Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar como se deu, no plano histórico, e se dá, atualmente, na contemporaneidade, as relações entre o corpo e a alma, no âmbito da antropologia cristã. Historicamente, primeiro se constatou a existência do corpo e da alma para depois se ocupar do tipo de relação que há entre ambos os princípios. Do ponto de vista histórico, houve um primado e uma supremacia da alma sobre o corpo. Entre ambos os princípios metafísicos, ora vigorava uma unidade acidental (provisória e dualista), ora uma unidade substancial (permanente e recíproca). Atualmente, a reflexão teológica defende uma unidade mútua e recíproca entre o corpo e a alma, de modo que cada princípio está ordenado para o outro. O ser humano é uma unitotalidade psicofísica e anímico-corpórea. Atualmente, há autores filósofos (X. Zubiri, M. Bunge) e teológos (J. Moltmann, Flick-Alszechy), que defendem como alternativa ao hilemorfismo aristótelico-tomista, novas formas de compreender a relação entre o corpo/matéria e alma/espírito. Também, nos dias de hoje, a relação corpo-alma está presente nas novas antropologias, mas com um novo verniz: a relação mente-cérebro.
Palavras-chave: Antropologia. Corpo. Alma. Mente. Cérebro.
Abstract
The scope of this paper is to present how occurred in historical level, and occurs in the contemporary world, the relation between body and soul in the context of Christian anthropology. Historically, in a first moment, it was identified the existence of the body and the soul, and afterwards, the type of relation between these two ontological principles. From a historical point of view, there was a primacy and supremacy of the soul over the body. Between these principles, sometimes prevailed an accidental unity (provisional and dualistic), sometimes a substantial unity (permanent and reciprocal). Nowadays, the theological reflection defends a mutual and reciprocal unity between body and soul, so that each principle is ordained one to the other. Human being is a psychophysical "unit-totality" constituted of body and soul. Currently, there are philosophers (X. Zubiri, M. Bunge) and theologians (J. Moltmann, Flick-Alszeghy), who defend, as alternative to the Aristotelian-Thomistic hylemorphism, new forms of understanding the relation between body/matter and soul/spirit. Also, nowadays, the relation body-soul is present in new anthropologies, but with a new varnish through relation between mind-brain.
Key-words: Anthropology. Body. Soul. Mind. Brain.
Introdução
Quem é o ser humano? Quais são os princípios que compõem a constituição ontológica do ser humano? Há uma supremacia de um princípio em relação ao outro? Qual o tipo de relação que vigora entre o corpo e a alma? É possível encontrar alternativas, teologicamente, válidas, ao hilemorfismo aristotélico-tomista, na forma de entender a relação corpo-alma? Pode-se dizer que quando as antropologias materialistas atuais tratam da relação mente-cérebro não estariam sutilmente refletindo sobre a relação corpo-alma? O que significa afirmar que o ser humano tem uma dimensão axio-ontológica? Por que o ser humano se destoa do mundo material que o circunda? Em que sentido o ser humano é qualitativamente superior às demais criaturas? Todas estas interpelações estão relacionadas, direta ou indiretamente, com a condição anímico-corpórea do ser humano e serão tratadas no curso da exposição do tema.
Historicamente, no campo da teologia cristã, o ser humano foi visto como uma composição de corpo e de alma. Em um primeiro momento, preocupou-se mais em afirmar a existência destes dois princípios metafísicos e, posteriormente, com a forma de relação que há entre ambos. Historicamente, houve uma soberania da alma sobre o corpo. Entre ambos os princípios, vigorava uma relação hierárquica. Atualmente, a relação que vige entre o princípio material e o espiritual do ser humano é de uma ordenação recíproca. A alma é para o corpo e o corpo é para a alma. Ambos os princípios estão co-determinados e orientados. Um princípio subsiste por sua relação com o outro. O ser humano é uma unidade constituída pela relação mútua dos princípios material e espiritual. Para o teólogo protestante Moltmann, entre o corpo e a alma há uma relação de unidade e de distinção. Segundo o filósofo Zubiri, o ser humano é uma unidade psicoorgânica. A psique está constitutivamente ordenada para o organismo da mesma forma que o organismo está para a psique. Esta relação entre o corpo (ou o organismo, a matéria etc.) e a alma (a psique, o espírito etc.) encontra-se, ainda que de forma oculta e a-temática, no "subsolo" das antropologias materialistas atuais (materialismo monista, teoria da identidade psiconeural, dualismo interacionista, teoria da inteligência artificial etc.) que tratam da relação mente-cérebro.
1 Uma breve história teológica da relação corpo-alma1
1.1 A relação corpo-alma na teologia patrística
A afirmação de que o ser humano constitui uma unidade anímico-corpórea é um dado antropológico inabdicável para a fé cristã. No entanto, esta verdade irrenunciável foi objeto de árduos debates no curso da história do pensamento cristão. Para os autores cristãos dos primeiros séculos (patrística), foi um desafio fazer a passagem da unitária antropologia bíblica para o cenário cultural greco-latino, marcado pela influência da filosofia platônica e pela gnose2. A visão antropológica do panorama cultural pós-bíblico estava impregnada de idéias como: a alma é divina, pré-existente e naturalmente imortal; a relação dicotômica entre o corpo e a alma; uma visão pejorativa do corpo e, consequentemente, uma sobrevalorização da alma. A inculturação da antropologia bíblica, neste contexto antropológico, exigiu muita perspicácia reflexiva dos autores cristãos para não macularem as verdades basilares sobre o ser humano (integralidade antropológica, unidade pluridimensional etc.). A penetração do gnosticismo no pensamento cristão colocava em questão as verdades centrais da fé cristã: a encarnação do Verbo, a salvação pela mediação da morte de Cristo e a ressurreição dos mortos. Assim, a antropologia, a cristologia, a soteriologia e a escatologia precisavam ser blindadas da sedução gnóstica. Uma meditação sobre os mistérios da vida e da obra de Jesus Cristo proporcionam um resgate da dimensão corpórea do ser humano, impedindo-o de ser visto somente em sua condição anímica. O corpo está relacionado com aquelas verdades nucleares da fé cristã. Por isso, os autores cristãos dos quatro primeiros séculos alertavam, com muita lucidez, sobre o perigo, para a fé cristã, da rejeição da condição corpórea na compreensão do ser humano. Uma visão puramente espiritualista do ser humano afeta frontalmente aquelas verdades nucleares. A patrística, fundamentada na visão unitária da antropologia bíblica, defende que o ser humano é uma unidade concreta de corpo e alma. No fundo, procura-se uma compreensão correta a respeito de quem é o ser humano (como se dá nele a relação corpo-alma) para depois entender quem é Cristo. Na patrística, a cristologia determina a antropologia.
Com o escopo de salvaguardar as verdades cristãs nucleares do influxo gnóstico, a patrística defendia a dignidade do corpo como elemento constituinte da unidade e totalidade antropológicas. O corpo não é um aspecto adicional, provisório, acidental e desprezível da constituição ontológica humana. O ser humano não pode ser definido exclusivamente pela sua dimensão anímica. A alma não é sinônimo e nem responde pela totalidade do ser humano. Ela se constitui, assim como o corpo, de uma dimensão do ser humano. O corpo não é um receptáculo, nem um cárcere, e nem um invólucro da alma. O ser humano não é somente corpo e nem somente alma, mas uma unidade de corpo e alma. A respeito destes dois aspectos ontológicos humanos, um não pré-existe ao outro e nem vigora entre eles uma relação de subordinação ou piramidal, mas de comunhão e unidade.
A reivindicação do aspecto corpóreo (tendência filo-somática) como elemento integrante da constituição do ser humano foi patrocinada, principalmente, pelos padres apologistas (Justino e Taciano) e pela escola antioquena (Irineu de Lião e Tertuliano). A dignidade do corpo era defendida diante de um cenário hostil à matéria e à carne. A apologia do corpo estava vinculada a uma valorização da matéria, da realidade espaço-temporal e, também, no plano cristológico, da encarnação, da dimensão humana e da salvação pela mediação de Jesus. Esta valorização do aspecto corpóreo, para a compreensão de quem era o ser humano, não foi seguida pela escola alexandrina (Clemente Alexandrino e Orígenes), em virtude de sua tendência platonizante (filo-psíquica). sta escola advogava uma primazia da alma em relação ao corpo. Esta tendência exerceu um influxo determinante no pensamento cristão ocidental. No horizonte a escola alexandrina, a alma era vista como o elemento excelso, a melhor parte e a dimensão que define e especifica quem é o ser humano. Este primado da alma foi radicalizado por Orígenes que defendia a pré-existência, a imortalidade natural, a encarnação provisória, devido à queda do mundo celeste (caráter medicinal), e o retorno ao estado desencarnado da alma. As teses de Orígenes foram condenadas pelo sínodo de Constantinopla (543). As teses da pré-existência das almas, da encarnação das almas por causa do pecado (defendidas também por Orígenes), da origem diabólica do corpo, da visão maléfica do matrimônio e da procriação, da afirmação de que as almas humanas ou os anjos são substâncias de Deus, da recusa da ressurreição da carne e da rejeição de que o mundo é uma criação divina (teses defendidas pelos priscilianos) foram condenadas pelo I sínodo de Braga (561). As declarações magisteriais, contra qualquer corrente de pensamento que patrocinava uma visão depreciativa e hostil à carne, à matéria, à criação, demonstraram que o corpo pertence à verdade da constituição humana.
A pré-eminência da alma em relação ao corpo está presente em Agostinho (354-430), para quem o ser humano é um composto de corpo e alma racional. "O homem não é nem só corpo nem só alma, mas um composto de corpo e de alma. É certamente verdade que a alma não é o homem todo, mas sua melhor parte; nem o corpo é o homem todo, mas sua parte inferior: são os dois reunidos que merecem o nome de homem" (AGOSTINHO, 1990, XIII, 24,2). O bispo de Hipona defende simultaneamente uma supremacia da alma e a sua união com o corpo. A alma, como imagem do Deus trino, consiste na essência do ser humano. Da união entre o corpo e a alma emerge uma "grande maravilha incompreensível ao homem: é o homem" (AGOSTINHO, 1990, XXI, 10,1). Entre ambos os componentes que constituem o ser humano vigora uma relação hierárquica. A alma, considerada a parte mais nobre do composto humano, exerce um domínio sobre o corpo. Este é um instrumento e está subordinado à alma. No horizonte agostiniano, a relação entre o corpo e a alma é "entendida mais como funcional e acidental do que substancial" (FIORENZA; METZ, 1973, p. 48). O corpo, como espaço de manifestação do pecado, que está a serviço da alma racional. É a alma que ireciona e rege o corpo. O pecado é o fator que desarmoniza a relação entre o corpo e a alma. O corpo pode se rebelar contra a alma e conduzir a vontade para o mal. Apesar de o corpo ser concebido como a parte ínfima do composto humano não se registra, em Agostinho, um olhar repugnante e nem negativista para o mesmo porque foi criado por Deus. O corpo e alma são duas dimensões distintas, não contrárias ou opostas, que constituem o ser humano.
As declarações magisteriais do período patrístico que tratam da composição humana (corpo-alma) são feitas em um contexto cristológico e não propriamente antropológico. No contexto das controvérsias cristológicas, a patrística aprofundava as suas reflexões sobre a estrutura do composto humano. Com o intento de afirmar a verdadeira humanidade de Cristo, a patrística advogava que o homem é uma carne animada por uma alma racional (FLICK; ALSZEGHY, 1999, p. 141). Tratando das declarações conciliares sobre o ser humano na patrística, Ladaria (2003, p. 107) denota que "quando os concílios cristológicos afirmam a plena humanidade de Jesus, indicam que ele assumiu uma alma racional e um corpo, o que quer dizer indiretamente que os dois constituem o homem completo". Segundo o concílio de Efeso (431), a natureza do Verbo "não foi transformada em um homem completo composto de alma e corpo", mas uniu a si, por hipóstase, "uma carne animada por uma alma racional e veio a ser homem" (DENZINGER; HÜNERMANN, 2007, n. 250). O símbolo da Fórmula de união (433) declara que Jesus é "perfeito Deus e homem perfeito composto de alma racional e de corpo" (DENZINGER; HÜNERMANN, 2007, n. 272). Em sintonia com a Fórmula de união, o concílio de Calcedônia (451) afirma que Jesus Cristo é "perfeito na sua divindade e perfeito na sua humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem composto de alma racional e corpo" (DENZINGER; HÜNERMANN, 2007, n. 301).
Os autores cristãos e as declarações magisteriais que trataram, direta ou indiretamente, do ser humano, até o presente momento, estão mais preocupados em detectar quais os elementos pertencem à sua composição humana (constituição ontológica) do que propriamente em estabelecer o tipo de relação que há entre o corpo e a alma (justaposição? união acidental? união substancial?). A busca em precisar qual a natureza da relação existente entre ambos os elementos constitutivos do composto humano será a preocupação da teologia medieval.
1.2 A relação corpo-alma na teologia medieval
No período patrístico, a antropologia cristã estava em função da cristologia; já no período medieval a antropologia cristã se situava no horizonte escatológico. "Foi a determinação cristológica da antropologia que na época patrística ditou a recuperação do corpo na compreensão do humano; agora será a escatologia [...] que determinará a consideração da unidade substancial corpo-alma" (RUIZ DE LA PEÑA, 1988, p. 102). Quando indagavam sobre a essência humana, os teólogos medievais estavam movidos por um interesse escatológico. Se com a morte a alma se separa do corpo, então é preciso interpelar: que tipo de união (acidental ou substancial?) há entre o corpo e a alma? Neste contexto, é pertinente perguntar: quem é o sujeito a quem é destinada a salvação? À alma imortal, que se separou do corpo com a morte, ou ao ser humano todo? Pode-se, ainda, indagar: A alma separada do corpo representa o ser humano todo? O corpo está excluído da vida pós-mortal? Como se dará a reconstituição da unidade do ser humano na ressurreição que haverá no "último dia"?
Com o intento de responder a estas perguntas, os teólogos medievais oscilaram entre tendências platônicas e aristotélicas. Hugo de São Vítor (1096-1141), principal representante da corrente de tendência platônico-agostiniana, em sua visão sobre a constituição antropológica, defendia a primazia da alma sobre o corpo, a ponto de identificá-la com o ser humano: "O homem foi feito à imagem e à semelhança de Deus, porque a alma (que é a melhor parte do homem ou que era até mesmo o próprio homem) era imagem e semelhança de Deus" (HUGO DE SÃO VÍTOR, 1854, p. 264c). Apesar de salvaguardar o primado da alma, Hugo sustentava a tese clássica de que o ser humano era constituído de corpo e de alma: "A alma e o corpo são uma só pessoa. Mas não se pode dizer que só a alma ou só a carne é homem" (HUGO DE SÃO VÍTOR, 1854, p. 405b). Ele afirmava ainda que a alma, por si mesma, não representava a totalidade do ser humano, o qual é formado pela alma e pelo corpo (HUGO DE SÃO VÍTOR, 1854, p. 411a). A alma (espiritual e criada imortal por Deus) e o corpo (carnal e criado mortal por Deus) são distintos. Não obstante a distinção, não é possível afirmar que uma realidade se transforme na outra, "ainda que o espírito se rebaixe até o corpo e este se eleve até o espírito" (LADARIA, 2003, p. 111). Entre o corpo e alma vigorava uma relação com um tom acidental e funcional. Hugo de São Vitor (1854, p. 409b), influenciado por Boécio3, parece aplicar a definição de pessoa somente à alma, de tal modo que o corpo seria apenas um acréscimo: "A alma, como espírito racional, tem por natureza, por si mesma, o ser pessoal, e quando o corpo se une a ela não se une para constituir uma pessoa, porque ele se une à pessoa" (HUGO DE SÃO VÍTOR, 1854, p. 409b). Esta identificação da alma com o ser pessoal do homem tem uma motivação escatológica: quando a alma se separa do corpo, no momento da morte, ela continua a ser pessoa como anteriormente. À alma, como representante do homem todo, será reservado o privilégio da visão beatífica de Deus depois da morte. Assim, a identidade do ser humano era garantida: é o mesmo sujeito antes e depois da morte.
A alternativa ao pensamento de Hugo de São Vítor é representada por Gilberto de la Porrée (1070-1154). Segundo Gilberto, em consonância com a tradição, o ser humano não coincide nem com o corpo e nem com a alma, mas com a união dos dois. O ser humano é resultado da "animação do corpo e da incorporação da alma" (RUIZ DE LA PEÑA, 1988, p. 104). Gilberto refutava a definição aristotélica da alma como forma do corpo, porque argumentava que ela seria uma forma acidental, e sustentava que "a alma é verdadeiramente algo subsistente, uma substância" (LADARIA, 2003, p. 110). A alma, depois da morte, subsiste em sua condição de separada do corpo, mas não responde pela totalidade do ser humano, ou seja, não é pessoa. A alma descorporalizada significa uma parte e não o ser humano todo. Gilberto, seguindo a definição de Boécio, dava um estatuto pessoal à alma separada, mas reconhecia que ela não representava a pessoa toda, a qual é una em corpo e alma (LADARIA, 2003, p. 110).
Pedro Lombardo (1100-1160) representa o esforço de uma posição mais matizada. Para o escolástico italiano, a alma é criada, por Deus, junto com o corpo e tem um desejo natural de união com ele. A alma, em sua condição encarnada, quando unida ao corpo, não é pessoa, mas somente em sua condição desencarnada do corpo. A alma é pessoa somente quando subsiste por si mesma desconectada do corpo. A condição pessoal do composto humano perdura enquanto subsiste a união da alma com o corpo. O corpo também participa da condição pessoal do ser humano (LADARIA, 2003, p. 113-114).
A partir do século XII, tem-se um alargamento do influxo da tendência aristotélica na teologia medieval, que considerava o ser humano como uma unidade constituída de corpo e alma. O influxo aristotélico alcança o seu ponto culminante com Tomás de Aquino (1225-1274) que, seguindo a tradição da primazia da alma sobre o corpo, defende a existência de uma unidade substancial entre ambos os princípios ontológicos. Tomás reelabora as teses aristotélicas da relação corpo-alma, à luz da tradição bíblico-teológica, conferindo um caráter espiritual à alma4. O Angélico insiste na unidade dos princípios ontológicos que constituem o ser humano, de modo que um princípio isolado não corresponde à totalidade humana (TOMÁS DE AQUINO, 2002, I, q. 75, a. 4). A alma é uma realidade incorpórea, subsistente, espiritual e forma do corpo. Pertence à essência da alma a sua união com o corpo (TOMÁS DE AQUINO, 2002, I, q. 76, a. 1). A alma está ordenada para o corpo. Ela contém em si o corpo, não ao contrário, e faz com ele uma unidade (TOMÁS DE AQUINO, 2002, I, q. 76, a.3).
A alma é a única forma da matéria prima (TOMÁS DE AQUINO, 2002, I, q. 76, a. 4 e 6). É a única forma substancial que concede o ser ao corpo. A alma realiza a sua essência, incorporando-se. A informação é a sua autorrealização. O corpo é a matéria informada pela alma. O corpo é animado pela alma. Ele é a manifestação da visibilidade e da historicidade da alma que, por sua vez, está interiorizada no corpo. A "alma é ato do corpo porque pela alma o corpo existe, é organizado e é potência que tem vida" (TOMÁS DE AQUINO, 2002, I, q. 76, a. 4, ad 1). Como o cadáver não é matéria informada pela alma, logo não é corpo. A alma não pré-existe ao corpo e nem o corpo pré-existe à alma. O corpo é a condição de possibilidade do vir-a-ser da alma (TOMÁS DE AQUINO, 1952, lib. II, cap. 68). A alma humana comunica o seu ser ao corpo, no qual subsiste. É a alma que abriga o corpo. A unidade humana se funda na alma. O corpo e alma não são dois princípios completos e independentes que coexistem no mesmo espaço formando o ser humano, mas ambos estão substancialmente unidos. Um princípio (ou substância), por si mesmo, isolado e desconectado do outro não responde pela totalidade do ser humano. Este é uma magnitude constituída pela união substancial dos dois princípios ontológicos.
A alma não é o homem e nem é pessoa (TOMÁS DE AQUINO, 2002, I, q. 29, a. 1). A alma separada do corpo, encontrando-se numa situação ontologicamente precária, não corresponde à natureza do ser humano todo. Trata-se de um estado anômalo e contrário à natureza e à vocação da alma (TOMÁS DE AQUINO, 2002, I, q. 89, a. 1-3; I, q. 118, a. 3). A subsistência da alma desencarnada após a morte, que Tomás afirmava em sintonia com a tradição, é uma etapa inconveniente. A alma, por sua natureza, está orientada para a união e não para a separação do corpo. No entanto, contrariamente ao que foi exposto até o momento, Tomás salienta que a situação da alma separada é melhor, porque ela tem uma maior liberdade para compreender a realidade uma vez que está liberta do obstáculo que o corpo representa para a pureza da inteligência (TOMÁS DE AQUINO, 2002, I, q. 89, a. 2, ad 1) 5.
Anteriormente a Tomás de Aquino, o IV concílio de Latrão (1215) já havia afirmado que o ser humano é constituído de corpo e alma (DENZINGER; HÜNERMANN, 2007, n. 800-801). O concílio de Vienne (1311-1312), provavelmente sob a influência de Tomás de Aquino, dando um passo além do IV Latrão, declarava que os dois princípios ontológicos estão substancialmente unidos: a alma racional é, verdadeiramente, por si mesma e essencialmente, forma do corpo humano (DENZINGER; HÜNERMANN, 2007, n. 902). Ao tratar desta declaração conciliar, Ladaria (2003, p. 128) observa que a "unidade intrínseca do composto humano é garantida diretamente pela alma". No horizonte de Vienne, a relação entre o corpo e a alma não é acidental e nem operacional, mas essencial e substancialmente unitária. O ser humano é uma unidade anímico-corpórea. A declaração de Vienne foi completada pelo V concílio de Latrão (1513), o qual afirmava que a alma é imortal (DENZINGER; HÜNERMANN, 2007, n. 1440). Esta afirmação se refere à singularidade e ao destino eterno e pessoal do ser humano. A imortalidade é uma prerrogativa do ser humano e não somente da alma.
1.3 A relação corpo-alma no Concílio Vaticano II
A teologia clássica concebeu o ser humano como um composto que resultava da união entre as duas substâncias: corpo e alma. O concílio Vaticano II (1962-1965), através da Constituição Pastoral Gaudium et Spes 14 e 15, apresenta uma síntese, com uma nova elaboração, da doutrina tradicional sobre a constituição do ser humano como unidade anímico-corpórea. O concílio, em sintonia com a orientação bíblica da teologia contemporânea, concebe o ser humano como uma realidade concreta, constituída por uma dimensão corporal e uma interioridade. Para a Constituição, as duas dimensões características do ser humano são: a unidade-distinção do corpo e da alma e a primazia humana sobre as demais realidades criadas. A Constituição destaca a dignidade do corpo, a sua bondade e o seu destino último na ressurreição final. O ser humano, por sua condição corporal, consiste no compêndio e no clímax do mundo material. Por sua condição anímica, o ser humano é superior ao universo material. Ele transcende a matéria. A Constituição reafirma as dimensões espiritual e imortal da alma. O ser humano é uno em corpo (referência ao mundo e à condição horizontal) e alma (referência a Deus e à condição vertical).
2 O ser humano é uno em corpo e alma: uma aproximação contemporânea
2.1 A relação corpo-alma: o ser humano é uma unidade dual e uma dualidade una
A antropologia cristã concebe o ser humano como uma unidade na pluralidade de suas dimensões. O ser humano, como corpo e alma, é uma uni-pluralidade. A antropologia cristã não compactua com o dualismo antropológico porque o ser humano não é um espaço no qual o corpo e a alma coabitam sem nenhum tipo de vínculo; corpo e alma não são duas instâncias autônomas e independentes que coexistem juntas, como preconiza o dualismo. Por outro lado, a antropologia cristã também não comunga com o monismo antropológico, pois defende que o ser humano não pode ser reduzido a um princípio material ou espiritual. Para a antropologia cristã, o ser humano é carne animada e alma encarnada.
A unidade anímico-corpórea, que constitui o ser humano, é uma expressão da "experiência originária que o eu tem de si mesmo" (RUIZ DE LA PEÑA, 1988, p. 129). O ser humano se autopercebe como um eu concreto, encarnado, singular, histórico e não como uma subjetividade desconectada da realidade, espiritualista e fictícia. Não é como defende o dualismo antropológico cartesiano, fundamentado na formulação res cogitans-res extensa, que reduz o ser humano a uma consciência pensante (cogito, ergo sum). A unidade humana não é produto da equação corpo mais alma e nem do ajustamento dessas duas partes. A unidade múltipla do ser humano não é formada por duas camadas que se acomodam e nem por dois estratos que se justapõem. O ser humano é uma unidade corpóreo-espiritual, psicofísica e psico-orgânica (ZUBIRI, 1986, p. 482; ZUBIRI, 1984, p. 43). Ele é uma totalidade espiritual e corporal. Na unidade ontológica humana, não há supremacia, primado ou domínio de um co-princípio ontológico sobre o outro. Partindo do princípio da unidade antropológica, não há um ato que seja exclusivamente espiritual ou corporal. O que há é uma ação única da "unidade sistemática" (ZUBIRI, 1986, p. 465; ZUBIRI, 1984, p. 42) que constitui o ser humano em cada circunstância. A unidade corpóreo-anímica está presente em cada atividade humana.
O ser humano não "tem", mas "é" uma unidade corpóreo-animada (LADARIA, 1998, p. 69; RUBIO, 1989, p. 283; RUIZ DE LA PEÑA, 1988, 129). Esta unidade faz parte da constituição humana e não é uma propriedade que o ser humano manipula ou uma "estrutura selada por um decreto arbitrário entre dois termos exteriores" (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 112). O ser humano não é uma máquina formada por peças e nem uma estrutura formada por um pavimento superior e outro inferior, mas uma "unidade ordenada" (BARTH, 1961, p. 26), constituída por princípios, dimensões e "subsistemas" (ZUBIRI, 1986, p. 58). Entre estes princípios, não há uma unidade que se confunde e nem uma distinção que se separa. Cada princípio ontológico que constitui o ser humano não se identifica e nem se diferencia radicalmente do outro. Em outros termos, não há uma homogeneização e nem uma heterogeneização dos princípios que compõem o ser humano. Assim, os princípios (corpo e alma ou espírito e matéria) que constituem o ser humano formam uma unidade não-monista e uma dualidade não-dualista. O ser humano é uma unidade dual e uma dualidade una, isto é, um ente constituído por princípios distintos que formam um todo único. A "unidade no ser humano não anula a dualidade (espiritualidade-corporeidade) e vice-versa" (RUBIO, 1989, p. 349). O ser humano é uma totalidade e uma unicidade ontológica em que os princípios estruturantes são distintos, porém não separáveis. "O corpo e alma não constituem o homem como duas coisas justapostas, mas são dois princípios essenciais, separáveis apenas metafisicamente, de um único existente humano" (FIORENZA; METZ, 1973, p. 60)6. O corpo e a alma são dimensões essencialmente diversas, mas referidas, ordenadas, coimplicadas, formando o todo da constituição humana.
A alma não é um espírito puro, nem uma realidade pré-existente, nem uma emanação divina, nem um "fragmento" (RAHNER, 1964, p. 316) do ser humano todo, nem sua estrutura superior e nem o seu pavimento nobre, mas o princípio que vitaliza, interioriza e anima o corpo. A alma é um co-princípio metafísico, cuja vocação e razão de ser estão em sua encarnação e corporificação. A alma não é a parte invisível da composição humana, como se fosse um espírito oculto e aprisionado pelo corpo, mas ela se expressa e existe no ser do corpo. Só tem sentido falar da alma enquanto um princípio encarnado e corporificado. Por isso, a alma não representa o ser humano todo. Através da alma, o corpo se torna um organismo vivo, se expressa e se constitui. O corpo, pelo influxo vibrante da alma, é uma realidade dinâmica, comunicativa e ativa. A alma é a interioridade e a subjetividade do corpo. Dentro de uma visão relacional, a alma humana é vista como "a capacidade de referência do homem à verdade, ao amor eterno" (RATZINGER, 1982, p. 45). Consiste no fundamento transcendente do ser humano, na sua capacidade de relacionar-se com Deus.
Um corpo des-animado é um cadáver, uma matéria imóvel e incomunicável. Um corpo des-almado é uma matéria sem vida e sem expressão. Mas um corpo almificado é uma matéria animada e um espírito encarnado. O espírito é inconcebível fora da materialidade, que "opera sua expressão e autorrealização" (RUIZ DE LA PEÑA, 1988, p. 131). O corpo não é um instrumento e nem um fantoche nas mãos da alma, mas o seu modo de ser. A alma é um princípio ordenado e relativo ao corpo e vice-versa. A alma não é o princípio ativo que governa um corpo inerte. O ser humano não é construído por uma alma inteligente e um corpo ignorante. Não há um primado da alma sobre o corpo e nem vice-versa. O primado está na igualdade qualitativa e na comunhão recíproca que há entre ambos os princípios.
Não existe corpo sem alma e nem alma sem corpo. Se a alma pudesse existir separada do corpo, em um suposto estado desencarnado, estaria contrariando a sua vocação para a comunhão com o corpo. Caso este estado fosse possível, a alma estaria numa condição ontológica precária e anômala. A alma é um ser-para e ser-com o corpo. A encarnação da alma não é uma fase transitória para se alcançar um estado desmaterializado, mas trata-se de sua genuína índole. Referir-se à alma é referir-se ao seu estado encarnado. O espírito/alma não se autorrealiza à margem da matéria e nem a matéria se autorrealiza ou se autodetermina independentemente do espírito. A alma humana encontra a sua realização na relação com o corpo, de modo que ela não se torna mais espiritual na proporção em que se separa do corpo, mas na medida em que se corporifica. O ser humano é uma espiritualidade corporificada e um corpo espiritualizado. Nem um princípio ontológico que compõe o ser humano (corpo ou alma) se realiza sozinho ou à margem do outro. Um princípio se realiza pela relação com o outro. O corpo não é uma matéria pura que ocupa lugar no espaço e nem uma realidade inimiga de Deus, mas "alteridade", "símbolo", "expressão" e manifestação fenomênica da alma (RAHNER, 1964, p. 314-315), que está dotada de interioridade, de densidade e de profundidade. A alma está interiorizada no corpo e o corpo é a exteriorização da alma. O corpo interioriza, visibiliza, comunica, e auto-elabora os atributos da alma. Ela se expressa de forma histórica e espaço-temporal no corpo, o qual não se restringe à superficialidade epidérmica, mas possui uma interioridade anímica. O corpo é uma porção da matéria animada e espiritualizada. O ser humano inteiro é corpo e alma, não de forma contígua, mas enquanto dois princípios que estão reciprocamente ordenados, condicionados e orientados, formando uma unidade entitativa substancial. Na sua totalidade, o ser humano é uma corporeidade transpassada pelo anímico e uma espiritualidade perpassada pelo corporal. A alma não é detentora do privilégio de ser um princípio metafísico mais próximo ou mais semelhante a Deus do que o corpo. Deus cria o ser humano na sua totalidade corporal e espiritual. Deus é o fundamento da imanência e da transcendência humanas.
A antropologia cristã não rechaça e nem censura, previamente, o espírito e nem a matéria, mas busca unificá-los em uma síntese coerente. A antropologia cristã não é espiritualista e nem materialista, mas é uma unidade que integra ambos os aspectos. O ser humano é a magnitude em que os subsistemas parciais formam o "sistema total da substantividade humana" (ZUBIRI, 1986, p. 58). Os dois princípios estruturais da constituição humana não se identificam e nem se misturam, mas estão correlacionados de forma que a essência de um está ordenada para a relação com o outro. A identidade de um princípio metafísico se constrói mediante a relação com a alteridade do outro princípio. O corpo não é a alma e vice-versa. O interior e o exterior são distintos. Mas o que o corpo é ele o é em relação à alma e vice-versa. A distinção entre os princípios do binômio antropológico se situa no plano meta-existencial, ou seja, metafísico. O ser humano não é só corpo e nem só alma, ou seja, cada dimensão, separadamente, não o constitui e nem responde pela totalidade do seu ser. É através da unidade e da aliança de ambos os princípios que o ser humano acontece, torna-se e vem a ser.
2.2 Como entender a relação corpo-alma? Algumas alternativas à teoria hileformista
Uma vez apresentada a unidade corpo-alma como um fato inabdicável para uma visão cristã do ser humano, é necessário interpelar a respeito do modo de entendê-la. Esta função é mais própria de uma antropologia filosófica do que teológica. A teologia se interessa pelo assunto na medida em que constitui um dado de fé que está vinculado às verdades centrais da profissão de fé cristã como a encarnação, a salvação e a ressurreição. A forma como se concebe a relação corpo-alma (unitária ou dualista) é determinante para algumas disciplinas teológicas como, por exemplo, a antropologia, a cristologia, a soteriologia e a escatologia. Uma antropologia que compreende a relação corpo-alma de forma dualista pode conceber a encarnação do Verbo de Deus como uma fase provisória. Assim, Cristo em seu retorno para junto de Deus Pai, na ascensão, voltaria isento dos condicionamentos humanos, históricos e temporais. Na encarnação, Cristo não assumiu a natureza de um espírito puro, mas a totalidade antropológica da condição humana. A realidade assumida (unidade corpóreo-anímica) é a realidade que será redimida. Destarte, o corpo também participará da redenção cristã. A redenção não terá uma conotação puramente espiritual, mas também corporal. Deste modo, a realidade cristã pós-mortal (escatológica) não será dominada pela alma imortal e separada do corpo, mas pela ressurreição dos mortos ou da carne. O "futuro escatológico não é um futuro puramente espiritual, mas também um futuro corporal" (FIORENZA; METZ, 1973, p. 69). A ressurreição tem como sujeito o ser humano na sua totalidade espiritual, corporal, relacional, social etc. O "corpo é especificamente corpo humano, expressão do elemento espiritual pessoal; o elemento espiritual do homem se realiza no espaço-temporalidade histórica e aspira à perfeita plenitude de todo o homem (ressurreição)" (Anima, 1968, p. 23). A morte e a ressurreição são duas realidades que dizem respeito ao ser humano todo. O mesmo ser humano todo (corpo-alma) que morrerá é o mesmo que será ressuscitado por Deus.
Atualmente, a questão sobre a forma de conceber a relação corpo-alma parece não fazer parte das preocupações relevantes dos teólogos. Na teologia católica, a teoria hilemórfica, utilizada por Tomás de Aquino para tratar da unidade substancial entre o corpo e a alma, continua sendo reafirmada por teólogos como, por exemplo, K. Rahner (1964, p. 314-316), E. Schillebeeckx (1969, p. 371-375), J.B. Metz (1972; 1970, p. 323-328) e rejeitada por outros como, por exemplo, Flick-Alszeghy (1999, p. 150). Na teologia protestante, há sintomas de uma insatisfação com o esquema hilemórfico, acusado de conferir uma prioridade formal e metafísica ao espírito/alma sobre o corpo/matéria e que estaria esclerosado para os dias de hoje.
O teólogo protestante K. Barth (1961, p. 73), se esquivando do "dualismo abstrato" grego e do "monismo abstrato materialista e espiritualista", defende um "monismo concreto" que não considera o corpo e nem a alma "como duas partes, mas como dois fatores da natureza humana, una e indivisível". Porém, em outras passagens, Barth (1961, p. 101) afirma que haveria uma supremacia da alma sobre o corpo de modo que ela "comanda e o corpo obedece". No que tange à relação corpo-alma, parece que Barth em determinados momentos tende para uma visão unitária e em outros para uma visão hierárquica.
Esta concepção barthiana, de uma alma ontologicamente superior ao corpo, é criticada por outro teólogo protestante, J. Moltmann. O teólogo da esperança salienta que a percepção hierarquizada da relação corpo-alma, expressa com conceitos platônicos ou cartesianos por Barth, possibilitaria uma "espiritualização e instrumentalização" do corpo (MOLTMANN, 1993, p. 360). Moltmann (1993, p. 368) propõe, como alternativa sobre o modo de entender a relação corpo-alma, uma "conformação pericorética de corpo e alma" que estaria em analogia com a relação pericorética trinitária e com a pericórese entre Deus e o mundo: diferenciação na unidade e na comunhão. Assim, não haveria uma relação piramidal entre a alma-mandante e o corpo-obediente, visto que ambos primariam pelo mesmo estatuto ontológico e desempenhariam a mesma função: "o corpo informa sua alma tão fortemente como a alma informa seu corpo", ou seja, haveria uma informação mútua que vai cunhando a conformação em cada pessoa (MOLTMANN, 1993, p. 370). "A unidade de alma e corpo, de interior e exterior, de centro e periferia da pessoa deve ser compreendida nas formas de aliança, comunhão, atuação recíproca, contexto mútuo, harmonia e amizade" (MOLTMANN, 1993, p. 367).
Segundo Flick-Alszeghy (1999, p. 151), a teologia contemporânea, refutando a concepção hilemórfica no modo de compreender as relações entre o corpo e a alma, denota que o ser humano é uma unidade constituída por dois processos: bioquímico e psicológico. Não são dois processos que se condicionam mutuamente, mas trata-se de um único processo composto de dois aspectos: materialidade e espiritualidade. Para Flick-Alszeghy (1999, p. 152), a unidade e a dualidade dos aspectos que compõem o ser humano se expressa de modo mais preciso pela categoria "sujeito encarnado".
Atualmente, também, no plano filosófico, há outras formas ou alternativas de se entender a relação corpo-alma. Uma proposta é a teoria do emergentismo forte, preconizada pelo filósofo argentino, Mário Bunge (2011, p. 28), que defende a possibilidade de um autotranscendimento da matéria em direção a uma realidade nova, através de saltos qualitativos, explicando a diversidade ontológica do real. A matéria está num processo ascensional de autossuperação, se autotranscendendo em direção ao qualitativamente superior. Na ótica do filósofo, a realidade não é constituída por uma textura ontológica única, mas por uma diversidade entre os entes. O real é diverso, heterogêneo e múltiplo. Há uma hierarquia entre os entes mundanos de modo que o ser humano ocupa a cúpula ontológica, por sua qualidade emergente. Diferentemente do tomismo que concebe o corpo como o resultado da "informação" da alma sobre a matéria, o emergentismo considera a alma como a conclusão do processo do autotranscendimento da matéria rumo ao outro, ao novo, ao qualitativamente distinto (BUNGE, 2011, p. 229-230). A alma é a realidade que emerge como fruto do processo da autotranscendência da matéria. O materialismo emergentista de Bunge não defende a teoria metafísica sobre a relação corpo-alma, mas reconhece que o ser humano é capaz de transcender a sua materialidade. O ser humano é uma realidade material que transcende a sua condição material. Para o emergentismo, há uma inter-relação funcional entre o anímico/mental e o corpo/cerebral. A mente é uma qualidade emergente do cérebro e ostenta faculdades funcionais que ultrapassam o puramente biológico, físico e fisiológico (BUNGE, 2011, p. 230). O ser humano não é uma realidade acidental, mas, ontologicamente uma unidade psicossomática.
Outra proposta filosófica sobre a forma de entender a relação corpo-alma é defendida por X. Zubiri, filósofo espanhol católico, que afirma ser impossível reciclar qualquer modalidade da teoria hilemórfica. Zubiri, assim como o teólogo Moltmann, refuta a soberania da alma sobre o corpo. O filósofo (1984, p. 40-41), para tratar dos dois aspectos que constituem o ser humano não utiliza a clássica nomenclatura "corpo" e "alma", mas "organismo" e "psique".
Qual a origem do subsistema psique? Segundo Zubiri (1986, p. 464), a psique emerge, de forma processual, do próprio corpo, ou seja, da célula germinal. A psique é produzida pela própria célula e por suas estruturas. Ela é originada do subsistema organismo.
Zubiri (1986, p. 46-47) salienta que o ser humano é uma unidade estrutural ou substantiva, portadora de uma unidade primária, formada por um sistema de notas de caráter físico-químico e psíquico. O momento físico-químico é nomeado de "organismo" (e não de matéria ou corpo) e o momento psíquico, de "psique" (e não de alma ou espírito) (ZUBIRI, 1986, p. 49). O ser humano é sistema substantivo constituído de dois subsistemas: organismo e psique. Os momentos ou aspectos são "subsistemas parciais" que formam o sistema total, que é o ser humano. "Sua psique é formal e constitutivamente psique de um organismo, e este é formal e constitutivamente organismo de uma psique. Esta é desde si mesma orgânica e o organismo é desde si mesmo psíquico" (ZUBIRI, 1986, p. 49). Entre os subsistemas organismo e psique, vige uma unidade de tipo meta-existencial. Ambos os subsistemas se constituem, se ordenam, "se codeterminam como realidades em ato e ex aequo" para formar a unidade sistemática psico-orgânica, que é o ser humano (ZUBIRI, 1986, p. 49). Os subsistemas, organismo e psique, são irredutíveis e distintos um do outro, não obstante estejam em mútua complementaridade e codeterminação. Assim, a atividade humana, em todas as suas ações, é sempre psico-orgânica.
2.3 Da relação corpo-alma à relação mente-cérebro
A proclamação da unidade e da relação recíproca entre o corpo e a alma é uma via intermediária entre o reducionismo monista (espiritualista ou materialista) e o dualismo antropológico. O problema corpo-alma não é uma questão bizantina ou arqueológica, mas é tratado, atualmente, com um novo verniz através do problema mente-cérebro.
Segundo algumas correntes antropológicas como, por exemplo, a teoria da identidade psiconeural (Herbert Fiegl, David Malet Armstrong etc.) e a inteligência artificial (Donald M. MacKay, Luis Ruiz Gopegui etc.), a mente é o cérebro, o qual é uma realidade puramente física (mente = cérebro = estrutura física). Para a teoria da identidade psiconeural, a mente é uma realidade objetiva e o princípio causador do comportamento humano. A mente existe e é idêntica ao cérebro, órgão fisico-biológico do corpo humano. O binômio mente-cérebro é responsável pela atividade humana (conhecimento, liberdade, comportamento, vontade etc.) (RUIZ DE LA PEÑA, 1983, p. 109-122).
Esta concepção filosófica da identidade psiconeural, sobre a relação mente-cérebro, encontra sua versão empírica nos defensores da teoria da inteligência artificial (cibernéticos), para os quais a mente é o cérebro, o qual é uma máquina (mente = cérebro = máquina). O cérebro é concebido como uma central processadora de informação. Para a inteligência artificial, haveria uma analogia entre o funcionamento biológico do cérebro humano e o funcionamento mecânico de uma máquina. Em outros termos, haveria uma semelhança entre o natural (cérebro) e o artificial (memória da máquina). Assim, não haveria uma diferença qualitativa entre o ser humano e a máquina. A evolução biológica teria concluído o seu ciclo e teria iniciado o ciclo evolutivo técnico-científico. Estaria ocorrendo a passagem do pólo evolutivo natural para o artificial, isto é, a passagem do homo sapiens sapiens para o homo sapiens cyberneticus. A máquina cibernética deseja não só igualar, mas também superar a máquina natural do cérebro. É possível que, futuramente, uma máquina venha a ter autoconsciência? Uma máquina poderá ser uma "pessoa artificial"? (RUIZ DE LA PEÑA, 1994, p. 79-112).
A teoria da identidade psiconeural e os defensores da inteligência artificial têm uma visão ontológica e epistemológica reducionista. A matéria é vista como a única realidade presente em tudo aquilo que existe: o real é o material. A realidade consiste numa homogeneidade material, detentora de uma textura ontológica única: a matéria. As leis que explicam o funcionamento do universo são exclusivamente físicas. Somente as leis físicas explicam o funcionamento dos mecanismos biológicos, químicos e psíquicos. Há uma homogeneidade material e física da realidade. Assim, entre as realidades existentes no universo (homem, animal, máquina etc.) não há um desnível ontológico, qualitativo e humanista. Destarte, todas as realidades gozam do mesmo status ontológico. A realidade é concebida a partir da ótica de um monismo físico e material.
Segundo outra corrente antropológica, o materialismo emergentista de Mario Bunge (2011, p. 24), a mente é o cérebro, porém "o cérebro se difere qualitativamente de qualquer outro sistema material, particularmente dos computadores". A mente não é uma magnitude independente, mas está vinculada ao cérebro. O ser humano, por sua qualidade cerebral, se difere de uma máquina e de um computador. Há uma disparidade qualitativa entre o cérebro humano e as outras realidades físicas. O cérebro humano ostenta uma qualidade emergente, em relação aos demais entes da biosfera. Em virtude disto, o ser humano se distingue qualitativamente de qualquer outra magnitude física, química ou biológica.
Diante destes modelos materialistas monistas, o filósofo K. Popper e o neurólogo J.C. Eccles defendem um dualismo interacionista: a mente não é o cérebro, mas uma realidade imaterial e irredutível ao físico ou ao biológico, embora precise de uma infraestrutura orgânica, com a qual interage. Não obstante haja uma disparidade nos pontos de partida, o filósofo e o neurólogo chegam a alguns pontos comuns: a mente não se identifica com o cérebro; o cérebro não é suficiente para explicar os fenômenos mentais; existe no ser humano, além da estrutura cerebral, outra realidade de natureza distinta, não orgânica, não material, à qual se deve o caráter único do humano (POPPER; ECCLES, 1991).
A antropologia materialista (identidade psiconeural, inteligência artificial etc.), se degringola numa posição dualista. O histórico binômio corpo-alma corresponderia, atualmente, ao binômio software-hardware. A histórica supremacia da alma sobre o corpo seria traduzida, hoje, pelo primado do software (conteúdo e suporte lógico do cérebro) sobre o hardware (suporte físic o dos conteúdos cerebrais). Deste modo, a questão mais relevante seria o conteúdo cerebral (software) e não propriamente sua encarnação material (hardware) (RUIZ DE LA PEÑA, 1983, p. 179).
Diante deste cenário antropológico marcado por materialistas monistas e dualistas, a antropologia cristã defende a unidade ontológica dos princípios constitutivos do ser humano (corpo-alma). A antropologia cristã não é monista e nem dualista, nem materialista e nem espiritualista, mas uni-multidimensional: o ser humano é uma unidade antropológica constituída pela dualidade de dois princípios: material e espiritual.
Conclusão
Na visão cristã, o ser humano não é um espírito decaído envolvido por um invólucro material que não pertence à sua essência. Segundo a antropologia bíblica, adam (Adão) provém da adamah (terra), ou seja, a terra pertence à constituição do ser humano. Adão é terra que respira. Para a visão cristã, o ser humano, também, não é só matéria/corpo e nem só espírito/alma. A visão cristã do ser humano não compactua nem o dualismo e nem o monismo. O ser humano é alma encarnada e carne animada. A antropologia cristã recusa que o ser humano seja constituído por dois princípios opostos e irreconciliáveis e, também, refuta que ele seja uma realidade puramente material ou espiritual. O ser humano, como unidade anímico-corpórea, é uma realidade material que transcende sua materialidade; ele é uma realidade espaço-temporal que supera essa sua espaço-temporalidade; é um sujeito mortal que ultrapassa a morte. Como uma unidade dual de corpo e de alma, o ser humano tem um primado axio-ontológico em relação à realidade que o circunda. Ele vale mais e é mais do que qualquer outra criatura mundana. O ser humano se destoa do seu entorno mundano por sua superioridade qualitativa e por sua singularidade.
1 Para uma visão histórica ampliada da relação corpo-alma cf. FIORENZA; METZ, 1973, p. 43-53; LADARIA, 2003, p. 87-132; LADARIA, 1987, p. 98-110; RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 1988, p. 93-113; FLICK; ALSZECHY, 1999, p. 135-149.
2 Sobre a gnose: cf. RUBIO, 2001, p. 330-335.
3 Boécio (480-525) define, classicamente, a pessoa como "substância individual de natureza racional".
4 Para Aristóteles, a alma, forma do corpo, é o princípio configurador da realidade material. A matéria sem a "forma" seria reduzida a uma mera possibilidade; a forma se torna realidade na unidade com a matéria.
5 Sobre as reações ao pensamento de Tomás de Aquino: cf. LADARIA, 2003, p. 122-126; RUIZ DE LA PEÑA, 1988, p. 108-110.
6 Quando o autor afirma que o corpo e a alma são separáveis do ponto de vista metafísico, possivelmente, ele está se referindo à definição clássica da morte como a separação metafísica do corpo e da alma. Para uma reflexão crítica diante da definição clássica da morte conferir nosso estudo: OLIVEIRA, 2013, p. 6-11.
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO. A cidade de Deus. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1990. v. 2.
BARTH, K. Dogmatique: la doctrine de la creation. Genève: Labor et fides, 1961. v. 3/2.
BUNGE, M. El problema mente-cerebro: un enfoque psicobiológico. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2011.
DENZINGER, H.; HÜNERMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas, 2007.
FIORENZA, F.P.; METZ, J.B. O homem como união de corpo e alma. In: FEINER, J.; LOEHRER, M. (Ed.), Mysterium salutis. Petrópolis: Vozes, 1973. v. 2/3, p. 27-72.
FLICK, M; ALSZECHY, Z. Antropología teologíca. 8. ed. Salamanca: Sigueme, 1999.
HUGO DE SÃO VITOR. De sacramentis christianae fidei. Paris: Migne: 1854.
LADARIA, L. Antropología teológica. Roma: UPCM-Gregoriana, 1987.
LADARIA, L. Introdução à antropologia teológica. São Paulo: Loyola, 1998.
LADARIA, L. O homem criado à imagem de Deus. In: SESBOÜÉ, B. (Dir.), História dos dogmas: o homem e sua salvação: séc. V-XVII. São Paulo: Loyola, 2003. v. 2, p. 87-132.
MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945.
METZ, J.B. Antropocentrismo cristiano: sobre la forma de pensamento de Tomás de Aquino. Salamanca: Sígueme, 1972.
METZ, J.B. Corporeidade. In: FRIES, Heinrich. Dicionário de teologia: conceitos fundamentais da teologia atual. São Paulo: Loyola, 1970. v.1, p. 323-328.
MOLTMANN, J. Deus na criação: doutrina ecológica da criação. Petrópolis: Vozes, 1993.
POPPER, K.; ECCLES, J.C. O eu e seu cérebro. Brasília: Universidade de Brasília, 1991.
RAHNER, K. Para una teología del simbolo. In: RAHNER, K, Escritos de teología. Madrid: Taurus, 1964. v. 4, p. 261-294.
RAHNER, K.; VORGRIMLER, H. Anima. In: RAHNER, K.; VORGRIMLER, H. Dizionario di teologia. Roma-Brescia: Herder-Morcelliana, 1968. p. 23-25.
RUBIO, A.G. Unidade na pluralidade. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2001.
RUIZ DE LA PEÑA, J. L. As novas antropologias: um desafio à teologia. São Paulo: Loyola, 1983.
RUIZ DE LA PEÑA, J. L. Homo cyberneticus? Antropología e inteligencia artificial. In: DE SAHAGÚN LUCAS, J. Nuevas antropologías del siglo XX. Salamanca: Sígueme, 1994. p. 79-112.
RUIZ DE LA PEÑA, J. L. Imagen de Dios. Santander: Sal Terrae, 1988.
RUIZ DE LA PEÑA, J. L. Teologia de la creación. Santander: Sal Terrae, 1988.
SCHILLEBEECKX, E. El mundo y la Iglesia. Salamanca: Sígueme, 1969.
TOMÁS DE AQUINO. Suma contra los gentiles. Madrid: Catolica, 1952.
ZUBIRI, X. El hombre y Dios. Madrid: Alianza, 1984.
ZUBIRI, X. Sobre el hombre. Madrid: Alianza, 1986.
Renato Alves de Oliveira*
Artigo recebido em 13 de junho de 2013 e aprovado em 8 de agosto de 2013.
* Doutor em Teologia. Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais do Departamento de Teologia. País de origem: Brasil. E-mail: [email protected]
You have requested "on-the-fly" machine translation of selected content from our databases. This functionality is provided solely for your convenience and is in no way intended to replace human translation. Show full disclaimer
Neither ProQuest nor its licensors make any representations or warranties with respect to the translations. The translations are automatically generated "AS IS" and "AS AVAILABLE" and are not retained in our systems. PROQUEST AND ITS LICENSORS SPECIFICALLY DISCLAIM ANY AND ALL EXPRESS OR IMPLIED WARRANTIES, INCLUDING WITHOUT LIMITATION, ANY WARRANTIES FOR AVAILABILITY, ACCURACY, TIMELINESS, COMPLETENESS, NON-INFRINGMENT, MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR A PARTICULAR PURPOSE. Your use of the translations is subject to all use restrictions contained in your Electronic Products License Agreement and by using the translation functionality you agree to forgo any and all claims against ProQuest or its licensors for your use of the translation functionality and any output derived there from. Hide full disclaimer
Copyright Pontificia Universidade Catolica de Minas Gera, Programa de Posgraduacao em Ciencias da Religiao Jul-Sep 2013
Abstract
The scope of this paper is to present how occurred in historical level, and occurs in the contemporary world, the relation between body and soul in the context of Christian anthropology. Historically, in a first moment, it was identified the existence of the body and the soul, and afterwards, the type of relation between these two ontological principles. From a historical point of view, there was a primacy and supremacy of the soul over the body. Between these principles, sometimes prevailed an accidental unity (provisional and dualistic), sometimes a substantial unity (permanent and reciprocal). Nowadays, the theological reflection defends a mutual and reciprocal unity between body and soul, so that each principle is ordained one to the other. Human being is a psychophysical "unit-totality" constituted of body and soul. Currently, there are philosophers (X. Zubiri, M. Bunge) and theologians (J. Moltmann, Flick-Alszeghy), who defend, as alternative to the Aristotelian-Thomistic hylemorphism, new forms of understanding the relation between body/matter and soul/spirit. Also, nowadays, the relation body-soul is present in new anthropologies, but with a new varnish through relation between mind-brain. [PUBLICATION ABSTRACT]
You have requested "on-the-fly" machine translation of selected content from our databases. This functionality is provided solely for your convenience and is in no way intended to replace human translation. Show full disclaimer
Neither ProQuest nor its licensors make any representations or warranties with respect to the translations. The translations are automatically generated "AS IS" and "AS AVAILABLE" and are not retained in our systems. PROQUEST AND ITS LICENSORS SPECIFICALLY DISCLAIM ANY AND ALL EXPRESS OR IMPLIED WARRANTIES, INCLUDING WITHOUT LIMITATION, ANY WARRANTIES FOR AVAILABILITY, ACCURACY, TIMELINESS, COMPLETENESS, NON-INFRINGMENT, MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR A PARTICULAR PURPOSE. Your use of the translations is subject to all use restrictions contained in your Electronic Products License Agreement and by using the translation functionality you agree to forgo any and all claims against ProQuest or its licensors for your use of the translation functionality and any output derived there from. Hide full disclaimer