3).
Considerando os problemas que envolvem a alfabetizaçâo, a formaçâo inicial e a seleçâo de professores, o próprio currículo do ensino médio desconectado das prioridades do mercado de trabalho, o documento discorre sobre algumas propostas para superar a "crise de aprendizagem", dentre elas: (i) estabelecimento da Base Nacional Comum Curricular BNCC-; (ii) a reforma do Ensino Médio com prioridade no desenvolvimento das habilidades socioemocionais; (iii) tornar as escolas responsáveis pelos resultados de aprendizagem; (iv) priorizar a prática pedagógica nos programas de formaçao de professores inclusive com formaçao continuada baseada nas habilidades de ensino; (v) responsabilizaçao do professor, introduzindo avaliaçöes padronizadas e recompensas por bom desempenho. Todas essas medidas precisam estar atreladas ao uso eficiente e equitativo dos gastos públicos, as quais discutem diminuir a contrataçao de professores, aumentar o número de alunos atendidos por professor sendo "... uma condiçâo necessária para obter melhores resultados educacionais" (BANCO MUNDIAL, 2018, p. 18).
Em relaçâo ao Ensino Médio, expöe ainda o baixo índice de conclus&acaron;o, considerando que os estudantes terminam essa etapa em média aos 19 (dezenove) anos, acima, portanto, da média dos países em comparaçâo estrutural ou regional. Em linhas gerais, "... os altos índices de reprovaçâo e evas&acaron;o escolar observados no Brasil resultam em um percentual surpreendentemente alto de alunos que n&acaron;o concluem o Ensino Médio antes dos 25 anos de idade" (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 126). Esses números indicam o motivo do custo t&acaron;o elevado por formando no país, o que prossegue até o ensino superior.
No entanto, para o BM, a "... baixa qualidade dos professores é o principal fator restringindo a qualidade da educaçâo" (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 127), sinalizando assim, o desprestigio da profiss&acaron;o docente, os baixos requisitos para ingresso nos cursos de licenciatura, a má qualidade na formaçâo e a necessidade de vincular os salários ao desempenho. Dentre as sugestöes está a diminuiçâo do número de professores por aluno com indicativos maiores nas regiöes Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país, sendo sugerido a n&acaron;o reposiçâo dos professores que est&acaron;o se aposentando, por um longo período. Outro problema encontrado em re^ão ao professor refere-se as faltas constantes, indicando que a "... desvincu^ão entre desempenho, estabilidade e remuneração, e mecanismos frágeis de monitoramento e controle fazem com que professores tenham pouco incentivos a manter frequencia adequada" (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 130). As propostas para resolver esse "problema" v&acaron;o desde a introduçâo de bônus por frequencia até a ameaças de demiss&acaron;o em caso de número excessivo de ausencias.
É interessante analisar que os documentos do BM colocam em evidencia o trabalho do servidor público, seja ele do setor educacional, da segurança ou da saúde, dentre outros, como se fossem os responsáveis pelos problemas do Estado. Desconsidera-se, portanto, a falta de funcionários, comedida pela quase inexistencia de concursos públicos, a precariedade do trabalho e de investimento no setor tecnológico, bem como as condiçöes estruturais dos prédios, como escolas, postos de saúde e demais órgáos públicos. Chama a atençâo quando o proprio BM apresenta o problema da "... alta incidencia de corrupçâo" (BANCO MUNDIAL, 2018b, p. 7) nos órgáos públicos. Estes, na nossa leitura, tem verdadeiramente aumentado os gastos do setor. No entanto, a sugest&acaron;o que se apresenta é de que a "contrataçâo de empresas privadas para o fornecimento de serviços de educaçâo poderia melhorar o desempenho e a eficiencia dos gastos públicos com educaçâo" (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 137). Isso, sem dúvidas, pode estar impulsionando a privatizaçâo e a terceirizaçâo bem como a desresponsabilizaçâo do Estado que, provavelmente, deve recorrer a organizaçâo de novas leis federais, estaduais e municipais, permitindo e normalizando as - Parceria Público-Privado (PPPs) na educaçâo básica de forma abrangente.
Logo, outra questâo que se destaca como recomendaçâo do Banco Mundial é a Reforma de Estado, sinalizando que, apesar do crescimento do Estado, este mantém serviços públicos com baixa qualidade. Segundo os documentos nâo há resposta qualitativa em relaçâo ao gasto público, sendo mais que necessária a "... participaçâo privada para melhorar a prestaçâo de serviços, desde que a regulamentaçâo seja aprimorada" (BANCO MUNDIAL, 2018b, p. 2). Sugere-se, para além da reduçâo da rigidez orçamentâria e a melhoria da gestâo sobre o investimento público, a avaliaçâo constante e premiaçâo por desempenho do funcionalismo público.
No que se refere a educaçâo, Tarlau e Moeller (2020, p. 554) trazem o debate de consenso por filantropia referindo-se ao uso por fundaçöes privadas de recursos materiais, produçâo de conhecimento, mídia e redes sociais para obter "consenso entre múltiplos atores sociais e institucionais em apoio a uma determinada política pública". É o exemplo da Fundaçâo Lemann, que teve papel determinante na organizaçâo, divulgaçâo e aprovaçâo da BNCC, participando diretamente de todas as etapas e discussöes e se tornando parte do próprio Estado. Abre-se, portanto, caminho para "expandir a lógica de mercado e aumentar os lucros corporativos" (TARLAU & MOELLER, 2020, p. 556). Dentre os objetivos implícitos na reforma educacional com centralidade no curriculo, é possível afirmar o seu uso para melhorar os resultados nos testes padronizados, bem como modificar o trabalho do professor, conforme Tarlau e Moeller (2020):
A promoçâo de padröes nacionais curriculares e de aprendizagem, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no Brasil, pode ser usada para aumentar os testes padronizados, as avaliaçöes de professores e o pagamento por mérito, além de introduzir aulas roteirizadas - e tudo isso é parte integral de um modelo educacional voltado para o mercado (2020, p. 558).
Além disso, os altos custos que tem as reprovaçöes s&acaron;o apresentados como "... falta de apoio dirigido aos alunos com desempenho mais fraco - geralmente de familias desfavorecidas" (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 126). Nosso questionamento está em compreender se entendem que apenas aulas de reforço e/ou a utilizaçâo de recursos diferenciados no ambiente escolar s&acaron;o necessárias para melhorar o desempenho, considerando que se está falando em reprovação e aprendizagem. Inclinamo-nos a dizer que, sim. Desconsidera-se, portanto, toda a cond^ão material de vida dos estudantes, muitas delas precárias, com escolas longe de casa, além da "... necessidade de contribuir para a renda familiar" (FERRETI, 2018, p. 27), especialmente quando se fala em alunos do ensino médio.
Com o uso estratégico de recursos económicos e o amplo apoio para essa iniciativa política, a Fundação Lemann, endossou a justificativa para a reformu^ão curricular do ensino médio, com base nos baixos índices alcançados pelos alunos nas avaliaçöes externas de Lingua Portuguesa e Matemática. Conforme verificamos na aval^ão do BM (2017) sobre o nivel de gasto por aluno e os resultados do PISA:
O Brasil obteve melhoras significativas na prova de matemática do PISA (Programa Internacional de Avaliaçao de Estudantes). A nota média brasileira passou de 68% para 79% da média da OCDE entre 2002 e 2012. Contudo, desde entáo, os resultados caíram para 77% em 2015 (o mesmo nivel de 2009). Quando se controla pelo nivel de gasto por aluno, os resultados do PISA ainda s&acaron;o decepcionantes. O desempenho brasileiro medido pela prova de matemática do PISA em 2012 foi somente 83% do esperado para países com o mesmo nível de gasto por aluno (Figura 87). Países como a Colómbia e a Indonésia, por exemplo, atingiram pontuaçöes semelhantes no PISA gastando bem menos por aluno. Já países como Chile, México e Turquía gastam valores similares ao Brazil e obtem melhores resultados. (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 124).
Esses resultados, considerados insuficientes, validaram as discussöes sobre a baixa qualidade dos professores e a necessidade da organização de um curriculo comum para garantir a aprendizagem igualitária. Em linhas gerais, o "... discurso da educação como direito social e dos baixos índices nas avaliaçöes nacionais e internacionais acabam norteando as justificativas que a educaçao de qualidade depende na reforma curricular" (BARREIROS, 2017, p. 5).
Considerando a grande relevancia dada a esses resultados e o desempenho dos estudantes em nivel nacional e internacional, Saviani (2016) adverte que os caminhos adotados pela BNCC (BRASIL, 2018) "... tudo indica que a fu^ão dessa nova norma é ajustar o funcionamento da educaçao brasileira aos parámetros das avaliaçöes gerais padronizadas" (SAVIANI, 2016, p.75), ou seja, a elaboração de um novo curriculo tem a fu^ão principal de organizar os conteúdos e o trabalho docente, objetivando atender a necessidade de melhores resultados nas provas padronizadas de aval^ão externa.
Freitas (2012), em uma citaçâo de Jones & Hargrove (2003), indica que as avalıaçöes podem gerar tradiçöes, alterando o trabalho dos professores, administradores e estudantes. Nesse sentido, é possível que os professores dediquem sua atençâo aos conteúdos valorizados nos exames, mais propriamente os relacionados a leitura e a matemática, e deixem outros fora de alcance dos estudantes. (FREITAS, 2012. p. 389). Mais do que isso, com a centralidade da avaliaçâo e a pressáo sobre os resultados, o professor estará propicio a alcançar e cumprir as metas sociais pré-estabelecidas, garantindo boas práticas e promovendo o sucesso do aluno. Nao longe disso, "... há a esperança de que a avaliaçâo demonstre a qualidade do trabalho desenvolvido pelo professor, livrando-o da vergonha e redimindo-o da culpa..." histórica pelos maus resultados dos estudantes nesse tipo de teste (MACEDO, 2014, p. 1553).
Logo, esse cenário que impöe as avaliaçöes externas como obrigatórias, também a utiliza como mecanismo de controle das atividades desenvolvidas pelo professor que se ve em uma verdadeira encruzilhada, especialmente em relaçâo a sua autonomia (SILVA, 2017). Já se pode observar esse encaminhamento expressivo em alguns estados do país, com destaque do estado do Paraná, que conseguiu instituir um padr&acaron;o de avaliaçöes periódicas para todas as escolas da rede pública. Com o nome de "Prova Paraná"2, o instrumento começou a ser instituido em 2019, com a aplicaçâo de testes de Lingua Portuguesa e Matemática; em 2020, houve uma ampliaçâo das disciplinas/áreas avaliadas, que passaram a integrar, além de Lingua Portuguesa e Matemática, as provas, como é o caso da disciplina Lingua Inglesa. Já em 2021, após o retorno gradual das aulas presenciais3, em setembro, foi aplicada a Prova Paraná em dois dias: no primeiro, das disciplinas de Lingua Portuguesa, Matemática e Lingua Inglesa e, no segundo dia, os estudantes do Ensino Fundamental realizaram provas de Ciencias da Natureza, Geografia e História. No Ensino Médio, froam examinadas as Ciencias da Natureza (Quimica, Fisica e Biologia) e Ciencias Humanas (História, Geografia, Sociologia e Filosofia).
Para 2022, a Secretaria da Educaçâo e do Esporte do Paraná aprimorou a ferramenta, passando a aplicar as avaliaçöes em todos os trimestres, intensificando assim a cobrança por melhores resultados a cada ediçâo, tanto de professores como dos diretores. Segundo a politica estadual, a Prova Paraná "... é um instrumento de avaliaçâo elaborado com o objetivo de identificar as dificuldades apresentadas, bem como as habilidades já apropriadas pelos estudantes durante o processo de ensino e aprendizagem"4. Esse panorama já tem levado alguns professores a trabalharem estritamente os conteúdos desses testes (que começaram a ser previamente divulgados via descritores de aprendizagem), inclusive, a considerarem-na como parte da avaliaçao trimestral dos estudantes.
Além do esvaziamento de conteúdos, via essa corrida pela melhoria de resultados, questiona-se se os gastos com todo esse movimento, a contar pelo grupo contratado para organizar essas provas, impressöes, logística e um aplicativo de celular para correçao, que resulta em relatórios para professores e diretores. É impossível olhar esse contexto e nao pensar o quanto esse investimento seria melhor revertido se aplicado nas condiçöes efetivas do trabalho docente, acesso dos estudantes, materiais pedagógicos de melhor qualidade, formaçao continuada para além do pragmatismo etc. Acaba que é uma política pensada distante do planejamento do professor, mas que precisa ser incorporada por ele e que, de forma subjetiva e objetiva, vem se inserindo na realidade escolar.
Nesse sentido, com o curriculo voltado apenas a atender os conteúdos das avaliaçöes externas, há restriçao de conhecimento, especialmente aos filhos da classe trabalhadora, que dependem exclusivamente da escola para faze-lo. Pensar que, em relaçao ao Ensino Médio, a partir da reforma (BRASIL, 2017), apenas 60% (sessenta por cento) do curriculo está reservado as áreas do conhecimento, já caracteriza por si só o esvaziamento de conteúdos. Afinal, quais foram os escolhidos para permanecerem no curriculo? Quais foram as prioridades? Com a preocupaçao exposta na BNCC (BRASIL, 2018), com desempenho nas avaliaçöes de larga escala, a resposta nao é diferente da prioridade para as disciplinas e conteúdos de Lingua Portuguesa e Matemática, presentes nas provas, que sao, nao por coincidencia, os únicos componentes curriculares obrigatórios a partir da reforma do Ensino Médio (ZANK, 2020).
Algumas considerares
A BNCC e a reforma do Ensino Médio alavancaram inúmeras pesquisas sobre a formaçao da juventude e o caráter pragmatista direcionado a atender as avaliaçöes em larga escala, bem como o sentido utilitarista do curriculo, com o enfoque no desenvolvimento de competencias e habilidades, beneficiando o mercado produtivo. Destacamos, portanto, que o resultado nao poderá ser diferente da ampliaçao das desigualdades sociais, ao longo do território nacional, conforme assevera, Silva (2015):
Certamente esta no horizonte que a Base Nacional Comum Cumcular se instituirá como estrategia de controle também por meio das avaliaçöes e, uma vez mais, näo apenas irá reiterar as desigualdades como também poderá reforça-las. Os exames atualmente incidem diretamente sobre as escolhas em termos de currículo. Agora, a Base Nacional Comum Curricular passaria a determinar os conteúdos dos exames. Esta é uma das justificativas para sua existencia: garantir maior fidedignidade as avaliaçöes. (SILVA, 2015, p. 375).
Uma reforma dessa amplitude n&acaron;o tem por objetivo oportunizar a apropriaçâo, pela juventude, dos conhecimentos históricos que foram desenvolvidos pela humanidade, e, sim, transformar a escola em espaço de legitimaçâo burguesa e do pensamento pós-moderno, objetivado na fragmentaçâo necessaria para o mundo do trabalho na sociedade capitalista. É o relativismo dado a "...experiencia individual, [a]o conhecimento tático, [a]o cotidiano, a realidade imediata" (MALANCHEN, 2016, p. 19).
O que queremos enfatizar é que um currículo apenas com o objetivo de atender as avaliaçöes externas n&acaron;o tem condiçöes mínimas para a apropriaçâo necessaria ao entendimento da realidade histórica pelos indivíduos que frequentam a escola. Esse esvaziamento de conteúdos atende especificamente a demanda do sistema produtivo, que n&acaron;o entende como necessidade a formaçâo para compreens&acaron;o da sociedade em sua totalidade, considerando a disposiçâo de trabalho polivalente e a necessidade de profissionais adaptáveis a uma organizaçâo económica completamente instável. Daí, o foco no cotidiano, na experiencia e, claro, nos resultados rápidos, conforme expectativa das avaliaçöes em larga escala.
Outra quest&acaron;o bastante explicita é a mercantilizaçâo da escola pública, via de regra o incentivo de convenios com instituiçöes de educaçâo a distancia, o acirramento na busca por apostilas a fim de compor melhor resultados nas provas, bem como a oferta de cursos que ser&acaron;o integralizados ao Ensino Médio. (SILVA, 2018). Assim, o "novo" Ensino Médio também irá imprimir mudanças expressivas nas políticas de formaçâo de professores, e na própria carreira docente.
Consideramos, portanto, a reforma contrária aos interesses dos filhos da classe trabalhadora, pois, ao esvaziar a escola dos conhecimentos científicos, privam-se as novas geraçöes do entendimento da realidade, do desenvolvimento da capacidade crítica e retira-se o direito de pensar e organizar uma sociedade diferentemente da organizada pelo capital. Desse modo, tanto o currículo, quanto o "novo" Ensino Médio se apresentam como uma maneira de desmembrar a luta por uma sociedade mais justa e é por isso que precisamos estar em constante defesa da escola pública, legitimando sua funçâo, como alertam Fonte e Loureiro (2011):
Por um lado, o desafio de fortalecer a única chance que os filhos e filhas da classe trabalhadora tem de acessar conhecimentos elaborados; por outro consiste em concretizar o processo sinalizado por Marx no qual o conhecimento teórico passa a ter força material, isto é, ganha vida a medida que é apropriado e potencializa a luta contra a miséria e a barbarie social (2011, p. 190).
De modo efetivo, portanto, resta a nós professores e pesquisadores, lutar na contram&acaron;o do processo e n&acaron;o nos deixarmos levar por políticas hegemônicas que degradam o nosso trabalho e destroem a formaçâo dos jovens e a escola pública. Para tanto, entendemos que a Pedagogia Histórico-Crítica, fundamentada no Materialismo Histórico e Dialético, posiciona-se em defesa da classe trabalhadora e, portanto, "... alinha um posicionamento explícito perante a luta de classes" (DUARTE, 2011, p. 7), entendendo que cabe a educaçâo a formaçâo da consciencia revolucionaria. E isso nao é feito de forma voluntaria, mas, sim, por meio da apropriaçâo dos conteúdos científicos, artísticos e filosóficos de forma sistematizada, permitindo a formaçâo do homem de forma consciente e universal.
Para citar - (ABNT NBR 6023:2018)
TRINDADE, Debora Cristine; MALANCHEN, Julia. A pedagogia das competencias e o "novo" ensino médio: curriculo utilitarista e a centralidade da avaliaçao. Eccos - Revista Científica, Sao Paulo, n. 62, p. 1-17, e23198, jul./set. 2022. Disponível em: https://doi.org/10.5585/eccos.n62.23198.
1O Brasil melhorou significativamente no exame de matemática do PISA: de 68% da média da OCDE para 79% entre 2002 e 2012; mas, desde entâo, caiu para 77% em 2015 (nível de 2009). Embora o acesso a educaçâo tenha melhorado, o progresso dos resultados de aprendizagem tem sido limitado (BANCO MUNDIAL, 2018, p. 3).
2 https://www.provaparana.pr.gov.br/Pagina/Objetivos
3 O ano letivo de 2020 e parte de 2021 foi realizado remotamente devido a pandemia mundial do Covid-19.
4 (https://www.provaparana.pr.gov.br/Pagina/Objetivos).
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Abstract
O texto apresenta argumentos, indicando que o "novo" Ensino Médio no Brasil e a reorganização curricular via Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tem suas vertentes na pedagogia das competências, já utilizadas no final da década de 1990. Para além disso, expõe o viés utilitarista da formação imposta aos anos finais da educação básica, priorizando as demandas do mercado produtivo e a centralidade da avaliação. Logo, o texto foi estruturado em dois momentos. No primeiro momento, explicita as principais políticas dos anos de 1990 para o Ensino Médio e a semelhança com a reforma que está em fase de implantação a partir da Lei n 13.415 (BRASIL, 2018), endossando a premissa de um currículo utilitarista com a centralidade da avaliação. No segundo, apresenta as análises do Banco Mundial sobre a necessidade de mudanças imperativas nas políticas educacionais com o objetivo de melhorar os resultados dos estudantes do país, considerados muito fracos em relação aos de países equivalentes. Por fim, em forma de conclusão do artigo, mas como luta permanente, expõe-se a contrariedade com a reforma do Ensino Médio e a formação esvaziada via BNCC, como reivindicação da Pedagogia Histórico-Crítica, enquanto prática revolucionária que prioriza a apropriação dos conhecimentos científicos e a superação da sociedade capitalista.